Tratamento farmacológico das angiodisplasias gastrointestinais
EDITORIAL
Tratamento farmacológico das angiodisplasias gastrointestinais
Pharmacological treatment of gastrointestinal angiodysplasia
Cristina Chagas
CHLO, Gastroenterology, Lisboa, Portugal
Correio eletrónico: franciscoecristinachagas@gmail.com
As angiodisplasias são as malformações vasculares adquiridas mais comuns do
tubo digestivo e constituem a principal causa de hemorragia do intestino
delgado em indivíduos com mais de 50 anos1,2. Numa proporção importante de
casos são múltiplas (40-60%) e/ou têm localização múltipla no tubo digestivo
(20%), o que realça a importância de uma avaliação completa nestes doentes1,5.
A hemorragia apresenta-se na maioria das vezes de forma intermitente, com
anemia ferropénica e/ou sangue oculto positivo nas fezes, e menos
frequentemente sob a forma de hemorragia manifesta. No intestino delgado as
angiodisplasias são a causa mais comum de hemorragia digestiva obscura -
manifesta grave. O risco de recidiva hemorrágica em indivíduos não tratados é
de cerca de 50%5.
A presença de estenose aórtica, insuficiência renal crónica ou doença de Von
Willebrand são fatores de risco para hemorragia por angiodisplasias1,2.
O mecanismo de formação das angiodisplasias do tubo digestivo não é
completamente conhecido. O fator implicado parece ser a obstrução crónica,
intermitente e de baixa intensidade das veias da submucosa, resultante de um
aumento de contractilidade da muscular própria, conduzindo a congestão capilar
e hipoxia local, induzindo a formação de fatores de crescimento vasculares
endoteliais locais (VEGF), com neovascularização e aparecimento de malformações
vasculares1,5. Os doentes com estenose aórtica parecem possuir uma forma
adquirida de deficit de fator de Von Willebrand tornando-os mais predispostos à
ocorrência de hemorragia. Estes mecanismos patogénicos constituem potenciais
alvos terapêuticos1,3.
As angiodisplasias do trato digestivo superior estão na origem de hemorragia
digestiva em cerca de 4-7% dos doentes que se apresentam com quadro de
hemorragia digestiva alta não varicosa1. No intestino delgado as
angiodisplasias são a causa mais comum de hemorragia digestiva média, cerca de
50% dos casos, sobretudo em indivíduos mais idosos1. O cólon é a localização
mais frequente das angiodisplasias. Nos indivíduos ocidentais, o cólon
ascendente e o cego são as localizações mais comuns, enquanto nos indivíduos
asiáticos é o colon descendente. As angiodisplasias do cólon podem ser a causa
da hemorragia digestiva baixa em cerca de 3-40% dos casos. O diagnóstico de
angiodisplasias do cólon em indivíduos assintomáticos, sem anemia e sem
história de hemorragia, durante a realização de colonoscopia, tem uma
prevalência estimada de 0,83% e não implica necessariamente qualquer atitude
terapêutica, uma vez que no decurso da sua história natural o risco hemorrágico
parece ser baixo1.
O tratamento eficaz das angiodisplasias ainda constitui muitas vezes um desafio
clínico. Estão disponíveis várias modalidades terapêuticas no tratamento das
angiodisplasias, dependendo a sua escolha da forma de apresentação da
hemorragia, do número e localização das lesões, condição clínica, patologias
associadas e medicação do doente, e da resposta a tratamentos prévios. A
endoscopia com uso de coagulação com argon-plasma é atualmente a modalidade de
escolha e com melhor relação custo/eficácia1,3, a angiografia com embolização
superseletiva e a cirurgia estão habitualmente reservadas para a falência do
tratamento endoscópico e/ou para o tratamento das hemorragias graves e
potencialmente fatais. O tratamento farmacológico é utilizado nos doentes com
lesões múltiplas e numerosas, inacessíveis a tratamento endoscópico, na falha
de outras modalidades terapêuticas, ou quando outras terapêuticas mais
invasivas estão contraindicadas pelos riscos ou efeitos colaterais associados,
ou pelas comorbilidades do doente. O tratamento farmacológico pode ainda ser
utilizado como adjuvante de outras modalidades terapêuticas. Os tratamentos
farmacológicos utilizados têm sido a terapêutica hormonal, a talidomida e os
análogos da somatostatina. Existem 5 estudos publicados que avaliam o
tratamento hormonal combinado (estrogénio e progesterona), muitos deles com
limitações na sua metodologia e desenho. O efeito benéfico encontrado nos
estudos mais pequenos, retrospetivos ou não controlados não foi reproduzido nos
2 estudos com maior número de doentes e metodologias mais adequadas1,3. Se bem
que existam alguns dados da literatura que apontem para um potencial benefício
da hormonoterapia nalguns subgrupos de doentes, nomeadamente nos doentes com
insuficiência renal crónica e na doença de Rendu-Osler-Weber1,3, a evidência
atual é de que não existe lugar para este tipo de terapêutica, como primeira
linha, na grande maioria dos doentes com angiodisplasias não hereditárias. O
modo de atuação da talidomida é explicado pela sua ação antiangiogénica,
através da supressão do VEGF1,3,5. A sua eficácia foi inicialmente reportada em
vários casos clínicos e pequenas séries. Posteriormente, um estudo mais
recente, prospetivo, randomizado e controlado, utilizando 100 mg diários de
talidomida per os durante 4 meses, demonstrou eficácia, com paragem da
hemorragia em 46%, e diminuição de mais de metade dos episódios de hemorragia
em 71% dos doentes, comparados com 0% no grupo controlo1. Esta terapêutica
parece ainda possuir eficácia na prevenção da recidiva hemorrágica a médio
prazo mesmo após a sua suspensão1,3. A evidência atual suporta o uso de
talidomida em doentes sem indicação para outras terapêuticas ou na sua
falência. A dose recomendada parece ser a de 100 mg/dia, uma vez que doses mais
elevadas podem associar-se a maior número e gravidade de efeitos adversos,
nomeadamente neuropatia periférica, hepatotoxicidade e falência hepática aguda,
estando contraindicado nas mulheres em idade fértil1,3. A lenalidomida é um
novo fármaco inibidor da angiogénese, potencialmente menos tóxico, cujo papel
neste tipo de patologia carece de melhor avaliac¸ão1.
