SERÃO EXPLICÁVEIS
OS CONFLITOS VIOLENTOS EM ÁFRICA?
NOTAS DE LEITURA
I.
INTRODUÇÃO
Sem considerar a conflituosidade que percorreu o continente, precedendo o desmantelamento dos impérios coloniais, é um facto que, na sequência das independências
políticas e até hoje, num espaço de quase meio século, a maior parte dos países africanos tem conhecido, ao longo do tempo (e em particular, no período pós Guerra Fria),
situações dolorosas, mais ou menos prolongadas, mais ou menos recorrentes, de tensão
e turbulência política e social (movimentos de contestação popular, golpes militares,
guerras civis, rebeliões de grupos mais ou menos organizados que ora estabilizam ora
desencadeiam hostilidades no âmbito da luta de guerrilha…), por vezes culminando em
massacres e confrontos de grande violência.
Bouquet (2008) menciona que dos 35 conflitos violentos identificados no mundo,
13 se situavam em África; também na mesma data, cerca de 70% das decisões da ONU
e do Conselho de Segurança diziam respeito ao continente… Esta realidade, largamente
mediatizada, foi e continua a ser um dos aspectos que, em conjunto com outros, tais
como pobreza, fome, expansão da infecção pelo vírus HIV/Sida, catástrofes naturais,
confere maior visibilidade às “Áfricas” e aos africanos, difundindo e alimentando uma
visão catastrófica, redutora e afro pessimista.
Embora nos últimos anos se tenham reduzido o número de ocorrências e registado
alguns progressos em matéria de resolução e de alcance da paz (não obstante persistirem situações de conflito endémico, como ainda se verifica na República Democrática
do Congo – RDC), as suas consequências cumuladas são incalculáveis, dramáticas e
devastadoras. A violência provoca milhares de vítimas, directas e indirectas: estimouse, por exemplo, que, naquele país, a guerra civil desencadeada no leste, em Outubro
de 1996, tenha dizimado cerca de 7% da população; na do Ruanda quase 1 milhão.
Mas também gera pobreza, abandono de terras, de animais, de culturas, problemas
alimentares, fome, aspectos que se espelham a uma escala bem mais ampla do que a
do local do confronto, minando as reais possibilidades de progresso socioeconómico
das populações. Destroem-se habitações, infra estruturas, equipamentos, desestruturamse famílias, perdem-se laços de coesão e relações de confiança, há milhões de deslocados, populações em fuga, traumatizadas por rapto e recrutamento forçado de crianças
e de mulheres…Pode afirmar-se que os conflitos violentos exacerbam as condições que
à partida os podem ter provocado, criando uma espécie de armadilha de que é difícil
escapar, um ciclo vicioso de destruição e empobrecimento que, por sua vez, alimenta
mais violência.
O interesse pessoal pelas problemáticas do desenvolvimento e da cooperação condicionou o aprofundamento da questão dos conflitos armados à escala do continente,
sobretudo aqueles que surgiram nos últimos 20 anos. No âmbito de trabalho de campo,
desenvolvido no norte de Moçambique, relacionado com processos de avaliação participativa das carências mais sentidas pelas populações, a referência recorrente à segurança,
no espaço do quotidiano, evidenciou-se como condição prioritária e de maior significado
na luta contra a pobreza, mais do que o acesso a serviços, a bens públicos, tais como a
educação ou a saúde. Embora a questão securitária tenha ganho grande relevância no
quadro geopolítico pós 11 de Setembro de 2001, é um facto que, à escala local, partindo
das respostas dadas aos inquéritos realizados, os efeitos da guerra civil que destabilizou
o país (acordos de paz em 1992), deveriam ainda estar bem presentes.
Generalizando, considera-se que, nas regiões afectadas por conflitos, urge encontrar
a paz, conseguir a reconciliação entre partes em confronto, quando se reclama a necessidade de cumprir os “Objectivos de Desenvolvimento do Milénio”. Todavia há que ir
mais além, no sentido da estabilização social, da liberdade política e do desenvolvimento
económico, cujas fórmulas estão em constante experimentação, sobretudo na sua adaptação aos contextos africanos.
Numa perspectiva geográfica, de geopolítica – “tudo o que diz respeito a rivalidades de poderes ou de influências sobre territórios e as populações que neles vivem:
rivalidades entre poderes de vários tipos – não só entre estados mas também entre
movimentos políticos e grupos armados mais ou menos clandestinos – e rivalidades pelo
controlo ou dominação de territórios de maior ou menor dimensão” (Lacoste, 2006: 8)
– importa salientar que, dada a grande diversidade do continente e a evolução das conjunturas, os conflitos registados nas últimas décadas recobrem realidades muito diversas.
Na perspectiva da sua prevenção e resolução, não obstante as grandes dificuldades sentidas, há que ponderar as respectivas especificidades geográficas, procurando detectar
quais as causas mais ou menos próximas, os impulsos ou factores actuantes na sua
durabilidade e reprodução. Neste plano todos correspondem a situações únicas, com
histórias e geografias singulares, pelo que quaisquer interpretações generalistas serão
sempre redutoras, embora possa haver pontos comuns.
Mas será possível compreender a guerra?
O presente texto, em que se reúnem reflexões várias, feitas sobre o tema ao longo
de anos, tomou como ponto de partida a leitura de um trabalho, coordenado por A.
Nhema e P. Zeleza, datado de 2004, mas apenas publicado em 2008, The Roots of African Conflicts. The causes and the costs que, por puro acaso, encontrámos no expositor
de uma livraria, amplamente guarnecido de livros sobre questões africanas. Trata-se da
primeira parte duma obra, complementada com um segundo volume, The resolution of
African Conflicts: the Management of Conflicts resolution & Post Conflicts Reconstruc-
tion, realizada no âmbito do Programa de Investigação sobre conflitos africanos da
OSSREA (Organização para a Investigação em Ciências Sociais na África Oriental e
Austral), na sequência de uma conferência internacional realizada em 2004 em Adis
Abeba.
Organizado em 9 pontos (acompanhados de extensa bibliografia em língua inglesa),
além da introdução e do prólogo, reúne em 244 páginas contribuições de vários autores,
expressando posições por vezes bastante antagónicas e passíveis de controvérsia que
denunciam olhares diferentes sobre as realidades sociais africanas.
II.
O FIM DO MUNDO BIPOLAR E AS FALSAS ESPERANÇAS DE PAZ
Na viragem da década de 90, com o fim da Guerra Fria, parecia possível desanuviar as tensões políticas subjacentes a muitos dos conflitos existentes.
Se num primeiro tempo, nalguns casos, as esperanças pareciam confirmar-se pelos
factos – fim do “apartheid” na África do Sul, independência da Namíbia, retirada do
cubanos de Angola, acordos de paz em Moçambique – noutros a instabilidade permaneceu, como no Sudão e no Uganda, ou mesmo recrudesceu, como na região dos Grandes Lagos, mencionada por muitos autores como a “primeira guerra pan-africana”
(Marchal, 2008); por outro lado, na África Ocidental, citada nos anos 80 como pólo de
estabilidade, eclodiram confrontos armados de grande violência: basta citar, entre outros,
os que se sentiram na Libéria e na Serra Leoa.
Esta constatação veio contrariar as expectativas da comunidade internacional e de
muitos africanos nas possibilidades oferecidas pela dita “abertura” democrática, na
altura praticamente imposta pelas instituições internacionais e países credores, para
garantir a paz, a estabilidade, o desenvolvimento… Argumentava-se que a realização
de eleições multipartidárias seria condição necessária (mas não suficiente) para lutar
contra governos corruptos, centralistas, fundamentados numa acumulação “rendeira”.
Esperava-se que, com a participação da sociedade civil e novas formas de governança,
fosse possível o alargamento das oportunidades de acesso ao “bem-estar” de toda a
população, de forma equitativa e em plena liberdade… Todavia, esquecia-se (ou subestimava-se) que a democracia tem de surgir a partir de dentro, não é compatível com
estados frágeis (sem fiscalização e instituições que promovam avaliação de contagens
os processos eleitorais podem ser facilmente explorados por elites ambiciosas), com
situações de pobreza extrema e de exclusão e não funciona quando as forças competindo
pelo poder, são motivadas por interesses de natureza individual, regional, clânica ou
religiosa.
