Iodo e o desenvolvimento mental das crianças: o início de uma nova
suplementação?
CLUBE DE LEITURA
Iodo e o desenvolvimento mental das crianças: o início de uma nova
suplementação?
Iodine and mental development of children: a new supplement?
Ivone dos Santos Martins
Interna de Medicina Geral e Familiar
USF Lagoa, Unidade Local de Saúde de Matosinhos
Bougma K, Aboud FE, Harding KB, Marquis GS. Iodine and mental development of
children 5 years old and under: a systematic review and meta-analysis.
Nutrients 2013 Apr 22; 5 (4): 1384-416.
Introdução
O iodo é necessário para a produção de hormonas tiroideias, tiroxina e
triiodotironina, que desempenham um papel importante nos mecanismos de
crescimento e desenvolvimento dos órgãos. Os níveis de triiodotironina ao nível
cerebral parecem ser muito sensíveis à deficiência de iodo mesmo em casos de
deficiência leve ou moderada. Em casos extremos, níveis baixos de hormonas
tiroideias devido a uma deficiência grave de iodo podem causar danos
neurológicos cerebrais, principalmente durante o período fetal e neonatal, o
que pode resultar num quadro clínico de cretinismo.
A seguinte revisão avalia a evidência existente sobre o impacto da deficiência
de iodo no desenvolvimento mental de crianças com idade igual ou inferior a 5
anos.
Métodos
Realizou-se uma revisão sistemática de artigos na base de dados Medline
(Janeiro de 1980 a Novembro de 2011). Incluíram-se ensaios clínicos
randomizados ou não-randomizados com suplementação de iodo nas grávidas e/ou
crianças e estudos de coorte prospectivos estratificados de acordo com os
níveis de iodo nas grávidas ou de acordo com os níveis de iodo nos recém-
nascidos, tendo como grupos de controlo o uso de placebo, um controlo histórico
ou crianças da mesma idade iodo-suficientes. O outcome avaliado correspondia ao
desenvolvimento mental (cognitivo, linguagem e motricidade fina) de crianças
com idade igual ou inferior a 5 anos. Excluíram-se os artigos: ensaios em
recém-nascidos pré-termo ou com baixo peso ao nascimento; uso de testes
psicométricos não estandardizados; ensaios que avaliavam apenas o
desenvolvimento motor; ensaios que estratificavam as mães de acordo com um
indicador de disfunção tiroideia, o anticorpo antiperoxidase. Os resultados do
efeito do tratamento foram apresentados através do cálculo da medida
estatística dimensão do efeito (d).
Resultados
Os estudos incluídos foram classificados de acordo com o desenho de estudo.
(1) Dois ensaios clínicos randomizados e controlados onde as mulheres recebiam
suplementação com iodo ou um placebo: um ensaio demonstrou diferenças
estatisticamente significativas no desenvolvimento mental em crianças cujas
mães foram suplementadas com iodo durante a gestação comparativamente com o
grupo placebo; o outro ensaio não demonstrou diferenças significativas.
Dimensão do efeito dos dois ensaios d=0,68.
(2) Oito estudos de intervenção não-randomizados onde as mulheres recebiam
suplementação com iodo e outras não: quando a suplementação era efectuada no
período pré-concepcional ou numa fase inicial da gravidez, quatro estudos
demonstraram existir uma diferença estatisticamente significativa no
desenvolvimento mental das crianças cujas mães foram suplementadas
comparativamente com o grupo sem suplementação; contudo, outros quatro estudos
não demonstraram diferenças significativas. Quando a suplementação com iodo era
efectuada numa fase mais tardia da gravidez (2.o e 3.o trimestres) não se
encontraram diferenças estatisticamente significativas. A dimensão do efeito
dos estudos de intervenção não randomizados foi d=0,46. A dimensão do efeito
média tendo em conta os estudos de intervenção randomizados e não randomizados
foi d=0,49, o que correspondeu a uma perda de 7,4 pontos no QI (Quociente de
inteligência) devido ao défice de iodo.
(3) Estudos observacionais de coorte prospectivos onde as grávidas eram
estratificadas de acordo com os seus níveis de iodo e seguidas até ao parto:
demonstraram que as crianças cujas mães tinham níveis normais de iodo no
primeiro trimestre pontuavam melhor nos scores de desenvolvimento mental.
Porém, dos nove ensaios incluídos, três não demonstraram diferenças
significativas. A dimensão do efeito foi d=0,52, correspondendo a uma diferença
de 7,8 pontos no QI.
(4) Estudos observacionais de coorte prospectivos onde crianças com
hipotiroidismo congénito foram avaliadas durante vários anos de follow-up: dois
estudos demonstraram diferenças estatisticamente significativas em termos de
desenvolvimento mental em crianças com hipotiroidismo comparativamente com os
controlos, mas outros dois estudos não demonstraram diferenças. A dimensão do
efeito foi d=0,54, isto é, 8,1 pontos de diferença no QI.
