Análise sumária de urina de rotina: porquê e para quê?
Introdução
O pedido de análise sumária de urina é um acto rotineiro, realizado diária e
repetidamente. O seu uso visa o rastreio de bacteriúria assintomática,
hematúria e/ou proteinúria e inclui o exame físico, químico e microscópico da
urina. São vários os parâmetros analisados, como a coloração, a densidade, o
pH, a hematúria, proteinúria, leucocitúria e glicosúria, entre outros. As
diferentes alterações no exame poderão ser atribuídas ao uso de fármacos e a
inúmeras patologias, entre as quais a diabetes mellitus, a tuberculose, a
doença renal (glomerulopatias) e a neoplasia e as doenças infecciosas do
aparelho urinário (cistite, pielonefrite).1 Apesar do seu baixo custo, o número
de exames efectuados anualmente pode ter um impacto significativo nos encargos
associados à saúde e na qualidade de vida dos indivíduos, porque os frequentes
falsos positivos acarretam investigação adicional, o que aumenta os custos e
implica riscos para o doente.
A Confederação Europeia de Medicina Laboratorial, através do European
Urinalysis Group, publicou em 2000 uma guideline na qual estabelece que a
análise sumária de urina deve ser apenas solicitada por indicação clínica.2 O
seu uso sistemático em determinadas populações deve ser sempre analisado numa
perspectiva custo/benefício.2 Poderá ser discutível, por exemplo, nos doentes
hipertensos ou diabéticos, já que actualmente a determinação da
microalbuminúria é o parâmetro mais importante e esta poderá ser efectuada
recorrendo a uma determinação específica (doseamento da razão albuminúria/
proteinúria).3-4 Também, nos indivíduos com factores de risco para a neoplasia
da bexiga (fumadores, exposição a carcinogéneos químicos, entre outras
condições) e, de acordo com a U.S. Preventive Services Task Force, parece não
existir evidência de diminuição da mortalidade e/ou morbilidade com o rastreio
através da análise sumária de urina, pelo que este não é recomendado.5
Perante estes dados, qual será então o benefício da realização da análise
sumária de urina, de forma sistemática, em adultos aparentemente saudáveis e
sem factores de risco, no que se refere à diminuição de morbi-mortalidade e
melhoria da qualidade de vida?
Com este trabalho pretendeu-se determinar qual o benefício da análise sumária
de urina no rastreio de adultos assintomáticos, à luz da melhor evidência
disponível.
Métodos
Foi realizada uma pesquisa bibliográfica de meta-análises, revisões
sistemáticas, ensaios clínicos aleatorizados e controlados, normas de
orientação clínica e artigos de revisão, nas bases de dados Cochrane Library,
Trip Database, Dare, National Guideline Clearinghouse, Finland Evidence Based
Medicine Guidelines, PubMed, UpToDate, Indexde Revistas Médicas Portuguesas e
nas citações dos artigos encontrados, utilizando os termos MeSH urinalysis e
mass screening. A pesquisa foi limitada aos artigos publicados até Março de
2012 em inglês e português. Para avaliar o nível de evidência e estabelecer a
força de recomendação foi utilizada a taxonomia SORT (Strength of
Recommendation Taxonomy) da American Academy of Family Physicians.6
Foram seleccionados os artigos que incluíam indivíduos adultos, assintomáticos,
que tinham realizado a análise sumária de urina sem indicação clínica. Os
outcomes avaliados foram a percentagem de análises anormais, alteração na
conduta clínica (acarretando mais exames, por vezes invasivos), efeitos
adversos para o doente e diagnóstico precoce com melhoria da morbi-mortalidade.
Foram excluídos os artigos repetidos ou que não cumpriam os critérios de
inclusão no que se refere à população, comparação ou outcomes.
Resultados
Foram encontrados 459 artigos e seleccionados, por cumprirem os critérios de
inclusão, uma revisão sistemática, dois artigos originais, duas normas de
orientação clínica e um artigo de revisão (Quadro_I).
A revisão sistemática, de Munro J et al (1997), incluiu 11 estudos. Em sete
destes a amostra era constituída por indivíduos adultos, sendo que em todos foi
analisada a percentagem de resultados anormais, em cinco a alteração da conduta
clínica e em dois os efeitos adversos para os indivíduos com resultados
anormais. Dois trabalhos foram realizados na admissão a um serviço de urgência
de medicina e os restantes em condições pré-operatórias. De uma forma global
foram realizados 6740 testes, sendo apresentados os resultados no quadro_I.