Vários mecanismos de ação como a inibic¸ão da angiogénese, aumento da
resistência vascular, diminuição do fluxo sanguíneo no território esplâncnico e
estimulação da agregação plaquetária podem explicar o papel do octreótido no
tratamento da hemorragia por angiodisplasias1,3-5. O seu elevado custo e a
necessidade de administração subcutânea diária durante períodos prolongados de
tempo são potenciais desvantagens desta terapêutica. O long-acting release
octreótido (LAR), uma formulação de libertação prolongada de administração
intramuscular mensal, tem sido mais recentemente utilizada. A sua eficácia não
foi ainda avaliada em ensaios prospetivos randomizados e controlados. A maior
evidência para a utilização do octreótido é suportada por uma meta-análise de
Brown et al. de 2010, onde foram estudados 62 doentes, de coortesprospetivas,
com uma taxa de resposta global de 0,76 para o octreótido vs. taxas de recidiva
de 44-54%, reportadas em estudos que avaliaram a história natural de doentes
sem tratamento1,4. A prevalência de cirrose hepática, insuficiência renal
crónica, doença cardíaca valvular, nomeadamente estenose aórtica, e
anticoagulação oral variou nos vários estudos, assim como o tipo de análogo,
octreótido ou LAR, as dosagens utilizadas e o tempo de administração da
terapêutica4. Está de facto por esclarecer qual a dosagem mais eficaz de LAR
octreótido, se 10 ou 20 mg, o tempo de utilização recomendado e se existe algum
efeito do fármaco no desaparecimento das angiodisplasias.
Neste número do GE, Salgueiro et al. apresentam os resultados de um estudo
retrospetivo em que se procura determinar a eficácia e segurança do LAR
octreótido na prevenção da recidiva hemorrágica, em doentes com
angiodisplasias, comparando os níveis médios de hemoglobina, necessidades
transfusionais e número de hospitalizações, antes e durante o tratamento com
este fármaco. Foram estudados 16 doentes, com uma idade média de 68,5 anos, a
maioria com lesões no intestino delgado, e a quem foram administradas 2 doses
de 10 e 20 mg, i.m. mensais do fármaco, em 9 e 7 doentes, respetivamente,
durante um período médio de 12 meses. Dois doentes em quem foram utilizadas
doses mais elevadas experimentaram efeitos adversos5.
Apesar de retrospetiva, do número limitado de indivíduos e da ausência de um
grupo controlo, trata-se da série publicada com maior número de doentes e em
que apenas 2 deles não responderam à terapêutica com LAR octreótido, um
alegadamente por não adesão. Neste estudo não ficou demonstrado maior benefício
com utilização de doses mais altas do fármaco, mas a presença de estenose
aórtica (6 de 16 doentes) influenciou positivamente a resposta ao tratamento.
De acordo com os autores, o aumento da agregação plaquetária condicionado pelo
LAR octreótido poderá compensar em parte o deficit adquirido de fator de
VonWillebrand descrito nestes doentes. Não é claro se algum destes doentes
modificou ou suspendeu a terapêutica anticoagulante ou antiagregante durante o
período do estudo, qual a percentagem de doentes submetidos a cirurgia com
colocação de prótese valvular aórtica, o timing da cirurgia e se algum desses
fatores influenciou a resposta ao tratamento. De facto, é controverso o papel
da cirurgia valvular aórtica no curso clínico das angiodisplasias do tubo
digestivo. Alguns estudos apontam para a reversão das alterações dos
multímetros do fator de Von Willebrand, da função plaquetária e até mesmo
cessação dos episódios de hemorragia, após cirurgia valvular aórtica1. Por
outro lado, a obrigatoriedade de anticoagulação oral após cirurgia pode ser um
fator que contribui para a manutenção ou agravamento da hemorragia, se bem que
tal não tenha ocorrido pelo menos num estudo1.
O LAR octreótido parece ter um papel promissor no manejo destes doentes, mas
serão necessários estudos prospetivos, randomizados e controlados que utilizem
várias doses do fármaco, num número suficiente de doentes, de modo a poder-se
esclarecer a sua eficácia em diferentes subgrupos clínicos.