O impacto positivo anunciado revelou-se, em vários países, largamente defraudado.
Em muitos deles os novos governos saídos de eleições que, com frequência, consagraram
nas urnas os líderes do passado, foram ou ainda são contestados internamente na sua
legitimidade. Tal contestação reflecte a manifestação, por parte de determinados grupos
da população, de sentimentos reais, ou manipulados, de exclusão, de discriminação, de
subordinação a interesses particulares, não sendo raro que provoquem a eclosão de
conflito armado, por vezes duradouro e violento (refiram-se, por exemplo, o caso de
Angola pós 1991 e o de Madagáscar a seguir à primeira volta da eleição presidencial
de 2001).
É importante lembrar também que a dita “abertura democrática” ocorreu num
momento em que a maior parte dos países africanos se confrontava com elevadas dívi-
das externas, se reduziam os montantes da “ajuda internacional” e faziam sentir os duros
efeitos das reformas negociadas com as instituições de Bretton Woods. A aplicação dos
programas de ajustamento estrutural (PAE), condicionadores da liberalização e privatização das economias, criou profundo mal-estar social, e enfraqueceu substancialmente
a capacidade dos Estados (até então presentes em todos os sectores da vida económica
e social dos respectivos países) para fazer face às necessidades fundamentais das populações e sustentar as redes clientelistas (que asseguravam em parte a sua legitimidade)
(Ferreira, 2001), minando o respectivo poder simbólico.
Neste contexto assistiu-se à emergência de toda a espécie de reivindicações,
políticas e económicas, ao aparecimento de uma multiplicidade de novos actores em
competição pelo acesso aos recursos, à explosão do sector “informal” no quadro de
estratégias de sobrevivência e de reprodução social. O “país real”, expressão citada
por Bayart (1989), escapava-se assim, cada vez mais, a qualquer controlo…enquanto
o “país legal”, de base cada vez mais estreita, continuava a ser o interlocutor privilegiado dos doadores internacionais (Brunel, 2004: 83). Condicionando a prestação
da ajuda à diminuição das despesas públicas e à limitação das funções económicas do
estado, revelaram não compreender o seu carácter “patrimonial” do Estado em África.
Este, para conseguir subsistir e manter a sua limitada base de apoio, teve de se “criminalizar”, isto é, desenvolver dinâmicas de acentuada patrimonialização e cleptocracia (Bayart et al., 1997), o que se saldou numa deriva para a informalização das
sociedades políticas.
Como seria possível mostrar as vantagens da participação democrática quando,
para a maior parte das famílias, as condições de vida se agravaram, a insegurança e a
criminalidade progrediram, a falta de confiança nas instituições públicas aumentou e as
frustações cresceram?
III. EXPLICAÇÔES E IDEIAS FEITAS SOBRE AS CAUSAS DOS CONFLITOS
EM ÁFRICA…
A produção de informação sobre a problemática dos conflitos em África é imensa.
Quase sempre acompanhada de interpretações simplistas e mesmo pouco correctas, em
que se confundem causas com efeitos, tem contribuído para uma série de ideias feitas,
na base de falsas evidências. Lendo os jornais, vendo as notícias televisivas e as imagens
que as acompanham, as referências mais frequentes acentuam a importância das “questões étnicas”, de “antigas” rivalidades tribais ou religiosas; estar-se-ia perante formas
de violência gratuita, uma espécie de ressurgimento de nova “barbárie”, relativamente
à qual a comunidade internacional pouco ou nada tinha a ver.
Sem se negar a importância dos “etnicismos ou de outras fracturas identitárias
como as de natureza religiosa, estes aspectos mascaram frequentemente realidades bem
mais complicadas: por exemplo, no caso da guerra do Ruanda, associada quase sempre
à abertura de feridas não cicatrizadas nas relações históricas entre Tutsis e Hutus (subestima-se que Hutus massacraram outros Hutus e não unicamente Tutsis), raramente se
alude à existência de oposições fortes quanto à posse da terra, em contextos de pressão
demográfica ou, melhor, de forte “saturação” demográfica, de problemas alimentares de
difícil solução, num território com altíssimas densidades populacionais que, no período
colonial, sob administração belga, era possível aligeirar através de migrações para a
actual RDC, ex Congo Belga.
Calas (1999) refere diversos trabalhos de geógrafos sobre a região dos Grandes
Lagos (onde desde finais da década de 50 se têm registado situações de grande violência), nos quais se dá grande enfoque à questão demográfica. Embora aquela constitua
um aspecto relevante, agindo a montante, no desencadear da grave crise social e política
que culminou nos combates e atrocidades de 1994, não pode ser vista só por si como
a causa do genocídio ruandês, extremamente intrincado nas suas motivações para se
reduzir a uma explicação unilateral.
No diversificado domínio das ciências sociais também são numerosos os estudos e
teorias elaborados sobre o assunto. A maior parte dos trabalhos debruça-se sobre a questão,
sempre complexa, da identificação dos factores próximos e remotos, internos e externos,
que se conjugam a várias escalas, para motivar a eclosão de conflitos armados, na perspectiva da sua prevenção e resolução; na essência, trata-se de tentar encontrar quais as suas
“raízes” profundas, as vicissitudes que os precederam e acompanharam o seu desenrolar
num dado contexto internacional, aspectos fundamentais para dar corpo a medidas eficazes
e acções realistas no plano da resolução. Desta forma, evitar-se-ia a aplicação de “receitas
únicas” de pacificação que frequentemente se têm revelado pouco credíveis.
Na literatura relacionada com o assunto é possível encontrar referências a múltiplas
causas sempre inter cruzadas, entre as quais: heranças do passado colonial, desde a fase
do tráfico de escravos à de dominação imperialista, nos seus múltiplos aspectos; crise
do Estado pós colonial, importado e não legitimado internamente, relacionada com
mudanças na configuração das conjunturas e da divisão internacional do trabalho; ingerências externas num contexto de crescente globalização; manipulação de clivagens
étnicas ou religiosas; pobreza e baixo desenvolvimento humano, com aprofundamento
de grandes desigualdades sociais, o que “permite aos mais ricos comprar armas e obriga
os mais pobres a venderem-se” (Bouquet, 2008); cobiça de recursos, factor que, nos
últimos anos, graças aos trabalhos de economistas ao serviço do Banco Mundial, entre
os quais os de P. Collier et al., (1999, 2000, in Zeleza, 2008:18-20) têm tido grande
aceitação, não só no plano científico mas também entre os operadores e agentes da
prestação de ajuda internacional.
IV. VELHAS OU NOVAS GUERRAS?
Ainda no plano geral coloca-se uma questão que tem sido objecto de certa controvérsia: será que, actualmente, as guerras africanas correspondem a um tipo novo de
conflito, a “novas guerras”, segundo a leitura de muitos geopolíticos (Kaldor, 1999)?
Com o fim do mundo bipolarizado, vários autores afirmam que se verificou uma
transformação na natureza dos conflitos. De confrontos de base ideológica, opondo exércitos regulares a uma guerrilha mais ou menos organizada, sustentados por apoios internacionais poderosos, ter-se-á passado a um tipo novo de guerra: surgindo no quadro
interno dos países, envolvem grande número de actores, públicos e privados (rebeldes,
milícias, mercenários, traficantes, senhores de guerra), recobrindo as lógicas próprias da
globalização, relacionadas com a informalidade e o transnacional; desenrolam-se muitas
vezes de forma descontínua no tempo, com fases e picos de intensidade diferentes; suscitam a criação de focos territoriais de grande tensão que contrastam com áreas de
relativa acalmia e acabam frequentemente por se regionalizar, extravasando para lá das
fronteiras políticas, criando “sistemas de conflitos” (Marchal, 2004) que desestabilizam
áreas bastante vastas, sem que por vezes, se identifiquem claramente motivações e pro-
tagonistas. Estas características que, segundo Kaldor (1999), traduzem formas de “globalização subalterna” (isto é, relações profundas entre estados vizinhos devidas à
transnacionalização e informalização de fluxos económicos e humanos, permitindo difundir imaginários e mobilizar actores não estritamente nacionais), implicam que a sua
análise tenha de integrar as dimensões regionais e mesmo transnacionais.