Analisando-os, verifica-se que em cerca de um terço dos casos foram encontrados
resultados anormais, sendo que a grande maioria destes foi ignorada pelos
médicos, uma vez que a alteração na conduta clínica foi rara (0,1% a 2,8%).
Esta diferença, entre o número de resultados anormais e as intervenções
subsequentes, poderá estar relacionada com a heterogeneidade da população
estudada, assim como com as possíveis classificações de resultados anormais
utilizadas. Outra explicação poderá ser a importância dúbia atribuída pelos
clínicos a este exame como rastreio de doença. Nenhum dos estudos demonstrou
qualquer evidência de que uma análise sumária de urina anormal, pré-operatória,
esteja associada com algum evento adverso peri ou pós-cirurgia, não sendo
preditivo de complicações.7 Apesar de não ser objecto desta revisão, destaca-se
o facto de ausência de benefício parecer ser independente da idade, de acordo
com este trabalho.
Quanto aos artigos originais, Ruttimann S et al (1994) comparou a realização da
análise sumária de urina com e sem indicação clínica, na admissão a uma clínica
de Medicina Interna (que incluía actividades preventivas e serviço de
urgência). Consultando o quadro_I, verifica-se que, em 427 doentes, apenas 0,7%
foram submetidos a alteração da conduta clínica (3 doentes).8 No segundo artigo
original, Pashayan N et al (2002) realizou um estudo retrospectivo referente ao
uso da análise sumária de urina com e sem indicação clínica na admissão a um
serviço de Medicina e Cirurgia no Líbano, onde as actividades preventivas estão
sub-desenvolvidas e a prevalência de doença renal parece ser diferente da
registada no ocidente, de acordo com os autores. Participaram 462 doentes,
tendo sido alterada a conduta clínica em apenas 2 doentes que realizaram o
exame como rastreio e em 26 que o fizeram com indicação clínica. Comparando com
a realização por rastreio, a análise sumária de urina efectuada por suspeição
clínica apresentava uma probabilidade duas vezes superior de ser anormal, três
vezes maior dessa anomalia ser investigada e 19 vezes superior de produzir um
novo diagnóstico.9
No que diz respeito às normas de orientação clínica, as Finland Evidence Based
Medicine Guidelines (2010) estabelecem que a análise sumária de urina deve ser
um teste considerado de forma individual, de acordo com a indicação clínica,
com uma força de recomendação A.10 O Institute for Clinical Systems Improvement
(2010) considera que não existe evidência que suporte o uso da análise sumária
de urina sem indicação clínica, emitindo uma recomendação contra o seu pedido
como teste de rastreio (força de recomendação A).11
O artigo de revisão incluído, de Kiel D et al (1987), refere que não existe
evidência na literatura que suporte o pedido de análise sumária de urina em
indivíduos assintomáticos (Nível de evidência 3).12
Conclusões
A análise sumária de urina é um teste simples, não invasivo e pouco
dispendioso, o que pode contribuir para a sua realização de forma rotineira e
sem critério clínico e para explicar o reduzido investimento em estudos
recentes que determinem o benefício real deste teste em indivíduos
assintomáticos. No entanto, após a análise dos resultados obtidos nesta
revisão, a evidência contra o uso sistemático da análise sumária de urina está
claramente demonstrada em estudos realizados há várias décadas. Foi também
perceptível o baixo valor que os clínicos atribuem a este exame, ignorando na
grande maioria os seus resultados, independente de anormais ou não.
No entanto, são ainda necessários mais estudos para clarificar se o uso da
análise sumária de urina diminui a morbi-mortalidade em populações
seleccionadas, como os diabéticos ou os hipertensos, assim como determinar se a
ausência de benefício é independente da idade, como parece demonstrar a
literatura.7
Como em Portugal persiste a sua realização, muitas vezes sem critério clínico
adequado, sugere-se a definição de novas orientações no seu pedido.
Em conclusão, o uso da análise sumária de urina como teste de rastreio em
adultos assintomáticos não traz qualquer benefício, pelo que não está
recomendado (SOR A).