Tratar a fibrilhação auricular previne a demência?
CLUBE DE LEITURA
Tratar a fibrilhação auricular previne a demência?
Does treatment of atrial fibrillation prevent dementia?
Ricardo de Matos Ferreira, Filipa Frias
Internos em formação específica de Medicina Geral e Familiar
USF Valbom, AceS Grande Porto II – Gondomar
Kalantarian S, Stern TA, Mansour M, Ruskin JN. Cognitive impairment associated
with atrial fibrillation: a meta-analysis. Ann Intern Med 2013 Mar 5; 158 (5 Pt
1): 338-46.
Introdução
A fibrilação auricular (FA) tem sido associada a um aumento do risco de
comprometimento cognitivo e demência. O objetivo deste estudo foi realizar uma
meta-análise de estudos examinando a associação entre FA e disfunção cognitiva
(DC).
Métodos
Foi realizada pesquisa nas bases de dados bibliográficas da MEDLINE, PsycINFO,
Cochrane Library, CINAHL e EMBASE e busca manual de referências de artigos.
Foram selecionados estudos prospetivos e não prospetivos com estimativas de
risco para a associação entre FA e DC. Os dados foram extraídos por dois
avaliadores independentes que selecionaram dados sobre características do
estudo, as estimativas de risco, métodos de classificação de FA, outcomes e
qualidade metodológica.
Resultados
Foram incluídos vinte e um estudos na meta-análise. A FA foi significativamente
associada com um maior risco de DC em pacientes, com história (primeiro evento
ou recorrente) de acidente vascular cerebral (AVC) – [risco relativo (RR),
2,70; IC 95% 1,82-4,00] - e na população em geral, incluindo os pacientes com
ou sem história de AVC (RR, 1,40; IC 95% 1,19-1,64). A associação no último
grupo, permaneceu significativamente independente do antecedente de AVC (RR
1,34; IC 95% 1,13-1,58). No entanto, verificou-se heterogeneidade significativa
entre os estudos na população em geral (I2 = 69,4%). Limitando a análise aos
estudos prospetivos, os resultados foram semelhantes (RR 1,36; IC 95% 1,12 -
1,65). Restringindo a análise aos estudos de demência, eliminou-se a
heterogeneidade de forma significativa (P< 0,137), mas não se alterou a
estimativa combinada de forma substancial (RR 1,38; IC 95% 1,22-1,56).
Limitações
Há um viés inerente por causa de variáveis de confundimento nos estudos
observacionais. Verificou-se uma heterogeneidade significativa entre os estudos
incluídos.
Discussão
A evidência sugere que a FA está associada a um maior risco de DC e demência,
com ou sem história de AVC. São necessários mais estudos para elucidar a
associação entre a FA e os diferentes subtipos de demência, bem como a causa de
DC.
COMENTÁRIO
Nos últimos anos têm surgido na literatura vários estudos que procuram
estabelecer uma correlação entre FA e DC, ou mais frequentemente, ente FA e
demência.
Algumas revisões descrevem que, na generalidade, os estudos transversais
mostraram uma associação significativa entre FA, DC e demência. No entanto,
estes estudos são particularmente sensíveis aos diferentes vieses.
Neste contexto, encontram-se na literatura estudos longitudinais recentes, de
maior nível de evidência, para avaliar a ligação entre a FA e demência.1-4
Na última década, vários fatores de risco vascular (hipertensão, obesidade e
síndrome metabólico, hipercolesterolémia, sedentarismo) têm sido associados com
demência vascular, com a doença de Alzheimer,1 ou DC a longo prazo.5 Na sua
maioria, os estudos transversais mostraram uma associação significativa entre a
FA, DC e demência. No entanto, estes estudos são particularmente sensíveis aos
diferentes vieses, daí a realização de estudos longitudinais.1
Então, qual é a importância e implicação clínica da FA e de que forma é
consistente a sua associação com desenvolvimento de disfunção cognitiva? A
presente meta-análise procurou congregar informação disponível pretendendo
chegar a uma conclusão sólida.
A FA é uma patologia com uma prevalência importante, estimando-se que mais de
25% dos indivíduos com mais 40 anos nos Estados Unidos desenvolverão FA até ao
final da vida.6
Sendo que uma parte significativa da população portuguesa tem uma idade média
de 41,8 anos,7 esta patologia poderá ter implicações relevantes em termos de
saúde pública.
Contudo, de acordo com os dados, verifica-se a existência de uma percentagem
relevante de doentes sem diagnóstico de FA. A acrescentar, mesmo quando
diagnosticada, uma parte significativa não estará com terapêutica instituída.
Num estudo multicêntrico, verificou-se que a prevalência da FA não
diagnosticada previamente em indivíduos com mais de 60 anos de idade foi de
20,1%.8 No mesmo trabalho, 23,5% dos diagnosticados não recebiam tratamento com
anticoagulantes orais.8
O adequado tratamento apresenta uma primordial importância na terapêutica
preventiva da FA. No entanto, é de ressalvar que o tratamento excessivo poderá
ser prejudicial.9 Por outro lado, o tratamento anticoagulante em doentes com FA
terá influência positiva ao nível do prognóstico de desenvolvimento de
disfunção cognitiva.10 Este facto alerta-nos para a importância do tratamento
anticoagulante nos intervalos terapêuticos devidos.
Assim, qual será a importância do risco relativo de disfunção cognitiva na
presença de FA, entre 1,5 e 2,5 atribuído nesta meta-análise? Terá este
implicações clínicas? O que se verifica é que esta relação é mais premente nos
estudos prospetivos, com maior robustez e evidência. A implicação clínica será
relevante, considerando a prevalência significativa da FA e tal tenderá a
agravar-se com envelhecimento da população.
Contudo, nesta meta-análise foram observados vários pontos fracos. O estudo em
causa poderá apresentar viés do observador, uma vez que os dados dos estudos
foram recolhidos por dois observadores independentes.
Notório foi também o viés de confundimento e heterogeneidade de classificação
dos doentes. Tal ocorreu na presença de co-morbilidades, bem como nos
diferentes métodos de designação de FA e outcomes definidos (demência versus
DC).
Um outro ponto será o facto de a história de AVC ter sido determinada por
registos médicos e raramente por avaliação imagiológica, o que se poderá
traduzir num viés de má classificação.
A análise de subgrupos de demências, que separa demência de Alzheimer e
demência vascular, deve ser observado com reservas, pela necessidade de
autópsia confirmatória.
Avaliando os pontos fortes, salienta-se a pesquisa na literatura e
originalidade do estudo, único com resultados isolados para demência e DC. A
inclusão de estudos de diversas regiões geográficas permite também a
generalização dos resultados. Por fim, o vasto número de eventos observado e o
uso de critérios objetivos para determinação do risco de viés são elementos de
valorização deste artigo.
Assim, há alguma evidência de que a FA pode estar associada com a diminuição
cognitiva e demência, mas esta deve ser suportada por estudos longitudinais a
longo prazo mais consistentes.
Concluindo, o contributo desta meta-análise é de extrema pertinência e congrega
a evidência presente da correlação entre FA e disfunção cognitiva. No entanto,
deve ser interpretada considerando as fragilidades dos estudos incluídos.
O outcome de défice cognitivo deve passar a ser primordial, ao invés de
demência (o mais utilizado nos estudos antecedentes). O outcome de demência é
menos abrangente e pressupõe gravidade, relativamente a défice cognitivo leve/
moderado. Assim, conclusões futuras mais sólidas da relação entre FA e DC
permitirão preconizar atitudes de prevenção efetivas.