Outros aspectos mencionados como particularizantes das “novas guerras” dizem
respeito às motivações – os discursos ideológicos, que só persistem nas etiquetas dos
movimentos em luta (Movimento de Libertação do Congo, Movimento Patriótico da
Costa do Marfim…), rapidamente dão lugar a práticas de violência incontrolada, a
manifestações criminosas e predatórias; à falta de apoio popular; ao facto de afectarem
sobretudo civis; à inexistência definida de “linhas” da frente ou zonas de insegurança
(durante a Guerra Fria os movimentos opositores “resguardavam-se” em “santuários”,
à partida inatacáveis, porque fora das fronteiras políticas); à incorporação de segmentos
muito jovens da população (os meninos soldados).
Mas será que se pode de facto falar de um novo tipo de conflituosidade?
Para muitos críticos do paradigma das “novas guerras”, também designadas por
“guerras pós modernas” ou de “3ª geração”, estas não são mais do que uma amálgama
de velhas guerras (Henderson e Singer, 2002; Kalyvas, 2001 in Zeleza, 2008), salientando-se que não há evidências de “rupturas fundamentais” entre umas e outras. Refira
‑se, por exemplo, que, nalguns países, nos conflitos que precederam a independência se
sobrevalorizou a componente ideológica minimizando-se os efeitos de predação, o fenómeno da incorporação de crianças, as clivagens políticas internas que já estavam presentes (Foucher, 2006).
E a “guerra contra o terror”, termo introduzido no discurso político dos EUA na
sequência dos atentados de 11 de Setembro, não representará um tipo novo de conflito?
Sobre esta questão as opiniões dividem-se. No plano analítico dá-se a ideia de que existe
um inimigo único e transnacional.
Mas quem são os combatentes e os inimigos? Como definir a identidade de um
terrorista? São actores dentro de um estado, ou do exterior? A tendência é considerá-los
exteriores ao estado e referir os estados como patrocinadores do terrorismo. Quais as
motivações? Que espécie de guerra? Se é uma guerra, deve ser vista no âmbito das
convenções internacionais, mas o tratamento dos prisioneiros de Guantánamo mostrou
que não. Quais os respectivos quadros espacial e temporal? Quanto às causas, estas são
igualmente difíceis de precisar. Os grupos envolvidos são dispersos e têm um leque de
motivações muito vasto.
Argumenta-se que o “terrorismo” veio substituir o comunismo como novo inimigo,
o que permite alimentar uma permanente economia de guerra e produz, necessariamente,
nacionalismos e patriotismos na nova era global. A atenção dada pelos EUA ao continente
africano, no quadro geopolítico pós 2001, tem a ver com a difusão do Islão militante,
com a vulnerabilidade de determinados estados encarados como “santuários” de redes
“terroristas” globais e com a necessidade de recursos energéticos seguros localizados
no exterior do Médio Oriente. Esta viragem não trouxe porém benefícios tangíveis aos
africanos: apenas certos aumentos de investimento ou algum apoio aos seus interesses
fundamentais de desenvolvimento e democratização. Todavia os efeitos perversos são
vários. Em muitos países, através de legislação visando a segurança, em que se dá
prioridade a acções anti terroristas, minam-se os direitos humanos internacionais: facilita-se a impunidade, as prisões arbitrárias, a detenção e a tortura, estrangulam-se os
direitos dos refugiados e dos que pedem asilo, limitam-se a liberdade de associação, de
expressão, de reunião e a privacidade, dando uma nova possibilidade à discriminação
racial e à intolerância religiosa (Lumina, 2008: 181-199). Estas circunstâncias condicionaram o surgimento de novos conflitos ou o reacender de outros, opondo muçulmanos a cristãos; afectaram receitas do turismo e desviaram recursos para programas de
defesa e segurança. Por exemplo, no Corno de África, a “guerra contra o terror” estimulou antigas rivalidades e conflitos e deu cobertura a regimes autoritários desacreditados, como o da Etiópia. Insinuando-se junto dos EUA, aquele país conseguiu
“almofadar” a sua afectada reputação internacional a seguir às pouco fiáveis eleições
de 2005, atacando o movimento União dos Tribunais Islâmicos, acusado de ter ligações
com a Al-Qaeda e que controlava grandes áreas da Somália.
Se o continente quer passar de “ um peão a um jogador global, realizando o sonho
dourado do pan-africanismo, do desenvolvimento, da democracia e da integração regional”, aquelas tendências terão de ser revertidas (Lumina, 2008).
V.
MULTIDIMENSIONALIDADE DAS CAUSAS DOS CONFLITOS ACTUAIS
Numa perspectiva de enquadramento histórico Zeleza (2008) e Mazrui (2008) põem
em evidência que não é possível encarar as guerras africanas de forma isolada. Sem
subestimar o forte impacto em matéria de perdas de vidas, Zeleza aponta que, no continente e no decurso do século XX, os 180 milhões de mortos estimados não têm
dimensão comparável aos totais registados noutras regiões do mundo, mencionando em
particular os muitos milhões provocados quer pela Segunda Guerra Mundial, quer pela
revolução soviética ou pela maoísta.
Contudo estas afirmações, e todas as que se baseiam na contabilização de vítimas
das guerras, devem ser vistas com prudência. Qual o rigor dos cálculos feitos? Que
critérios foram retidos na avaliação contabilística apresentada? Que vítimas? Militares,
civis? Mortos em combate, apenas? Como se identifica uma guerra em relação a um
conjunto de confrontos de guerrilha ou insurreições pontuais, registados durante um
certo período de tempo, mais ou menos longo? Como é possível comparar custos em
vidas, em períodos históricos diferentes? Quais as armas utilizadas?
Relativamente ás posições doutrinais em matéria de interpretação dos conflitos armados violentos em África, aqueles autores salientam que cada caso é um caso, embora os
respectivos substratos geopolíticos tenham muitos pontos comuns. Analisá-los, numa
perspectiva dialéctica, pressupõe que se estabeleçam constantes interligações, complexas,
imbricadas e multidimensionais, entre um conjunto de factores internos, (sociais, económicos, culturais, políticos), marcadores das especificidades das situações locais e das suas
histórias, e uma multiplicidade de factores externos, identificáveis a várias escalas (locais,
nacionais, regionais e transnacionais), consequência da evolução da globalização.
1. As heranças do passado
A maioria das contribuições apresentadas no trabalho que serviu de base à análise
em presença, confere grande importância explicativa ao peso de um passado de violência. Remontando ao tráfico de escravos, prolongou-se no período colonial, marcando
profundamente a memória colectiva dos africanos: “enquanto as guerras mais letais
ocorreram entre populações negras, as suas “raízes” ligam-se a um legado branco”
(Mazrui 2008: 36).
Kastfelt (in Zeleza, 2008: 1) reforça esta ideia: “a região que se estende desde o
sul do Sudão, passando pelo norte do Uganda até ao Ruanda, Burundi e RD Congo,
tem longa história de cultura de terror, de violência sob diferentes formas – tráfico
esclavagista , trabalho escravo nas plantações – aspectos que têm de ser equacionados
para explicar o presente”.
Um outro legado do colonialismo, recorrentemente questionado, relaciona-se com
a artificialidade das fronteiras. No entanto, há pouca evidência prática quanto ao papel
da disputa fronteiriça como despoletador de tensões entre estados no pós Guerra Fria.
As fronteiras, actualmente, são quase sempre espaços onde o Estado está cada vez menos
presente; correspondem porém, em muitas secções, a áreas activas, permeáveis, onde
florescem diferentes tipos de tráficos lícitos e ilícitos, que retiram até vantagens da
existência dos traçados herdados.
Desde 1964, na sequência da primeira vaga de independências políticas, no âmbito
da OUA (desde 2000 UA – União Africana) reafirmou-se a intangibilidade das fronteiras. Posta em causa, sem sucesso, na guerra do Biafra (Nigéria) em 1966, ou alimentando
litígios ligados a processos de rectificação (por exemplo, entre o Burkina Faso e o Mali
em 1974; entre a Mauritânia e o Senegal, de 1989 a 1990), aquela disposição foi quebrada com a separação da Eritreia em 1993 e constitui motivo de tensão latente e de
conflito armado (1998) entre este país e a Etiópia.