Discussão
Os estudos de intervenção mostraram melhores resultados nas crianças cujas mães
foram suplementadas com iodo antes ou durante a gravidez comparativamente com a
não suplementação. Os estudos observacionais demonstraram uma relação positiva
entre o nível de iodo na mãe ou na criança e o desenvolvimento mental. Os
estudos também demonstraram melhores resultados quando a suplementação era
iniciada mais precocemente, na fase pré-concepcional ou inicial de uma
gravidez. A dimensão do efeito desta revisão traduziu-se numa perda de QI entre
6,9 a 10,2 pontos em crianças com idades inferiores ou iguais a 5 anos devido à
deficiência de iodo. Contudo, os autores desta revisão consideram que a melhor
estimativa de perda de QI seja 7,4 pontos, baseando-se nos resultados dos
estudos de intervenção, pois apresentaram desenhos de estudo relativamente
rigorosos. Contudo, os resultados desta revisão devem ser interpretados de
forma cautelosa, devido às limitações da maioria dos ensaios aqui incluídos.
Outras variáveis, como a dieta familiar, o nível de escolaridade da mãe, o
estado nutricional da mãe, o nível socio-económico, entre outros, podem
interferir nos resultados e raramente foram tidas em conta nos estudos de
intervenção. Os tamanhos amostrais, 50 participantes em média por grupo, foram
também geralmente pequenos.
As escalas utilizadas para avaliação do desenvolvimento mental foram as mesmas
na maioria dos estudos, contudo muitas vezes não estavam adequadas ao contexto
local, pelo que foram modificadas. Contudo essas modificações não foram
validadas, podendo não ter sido as apropriadas. Muitos ensaios também não
discriminaram os resultados tendo em conta o desenvolvimento da linguagem e o
desenvolvimento cognitivo.
Somente dois estudos abordaram os níveis de sal iodado na dieta das mães. Os
estudos que avaliaram a suplementação com iodo decorreram em áreas com pouco ou
nenhum acesso ao sal iodado. Esta suplementação, que providenciou iodo
suficiente para um curto período de tempo, não resolve a situação a longo prazo
dos países com deficiência endémica de iodo. Para determinar se o sal iodado
tem o mesmo efeito no desenvolvimento mental que a suplementação de iodo são
necessários mais estudos nestes países.
Conclusão
A melhor estimativa de perda de pontos no QI devido à deficiência de iodo é
7,4. Contudo, são necessários mais ensaios controlados e randomizados com
metodologias mais rigorosas, bem como ensaios que avaliem a eficácia do sal
iodado.
COMENTÁRIO
A maior parte do iodo vem da alimentação (peixe, marisco, lacticínios).1 As
doses diárias recomendadas de ingestão de iodo são 150 µg/dia num adulto e 250
µg/dia na grávida.2 A Direcção-Geral da Saúde emitiu uma orientação
recomendando a suplementação com iodo sob a forma de iodeto de potássio 150-200
µg/dia desde o período pré-concepcional, durante a gravidez e aleitamento
materno exclusivo.3
A deficiência de outros nutrientes, e não só do iodo, bem como o ambiente
familiar, o acesso aos cuidados de saúde e educativos, as condições
socioeconómicas da família, entre outros factores, têm um impacto sobre o
desenvolvimento mental das crianças.4 Muitas destas variáveis não foram
controladas nos estudos de intervenção, podendo ter alterado os resultados dos
mesmos.
Estudos recentes apontam para a existência de um défice ligeiro a moderado de
ingestão de iodo na maioria dos países europeus.5 Em Portugal, verificou-se que
83% das grávidas do Continente consomem menos iodo do que é recomendado.5 A
maioria dos estudos de intervenção que avaliaram o efeito da suplementação foi
realizada em países com deficiência grave de iodo: nestes países a
suplementação tem benefícios perante um défice endémico. Dos dois estudos de
intervenção realizados na Europa, um demonstrou diferenças significativas no
desenvolvimento mental das crianças cujas mães foram suplementadas, enquanto o
outro não. Nos países com deficiência ligeira/moderada de iodo a suplementação
farmacológica de 200 µg/dia em grávidas não parece causar efeitos adversos.5
Contudo, também é possível que doses excessivas de suplementação possam causar
disfunção tiroideia.6 Para se implementar a suplementação farmacológica com
iodo é necessário também comprovar a não maleficência deste tratamento, sendo a
evidência ainda limitada.6
O timing para o início da suplementação é também importante, visto que a
suplementação iniciada numa fase mais tardia da gravidez não demonstrou
diferenças significativas em termos de desenvolvimento mental das crianças
comparativamente com a não suplementação, sendo necessários mais estudos para
confirmar estes resultados.
Os programas de iodização universal do sal poderiam eliminar a necessidade de
suplementação específica na gravidez e aleitamento.6 Assim, torna-se relevante
levantar a questão se o uso de sal iodado, bem como a sensibilização para
dietas nutricionalmente ricas em iodo não poderiam ser uma alternativa à
suplementação farmacológica.