Todavia, é na economia política do colonialismo que, segundo Zeleza (2008:15),
se enraízam muitas das guerras civis actuais. Ainda assim, aquele autor sublinha que
na interpretação das mesmas não se pode minimizar, a interferência do tipo de dinâmicas que suscitaram e caracterizaram a inserção das “Áfricas” na fluida ordem global pós colonial e neoliberal, entre as quais a formatação e estrutura dos estados
nascidos da descolonização: “os poderes coloniais destruíram velhos métodos de
resolução bem como instituições políticas tradicionais sem terem criado outros que
efectivamente os substituíssem; geraram-se por isso situações diversas de desordem
social e política. Com a independência, nasceram estados frágeis com pouca experiência governativa, legitimados à partida externamente sem o terem sido pelas populações do seu território”.
Esta questão tem sido bastante enfatizada na discussão sobre a génese dos conflitos
actuais: “o verdadeiro motor é a luta política em torno do estado e foram as condições
destas lutas que se modificaram no tempo” (Fall, 2006: 111). Henderson (2008: 51-70)
defende também, com base num modelo analítico muito teórico (que vale o que um
exercício de correlação vale), que a partir da Segunda Grande Guerra a maior parte dos
confrontos eclodiu em relação com aspectos domésticos, de natureza política (tipo de
regime), económica (nível de desenvolvimento) e cultural (polarizações étnicas), em
países cujas elites se revelaram incapazes de responder ao duplo desafio da construção
do estado e da nação. Trata-se porém de perspectivas redutoras, porque minimizam o
impacto de factores exógenos, impossíveis de negligenciar no mundo actual.
2. Conexões regionais e dinâmicas globais
Contrariamente a uma ideia largamente mediatizada – a da marginalização do
continente no quadro mundial – as “Áfricas” estão estreitamente conectadas com as
redes da economia política global, embora nem sempre de forma positiva – isto é, com
incidência no real desenvolvimento e segurança das pessoas. Na maior parte das vezes
aquelas ligações estabelecem-se através de redes criminosas, sobretudo de comércio
ilegal de recursos naturais ou de armamento, o que contribui, exacerba ou prolonga
mesmo as situações de conflituosidade. Mas também muitas outras, ditas legais, por
exemplo ligadas à realização de IDE (investimento directo estrangeiro), podem não ser
eficazmente conduzidas ou suficientemente monitorizadas, de modo a garantir os direitos humanos e a produção de bem-estar à maior parte da população. Esta realidade
confere grande importância ao estudo das conexões existentes entre factores internos
e externos, influentes na instigação, facilitação, agravamento e prolongamento dos
conflitos.
Alguns autores, como Chabal e Daloz, 1999 in Mclean, 2008: 169, dão maior
relevância explicativa aos factores internos ligados à construção histórica da vida social
africana: “a desordem é um instrumento político em África e a violência, como veículo
para alcançar objectivos políticos, age de acordo com aspectos da cultura política africana
em que sobressai o “respeito” pela ostentação do chefe”.
Mclean (2008) admite que “é razoável assumir que o comportamento de certos
líderes políticos (por exemplo o falecido Mobutu Sese Seko) possa ter contribuído para
criar uma situação encorajadora da guerra civil. Citando Regher, afirma que não é a
pobreza em si que conduz à guerra mas sim sentimentos de injustiça social e de falta
de equidade: aquela surge como resposta social explosiva à crescente “criminalização
dos estados”. Porém acentua que, embora tratando-se de uma visão importante a reter,
é de natureza “afrocêntrica”: sobrevalorizando o mau funcionamento do estado, restringese a causas internas, obscurecendo o papel das relações externas na evolução das estruturas sociais e dos modelos de governança, bem como o das relações entre guerras
recentes e globalização.
Esta interpretação é igualmente defendida por Clapham, 1996, 2001 e Bayart, 2000,
2004, in Mclean, 2008: 169. Ao contrário de Chabal sustentam que o principal factor
no desenvolvimento de relações patrimoniais, são as intervenções internacionais/globais.
As estratégias de extraversão, adoptadas pela maior parte dos líderes africanos na sequência das independências, posicionou-os na “interface”, política nacional – economias
políticas internacionais, com o objectivo, mais ou menos explícito, de sustentar o regime
ou, em determinados casos, de acumulação pessoal.
O período da Guerra-fria ofereceu oportunidades para tais práticas, dado o empenho das superpotências em definir “suportes aliados”. Com o seu fim, o interesse dos
actores externos declinou; mas, em países com governos plenos de debilidades e fortes
desigualdades sociais, em que o acesso ao poder é a principal forma de fugir à pobreza,
novas estratégias de extraversão puderam corporizar-se, tais como alargamento sem
precedentes dos mercados, inovações tecnológicas, avanços nos sistemas de comunicação que facilitam fluxos de mercadorias, de pessoas, de capitais…Na nova conjuntura,
actores estatais e não estatais (notáveis, militares, empresas, senhores de guerra…), têm
agora oportunidade de usar, ampliar ou mesmo transformar as redes transnacionais em
redes de pilhagem, de corrupção, de crime, de violência, reveladoras do “lado negro”
da globalização, as quais permitem alimentar e fazer perdurar muitas guerras civis.
Destaquem-se as possibilidades oferecidas ao comércio de armas (controlado até ao fim
da Guerra Fria mas posteriormente banalizado) e ao “comércio” de homens (mercenários), em relação com a mobilidade acrescida das pessoas.
Nesta perspectiva, quaisquer acções determinadas na resolução dos conflitos violentos que afectam muitas regiões do continente, precisam também de mobilizar redes
globais, mas de natureza diferente das que subjazem às situações de guerra, cujos efeitos positivos se começam a detectar. Este facto não implica que se negue o papel central
que os africanos têm de assumir na determinação do seu próprio futuro, nem anula o
argumento de que as culturas e tradições africanas são importantes para estabelecer
estruturas relevantes de governança, não obstante as consequências visíveis da globalização na mudança de comportamentos sociais e na proliferação rápida de uma “sociedade
civil” global.
3. Guerras pelos recursos?
Como se disse no início, no debate recente sobre as causas profundas dos conflitos
africanos, tem – se dado grande relevância ao significado dos factores económicos. Esta
corrente interpretativa, largamente influenciada pelos trabalhos de Collier et al., (2000),
enfatiza que, no cerne dos mesmos, e em particular num continente reconhecido pelas
suas riquezas naturais, se encontram principalmente motivações ligadas a ambições e
interesses desmedidos de cariz económico (greed), definidos em função de determinadas
agendas, mais do que ressentimentos políticos, de natureza ideológica (grievances).
Enquanto grande número de analistas refere a escassez e a desigual distribuição de
recursos económicos, aspectos associados a situações de grande pobreza, e de vincadas
assimetrias sociais, como factores passíveis de interferir no surgimento de conflitos e
guerras civis, Collier et al., demonstram que não é a escassez mas sim a abundância de
recursos o principal motor no despontar de rebeliões: luta-se pelo controlo dos mesmos,
não só para garantir auto financiamento mas também dividendos que a sua exploração
permite. Estruturar-se-iam assim verdadeiras economias de guerra, parasitárias, ilícitas,
predatórias e dependentes de redes criminosas exteriores, envolvendo numerosos e diversificados actores para quem a paz, em muitos casos, é incompatível com a manutenção
dos interesses em jogo.
Esta visão da guerra, tem sido amplamente mediatizada como se disse atrás. Se
bem que o controlo das riquezas de um país possa constituir-se como fonte de disputa
e de confronto, a maior parte dos críticos do paradigma económico acentua que não se
pode concluir que a pilhagem dos recursos seja a explicação fundamental.
Pérouse de Montclos (2006: 151), nota que os estudos realizados, “referindo-se às
vítimas e às populações em sofrimento, insistiram sobre as funções económicas dos
confrontos…Para alguns, os conflitos africanos seriam sobretudo motivados por objectivos de enriquecimento pessoal ou do clã. Trata-se de análises orientadas que dramatizavam e despolitizavam os conflitos armados”.
O apelo feito à comunidade internacional para desenvolver medidas capazes de
contrariar o acesso a determinadas matérias primas (caso dos diamantes na Serra
Leoa), destinadas a enfraquecer a capacidade militar dos rebeldes, é revelador duma
interpretação descontextualizada no plano político: dando maior ênfase a determinados aspectos mais notados, subestima ou esquece outras modalidades possíveis de
financiamento.
Também Mkandwire (2008: 106-135), salienta que as argumentações em causa não
podem aplicar-se a todas as situações de guerra, as quais teriam de ser sempre enquadradas numa perspectiva histórica. Considera que é difícil admitir que os movimentos
rebeldes sejam vistos ou como “agregados de interesses individuais” ou como meras
“empresas”, prontas para maximizar os lucros e actuar em função de escolhas “racionais”,
predefinidas. Se não invalida a hipótese de que as riquezas naturais de uma dada região
constituam um importante aspecto em jogo, e tanto maior quanto aqueles recursos são
estratégicos (petróleo), fáceis de circular (diamantes) ou raros, o seu significado tem de
ser avaliado no quadro de estados fragilizados, sem meios de compensar clientelas (entre
as quais muitas vezes se encontram as forças armadas), ou de garantir condições mínimas de segurança e protecção aos cidadãos: “as insurgências derivam basicamente de
aspirações políticas bloqueadas e, nalguns casos, de reacções de desespero” (Chapham,
1998 in Makandwire, 2008: 107).
Aquele autor desenvolve uma interpretação alternativa. Partindo da análise da
natureza e composição dos movimentos rebeldes, considera as interacções que se
estabelecem entre eles e as características da estrutura e organização social do país,
palco onde actuam. A origem urbana da maior parte dos que os integram (uma
juventude marginalizada, sem perspectivas de futuro, fácil de conquistar e de envolver em actividades ilícitas, criminosas), sugere que a génese de muitos conflitos se
encontra nas cidades, principalmente nas capitais. A cidade, e sobretudo a capital,
é a expressão concreta do poder, é um nó de articulação privilegiado com o mundo
global, é o local onde mais se sentiram os efeitos da longa crise económica e social,
induzida por más políticas e exacerbada pelo impacto dos PAE. No seio das elites,
a luta pelo poder, através da mobilização de identidades, gera rivalidades e fracturas
étnicas: projectadas nas áreas camponesas, criam uma “mistura explosiva” facilmente
incendiada.
Já no que concerne as condições de base do terreno político onde os conflitos
emergem Mkwandire refere que os “estados rendeiros” serão os mais vulneráveis à
rebelião (porque patenteiam níveis mais elevados de privação do que os exportadores,
facto que parece confirmar as teses de Collier). Todavia, não são apenas motivações
de cariz económico que conduzem à guerra, encarada por vezes somente na sua faceta
mais brutal e de aparente incoerência de objectivos. Há aspectos de natureza política
subjacentes: o enquistamento da estrutura social de acumulação nas economias “rendeiras” é agente provocador de violento descontentamento social, sobretudo junto dos
mais jovens, sinal visível de negligência económica à escala do país.
VI. INSEGURANÇA ALIMENTAR: INSTRUMENTO E CONSEQUÊNCIA
DOS CONFLITOS
Um aspecto largamente aprofundado pela sua influência no surgimento, mas
também na reprodução, dos conflitos recentes no continente diz respeito às interligações que se estabelecem entre os mesmos, a existência de situações de fome e de
insegurança alimentar, versus pobreza, da maior parte da população afectada, e a ajuda
alimentar de emergência. Estas questões implicam uma reflexão sobre a dinâmica
alimentar da guerra e sobre a falência das políticas implementadas pelos governos
africanos em favor de uma produção capaz de garantir a segurança alimentar (SA) às
suas populações.
O conceito de SA pressupõe, genericamente, que um país, uma região ou as
famílias, tenham capacidade de acesso ao consumo continuado de um conjunto de
produtos capazes de garantir, de acordo com os respectivos hábitos, uma alimentação
equilibrada dentro de níveis desejados. Tal situação depende da interacção de diferentes aspectos de natureza económica, social e política: disponibilidade de alimentos,
quer produzidos localmente (o que depende da produção agrícola e respectiva produtividade), quer importados, quer provenientes da ajuda externa; eficazes sistemas de
distribuição que coloquem os alimentos acessíveis às populações (o que se prende
também com os preços fixados); meios de acesso aos mesmos por parte das famílias,
tendo em conta os níveis de rendimento e determinados factores sócio-demográficos
(dinâmicas de crescimento, composição etária e por sexo, níveis de saúde e de escolarização, normas culturais, hábitos de consumo).
Nas “Áfricas”, grande parte das populações, desestabilizadas por guerras civis,
vivem e sobrevivem da agricultura, cujo papel na produção de subsistências é relevante,
embora insuficiente na maior parte dos países. As práticas agrícolas, não obstante a
diversidade regional, são ainda, salvo poucas excepções, de natureza pluvial (e por isso
vulneráveis aos aléas naturais), dominantemente extensivas, com baixa produtividade e
modesta produção de excedentes.
Segundo dados da FAO, cerca de 1/3 da população africana encontra-se em situação de subnutrição crónica, mesmo em países exportadores de produtos agrícolas, o que
se explica sobretudo pela forte incidência da pobreza e consequente falta de oportunidades de acesso a um conjunto de bens básicos, quer materiais (terra, água, sementes…),
quer sociais. Estimou-se que a importação de alimentos à escala continental poderia
atingir 13% ao ano em 2008, de modo a cobrir as necessidades alimentares de uma
população em crescimento, dada a insuficiência da produção local.
Sikod (2008: 199-213) e Brunel (2004: 174-181) sustentam que, actualmente, a
grave situação de insegurança alimentar de muitos africanos está cada vez mais relacionada com a ocorrência de conflitos; que é cada vez menor a relação entre fome e exposição ao risco climático (caso das regiões saelianas); que as situações graves de penúria
alimentar existem cada vez mais em regiões pouco povoadas mas ricas em recursos – “as
fomes actuais em África são consequência de lógicas de predação dirigidas contra as
populações e de processos de instrumentalização política pelos governos ou por movimentos políticos marginalizados”.
As consequências directas e indirectas da luta armada violenta no funcionamentos
dos sistemas de produção alimentar são devastadoras: degradação de ecossistemas,
destruição de capital físico e humano, desmantelamento das redes de capital social, das
associações comunitárias, dos equipamentos e das infraestruturas agrícolas; deterioração
da qualidade de vida; fuga das populações; emergência de crimes sexuais e de intimidação suscitando o enfraquecimento da coesão social, porque as famílias perdem alguns
dos elementos ou criam ódios entre si…
Por outro lado, as partes em confronto, tirando partido das dificuldades reais das
populações, conseguem canalizar em benefício próprio ajuda alimentar de emergência.
A partir de relatórios do WFP (World Food Programme) e da Millennium Task Force
(Sikod, 2008: 211), constata-se que aquela ajuda, providenciada no decurso de um conflito, pode contribuir para o mesmo e ser usada como arma pelas várias facções. Os
testemunhos de quem vive a guerra por dentro, revelam que os alimentos não conseguem,
muitas vezes, chegar às populações verdadeiramente necessitadas o que faz germinar
tensões e revoltas: em várias regiões, a falta de acesso das organizações humanitárias é
mesmo deliberadamente provocada.
Sendo a SA e o desenvolvimento agrícola as duas faces de uma mesma moeda, os
dois conceitos apontam no sentido de se aumentar a produtividade agrícola e o rendimento da maior parte das famílias que vivem da agricultura e de actividades com ela
relacionadas. Para tal são necessários um ambiente estável, lideranças com visão, uma
sociedade civil cooperante, o que, em muitas regiões do continente, é difícil de admitir
a curto e médio prazo…Neste contexto, o risco de guerra civil, motivado em parte por
deficiente fornecimento de alimentos, continua latente.
VII. GUERRAS E RELAÇÕES DE GÉNERO: REVISITANDO AS TEORIAS
DE F. FANON
Não obstante a questão das “causalidades” ser dominante na investigação sobre
conflitos em África, há temáticas relacionadas com o assunto, menos referidas, mas
não menos interessantes e motivadoras, tais como a problemática do género. A imagem
largamente difundida da mulher africana, excessivamente “tradicional”, sujeita a todo
o tipo de práticas adversas e discriminações, minimiza os importantes “avanços” já
conseguidos sobretudo a partir dos universos urbanos, no que respeita, por exemplo,
ao acesso e disponibilidade de bens produtivos, às decisões em matéria de fecundidade,
ou às intervenções na vida familiar. No entanto, e é essencial afirmá-lo, ainda é longo
o caminho a percorrer para que consigam de facto beneficiar de todos os direitos da
pessoa.
White (2008:136-165) revisita as teorias de F. Fanon (médico psiquiatra, considerado o primeiro teórico revolucionário anti – colonial), datadas dos anos 60. Procura
verificar a aplicabilidade das ideias daquele autor às realidades dos conflitos actuais,
atendendo sobretudo à situação das mulheres combatentes.
Fanon (que viveu na Argélia e acompanhou o desencadear da luta pela independência deste país) defendeu que havia uma justificação psicológica para a guerra dita
de libertação: a necessidade mental de vencer o efeito de uma espécie de complexo de
“inferioridade epidérmica”, de “uma capitulação debilitadora de identidades”, decorrente
de processos de subjugação e de anulação impostos pelo colonizador. A violência revolucionária seria o meio para alcançar a sua “saudável” transformação e, apontando a
existência de uma “simbiose entre os movimentos de libertação nacional e os movimentos de emancipação das mulheres, cujo estatuto na “ordem colonial” fora particularmente
diminuído, conclui que a violência revolucionária da libertação foi terapêutica para os
colonizados, incluindo as mulheres. Com efeito, muitas revoluções e governos africanos
incorporaram o activismo político feminino e feminista das mulheres africanas no processo.
Todavia, as conexões entre género e conflitos revelam grande complexidade e
apresentam significativa variação no tempo e no espaço. As mulheres são simultaneamente vítimas e agentes, sofrendo efeitos contraditórios de capacitação e de inferiorização. Considerando que os conflitos actuais se interligam com as guerras
pró-independência, White refere que os escritos de Fanon não dão relevância suficiente
a um conjunto de aspectos de natureza psicológica e política relacionados com o género:
a mentalidade “androcêntrica”, e não de “inferioridade epidérmica”, que moldou as
mentalidades de muitos homens africanos no período colonial, reforçou-se com a militarização da luta revolucionária e, depois, na sequência das independências, dado que
as forças armadas, como instituição, não são neutras sob ponto de vista do género. Desta
forma, no presente, exacerbaram-se efeitos negativos sobre muitas mulheres soldados,
perpetuaram-se injustiças e situações de desigualdade que, como Fanon predissera, seriam
erradicadas.
Com base em diferentes fontes de investigação, entre as quais depoimentos de
ex-mulheres combatentes, identifica alguns aspectos, “esquecidos” por aquele autor, que
entravaram o reconhecimento da contribuição das mulheres, em situação de igual para
igual, nas lutas anti e pós coloniais. Refiram-se, entre outros, a extrema distorção das
relações de género que caracterizaram o período colonial e se traduziram em violência;
o olhar europeu, manipulador do patriarcado e das estruturas sociopolíticas pré-coloniais
(por exemplo, as leis dos indígenas de acordo com o “costume”, reforçaram aspectos
patriarcais na mentalidade dos africanos colonizados); nacionalismos e militarismos de
base patriarcal, relacionados com a natureza das guerras (os homens lutaram para fazer
reconhecer a sua identidade, valorizando a coragem e o ideal masculino), condicionantes de relações de género em que as mulheres têm papel subordinado; resistência dos
homens africanos à transformação de mentalidades. Se normalmente aquelas são vistas
como simples vítimas das guerras (e são-no deveras) e não como agentes activos, o seu
papel é no entanto relevante (no combate directo, no apoio logístico não oficial, na
manutenção das economias de guerra…). Todavia, tal como refere White, a sua participação militar fica frequentemente envolvida em silêncio, porque muitas são recrutadas
ou forçadas a integrar os movimentos rebeldes ainda crianças ou muito jovens, contrariando recomendações internacionais.
Citando uma guerrilheira moçambicana (Maria José Artur, Frelimo, 1998) –“ para
uma mulher a decisão de envolvimento na guerrilha não se toma com ligeireza. Ela tem
muito mais a perder do que um homem” – e outros depoimentos, aponta que, não obstante a guerra ter produzido novas e mais poderosas identidades femininas, as forças
militarizadas continuam a ser instituições patriarcais porque mantêm uma divisão sexual
do trabalho, em que a maior parte das mulheres ocupa posições secundárias e subordinadas. Mesmo as que intervêm directamente nos combates, são olhadas muitas vezes
como “ajudando os homens”, não se subtraindo automaticamente a relações de exploração sexual. Contrariamente à ideia romântica do revolucionário que, na sua época,
Fanon construiu, a participação feminina nas guerras de libertação e nas contemporâneas,
bem mais complexas e difíceis de identificar como “libertadoras”, não contribuiu para
um mútuo reconhecimento. Assim, “embora a retórica revolucionária sugira que cada
participação na revolução é valorizada, não o é certamente de forma igualitária”.
VIII. SUDÃO, COSTA DO MARFIM E UGANDA: COMPLEXAS ESPIRAIS
DE VIOLÊNCIA
Através do estudo de casos específicos é possível aproximar a complexidade, singularidade e imbricação das motivações impulsionadoras de muitos dos conflitos violentos em África.
1. A situação no Sudão
No Sudão, praticamente desde a independência (formalmente proclamada em 1956),
tem-se vivido em situação de tensão política e de guerra civil devastadora embora com
períodos mais ou menos longos de interrupção. Estima-se que a guerra tenha provocado
mais de 2 milhões de mortos, suscitado a deslocação de muitos milhões de pessoas,
acantonadas em múltiplos acampamentos provisórios, sobretudo localizados em torno
da capital e outras cidades nos quais se nasce, vive e morre em condições de grande
vulnerabilidade.
Com uma posição geográfica de encruzilhada entre uma África “branca” a norte,
de dominância árabe e muçulmana, e uma África “negra” a sul, onde prevalecem religiões “tradicionais” e penetrou o cristianismo, apresenta grandes contrastes bio climáticos mas também de natureza étnica e linguística (134 línguas vivas, segundo Ali et
al., 2002, in Ahmed, 2008: 73). Apesar de actualmente ser um importante produtor de
petróleo, a maior parte das famílias é pobre, sendo muito acentuadas as desigualdades
sociais entre as várias regiões (estima-se que o PIB /habitante nas regiões do sul, onde
se localiza a maior parte das reservas petrolíferas, seja cerca de metade do das norte e
centro, onde o poder está polarizado).
Diversas análises deste conflito, na perspectiva das teses de Huntington (1999),
tendem a apresentá-lo como resultado de “choques de civilizações”, de confronto entre
dois mundos, cultural e religiosamente diferentes, reflexo das dicotomias existentes no
país. Trata-se, segundo Ahmed (2008), duma explicação demasiado simplista que sobrevaloriza aqueles aspectos. Se os contrastes mencionados “militaram contra uma situação
de paz, mesmo antes da independência”, nenhum deles é, só por si, suficiente para
explicar a guerra que duradouramente afectou o país.
Encontrar as “raízes” mais profundas do continuum de conflituosidade que caracteriza a história do Sudão, é remontar à época da administração anglo-egípcia (18991956). Neste período vincou-se uma grande diferença nas dinâmicas de evolução das
populações das regiões do norte e centro e das do sul, estas secundariamente envolvidas
na vida política, na partilha das riquezas e no acesso às oportunidades de desenvolvimento. Foram mesmo corporizadas várias disposições (proibição de usar nomes árabes
e utilizar o árabe como língua, de migrar para as regiões do norte, monopólio da educação por parte das missões cristãs…), a fim de contrariar a expansão islâmica, que
acabaram por as isolar.
Mas, se o colonialismo criou de facto um sentimento de exclusão nas populações
sulistas, há outros factos, muitas vezes subestimados, com grande poder explicativo em
várias fases do conflito: “para lá das dicotomias, a realidade das estruturas sociais e
políticas que caracterizam o mapa social do Sudão de hoje, em particular o papel das
elites que assumiram poder, autoridade e controlo de recursos produtivos, a partir da
capital ou de centros urbanos regionais, tornou-se um factor chave” (Ahmed, 2008: 78).
A multiplicidade das forças e interesses em confronto mostra que não há uma guerra
fruto de oposições norte – sul mas antes um conflito complexo em que, a vários níveis
e escalas, se manipulam dicotomias e sentimentos de exclusão.
A primeira fase da luta armada pós-independência desenrolou-se até 1972. No
plano de reconciliação, acordado em Adis Abeba, as regiões do sul obtiveram certa
autonomia política, situação vista com descontentamento pelas elites árabes. A paz
durou cerca 11 anos, mas a degradação da situação económica conduziu à dissolução
da administração das regiões do sul e à aplicação de leis islâmicas, ao país no seu
todo. Criou-se assim um clima favorável à luta pelo poder por parte de elites sulistas:
explorando relações étnicas, conseguiram mobilização popular e agregar alguns movimentos de oposição ao regime instalado, em torno do SPLM (Sudan People’s Liberation Movement).
As hostilidades, que atingiram grande violência, ressurgiram em 1983, numa década
marcada por dificuldades internas e externas (crise da dívida, corrupção, secas prolongadas, deslocações maciças de população, afluxo de refugiados, crescimento explosivo
das cidades, em particular de Cartum…). Em 1989, “numa altura em que se perspectivava a regulação negociada do conflito cujo corolário seria a instalação de um estado
laico, um golpe militar levou ao poder a NIF (National Islamic Front), ilustração sudanesa de um fenómeno muçulmano mais alargado, ligado ao ressurgimento do “Islão
político radical” (Ferreira, 2000: 103). Nos anos seguintes assistiu-se à multipolarização
e multiplicação dos movimentos de contestação ao regime instalado e ao aparecimento
de milícias armadas, o que complexificou a situação. Segundo Ahmed, tratava-se de um
fenómeno sem base popular, ligado à emergência de elites provinciais, compostas principalmente por jovens urbanos, “destribalizados”, por políticos destituídos ou exilados,
que não encontravam “espaço” de participação na vida económica, bloqueada e controlada pelas estruturas religiosas tradicionais.
Apenas em 2005 se começou a negociar um acordo de paz entre o governo e o
SPLM, em que se concedia maior autonomia às regiões do sul, esperando-se pôr fim à
mais longa guerra civil do continente... As eleiçõs gerais (2010) podem bem ser consideradas como um teste em relação ao referendo previsto para Janeiro de 2011, no qual
os habitantes do Sul decidirão se continuam ou não a fazer parte de um Sudão unificado.
Porém, em 2003, tinha-se aberto, na região do Darfour nova área de violência … Nalguns
meios de comunicação social difundiu-se rapidamente uma interpretação simplista: a
situação de conflito que eclodira naquela região, mimetizava a que opusera as regiões
do sul ao governo central. No entanto, segundo Lavergne (2000) “não se trata de um
confronto entre árabes muçulmanos e negros cristãos do sul, mas sim de uma instrumentalização de milícias, constituídas por camponeses proletarizados, formadas pelo
regime de Cartum, a fim de controlar recursos petrolíferos no sul, assim como terras
agrícolas”.
2. O caso da Costa do Marfim
Na Costa do Marfim, onde os confrontos violentos se desencadearam a partir de
2002, na sequência de um golpe de estado militar que depôs Konan Bédié, sucessor do
primeiro presidente pós – independência, Félix Houphouet-Boigny (FHB), falecido em
1993, Akokpari, tal como Ahmed no caso do Sudão, dá grande relevância à interferência das elites políticas no surgimento do conflito. O papel das mesmas na perspectiva
de controlo do poder evidencia-se através da manipulação do conceito de cidadania,
explorando a dicotomia, cidadão autóctone e estrangeiro residente, entre quem é ou não
é “pertença” de um dado território e, por esse facto, tem ou não tem direitos legítimos
a auferir da partilha dos recursos nele existentes. Esta questão colocou-se paradoxalmente
num país com grande diversidade etnolinguística que, ao longo da sua história, foi local
de acolhimento de importantes movimentos migratórios; em que, durante cerca de 4
décadas, o governo forte de FHB, através da intimidação, do suborno, mas também da
negociação e do clientelismo, conseguiu captar os principais opositores, assegurar a
estabilidade e a convivência étnica. País que, nos anos de 60/70, foi citado como um
bom exemplo africano em matéria de desenvolvimento, tem hoje uma economia e uma
sociedade fortemente desestruturadas e um território dividido em dois conjuntos – as
regiões do norte e centro e as do sul – separados por uma “zona de segurança”, controlada por forças internacionais.
Neste quadro de referências, como se poderá explicar a ruptura das condições de
estabilidade conseguidas, pelo menos na aparência, durante a governação de FHB, facto
que está no cerne dos combates que eclodiram?
Akokpari destaca a importância combinada dos seguintes aspectos: herança colonial,
fragilidade do estado pós colonial, e um conjunto de factores externos ligados à dinâmica
e às particularidades das conjunturas internacionais. Chamando a atenção para o processo
de formação do Estado e para o traçado das fronteiras herdadas, refere que a delimitação fronteiriça se verificou independentemente do processo de formação de um território, de um estado-nação. Na Europa a formação complexa de territórios resultou da
história das formações sociais e a fixação das fronteiras materializou as etapas finais.
Em África a fronteira “surge no seio de espaços que durante muito tempo funcionaram
na base da fluidez da vida de relação, como a única linha materializável, se bem que
nem sempre materializada. As descontinuidades criadas mudaram as relações pessoas/
espaço, impondo um esquema binário de inclusão/exclusão. Esta postura cria fracturas
no sustentáculo de uma vivência em conjunto, condição que levanta o problema da
legitimação territorial” (Pourtier, 1996).
Na Costa do Marfim, tal como noutros países, o conflito irrompeu quando o
estado herdado falhou na gestão da sua diversidade e na satisfação do contrato social
com os seus cidadãos. A polémica questão da cidadania surgiu apenas nas últimas
décadas, no início dos anos 90, centrando-se no conceito de marfinidade, objecto de
debate académico. Revelador de uma retórica xenófoba e nacionalista, valorizando as
características do legítimo marfinense, na base dos laços de sangue e do local de
nascimento, procura identificar, e separar, quem estava ou não legitimamente capacitado para ter acesso aos recursos do país, em particular a terra. Esta posição doutrinária implica, como corolário, a recusa do “outro”, do estrangeiro ou de quem é
considerado como tal (nestes incluem-se muitas das populações vivendo no território
desde longa data com origem imigrante, sobretudo nas regiões do norte; em 1998
aquelas representavam cerca de 26,3% da população, das quais 75,6% tinham raízes
no Burkina Faso e no Mali).
As motivações deste discurso são simultaneamente de natureza económica e política. Por um lado, argumentava-se que os estrangeiros eram demasiado numerosos no
país, sobretudo nas regiões do sul, competindo, no acesso aos recursos, com aqueles
que legitimamente tinham direito a eles. Desta forma excluíam-se dos direitos de cidadania as comunidades de origem migrante. Por outro lado, esta argumentação socioeconómica permitia concretizar ambições políticas de determinadas personagens, dado
que possibilitava a desqualificação e consequente exclusão de opositores. Como se explica
esta viragem no modo de olhar dos imigrantes? Onde se encontram os germens da crise
marfinense?
De acordo com a maioria dos estudiosos do tema, tem de se recuar no tempo para
compreender a agudização das tensões que se manifestaram violentamente após o falecimento de FHB (1993). Desde 1980 que se foram avolumando dificuldades económicas
com as respectivas sequelas políticas (a quebra dos preços das principais produtos de
exportação – café e cacau – traduziu-se por graves problemas financeiros, particularmente
sentidos nas regiões do sul, onde se estruturara um modelo económico de plantação,
agro exportador, envolvendo muitas famílias de origem migrante). A deterioração da
situação, com o empolamento da dívida externa e posterior subordinação do país às
políticas sob supervisão do FMI, com a crise do próprio Estado, agora privado dos
benefícios obtidos através das rendas, que acumulava e utilizava para manter clientelas
e “servidores obedientes”, teve sérios impactos negativos para a maior parte da população, provocando turbulência e contestação popular.
No plano político, a estratégia do velho Presidente, consistiu em priorizar o individual sobre o colectivo: conseguindo assim gerir a diversidade étnica do país sem
conflito, criou profundas tensões internas. Se relativamente à cidadania, esta era adquirida pela residência (o que igualava em direitos todas as populações, entre as quais os
imigrantes, mesmo não nacionalizados), já no plano sociocultural definiu-se uma ideologia que conferia ao grupo Akan (Baoulê), ao qual pertencia FHB, maior importância
e privilégios, numa estrutura hierarquizada da sociedade. Na base ficavam os dioula,
muçulmanos, designação genérica, construída para identificar segmentos populacionais
amorfos, diversificados étnica e religiosamente, sobretudo imigrantes estabelecidos no
país no decurso do tempo. Apesar das situações de exclusão decorrentes da estrutura
citada, FHB manobrou habilmente um sistema de compensações a membros das comunidades marginalizadas que lhe garantiram lealdade e permitiram manter a estabilidade
no país.
Após a sua morte, num quadro multipartidário, mas numa conjuntura de crise, a
competição pelo poder, provocou a crispação do jogo político: impôs-se um discurso
fracturante, manipulador das contradições preexistentes, utilizando a noção de marfinidade, o qual, apoiado pelos media, incendiou as relações entre grupos populacionais.
Em 2000 foram mesmo referendadas alterações à Constituição no que concerne às
cláusulas vigentes da cidadania: no artigo 35 ficou expresso que qualquer candidato a
presidente da República, deve ser um marfinense de origem, com pai e mãe também
nascidos no país. A entrada em vigor destas novas disposições coincidiu precisamente
com a ocorrência da rebelião de 2002, liderada por movimentos nortistas, que lançou o
país em grande desordem.
A negação da cidadania a certos grupos, seja em que base for (e a utilizada era
bastante ambígua), suscita quase invariavelmente conflito, porque os excluídos procuram
reabilitar a sua inclusão política ou provocar a secessão territorial. Permitindo leituras
simplistas sobre o lugar legítimo dos estrangeiros e dos nacionais, contribuiu para uma
regionalização que rapidamente se transformou numa etnicização do campo político. Os
confrontos entre forças governamentais e movimentos rebeldes, que se assumiam como
representantes de grupos de populações historicamente marginalizadas, em grande parte
com origem migrante, e que se acantonaram nas províncias do norte, traduzem o desenterrar das contradições políticas do país. Alastrando noutras regiões, denunciam as crescentes tensões e suspeições acumuladas entre as diferentes comunidades, contra todos os
que se julgam exteriores a um dado território (Banègas, 2002). Os variados esforços feitos
no sentido da reconciliação, que culminaram nos acordos de Ouagadougou, em 2007,
procuraram reverter as contradições geradas, de forma a garantir a estabilidade necessária
para o bem-estar das populações. Foi criado um governo de transição, onde estão representados os principais movimentos rebeldes, com a difícil missão de proceder ao desarmamento e preparar eleições, até hoje sistematicamente adiadas, tendo-se decidido a
retirada progressiva das tropas estrangeiras presentes no sul do país. No entanto, permanece
a desconfiança entre as partes, que trocam acusações mútuas. Será que a paz interessa
verdadeiramente a quem a discute? Haverá de facto intenção de a alcançar?
3. As guerras no Uganda
O ciclo vicioso de guerras longas e violentas que, praticamente desde a independência (1962), se tem vivido no Uganda, nas regiões do norte e leste, com graves violações dos direitos humanos, deixou um conjunto de feridas profundas, muito difíceis
de cicatrizar: milhares de mortes, em grande parte civis, incorporação nos grupos armados de numerosas crianças, muitas delas raptadas, incentivadas a praticar a violência,
destruição de gerações de jovens, milhões de pessoas deslocadas, degradação e ruína de
infra estruturas…
Ainda hoje, não obstante o acordo de cessação de hostilidades de 2006, persistem
situações de tensão, de marginalização económica e social, estando por resolver imensos
problemas de reparação de danos morais sofridos por uma multidão de vítimas, entre as
quais muitas mulheres e crianças, estas nascidas na guerra, sem qualquer relação fami-
liar…Em 2003, admitia-se que cerca da 63% da população residente naquelas regiões
vivia abaixo da linha de pobreza nacional, valor bem superior à média do país (37,7%).
No entanto, o Uganda, desde meados da década de 90, foi reconhecido, pelas
grandes instituições internacionais e muitos países dadores, como exemplo de bom
desempenho, em matéria de realização de reformas económicas, de desenvolvimento
humano, de estabilidade e de governação. De acordo com os dados mais recentes do
PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento 2007-2008), integra o
lote de países considerados de “desenvolvimento humano médio”, isto é, com um IDH
(índice de desenvolvimento humano) superior a 0,5. Como é possível conciliar tal rótulo
com situações de estagnação económica e tensão latente numa parte do país, que se
encontra envolvida directa e indirectamente em conflitos regionais? Poder-se-á de facto
designar o Uganda como um estado democrático e emergente, quando a desagregação
a nível regional do valor do indicador acima referido, mostra que a história oficial de
sucesso é apenas apanágio das regiões do sul? Quando a resiliência da violência é uma
realidade numa fracção do seu território?
As questões subjacentes às interrogações colocadas foram detalhadamente estudadas por Shaw et al., (2008: 214-238). Recuando no tempo, constata-se que os percursos
complexos e contraditórios do conflito ugandês, mergulham na história –“ a origem dos
conflitos é profundamente geográfica: resulta de uma organização do território fundamentada numa construção/manipulação étnica arquitectada pelo colonialismo britânico
(1890 – 1962). Uma “antropologia prática” foi aplicada no enquadramento e na valorização do território e depois na definição das condições da independência…O Uganda
foi vítima do fascínio que o Buganda (reino forte, localizado a sudoeste, bem organizado
e conquistador, em luta constante contra o Bunyoro do norte) exerceu sobre os britânicos, do estatuto privilegiado que lhe foi reconhecido, dos efeitos deste favoritismo e do
“sub-imperialismo” baganda daí resultante” (Dubresson et al., 1998: 308). Segundo a
Constituição federal de 1962, o Buganda conservaria as suas estruturas de estado e o
exército, num país que juntava 4 reinos antigos, mas em que se consagrava no kabaka
(rei do Buganda) a presidência vitalícia e hereditária. Esta situação continha os germens
de todos os problemas futuros.
Desde 1966, data em que aquela Constituição foi abolida, a vida politica do país
foi marcada pela instabilidade e pela violência, sendo de referir a década de 70, correspondente ao governo do general Idi Amin Dada: durante cerca de 8 anos o país, considerado no início do século XX como a “pérola” das colónias britânicas, transformou-se
num “reino de terror”, em que o recurso aos assassinatos a mando se tornou modo de
regular diferendos pessoais. Todavia, após a queda de Amin em 1979, a situação não
mudou muito, apesar da fachada politica e apoio das instituições financeiras internacionais: pelo contrário, a violência e os acertos de contas foram igualmente prática do
quotidiano, com consequências desastrosas nos planos político, cultural e económico
(Dubresson, 1998: 308-319).
O golpe de estado de 1985, levou ao poder Y. Museveni, ainda hoje presidente (reeleito em 2006 no âmbito das primeiras eleições pluralistas), que assumiu a árdua tarefa
da reconstrução do país. Conseguindo relativa estabilidade, mobilizando energias e talentos, empreendeu diversas reformas económicas impostas pelo FMI e Banco Mundial no
quadro de parcerias múltiplas, com forte aplicação de investimento estrangeiro e local
(graças às diásporas, fenómeno recente e relacionado com a fuga às atrocidades cometidas
na era Amin). A abertura dos doadores internacionais, a participação do país em inúmeras
iniciativas, a acção de numerosas ONG’s, contribuíram também para o franco crescimento
económico registado, para a realização de progressos significativos em matéria de desenvolvimento humano, de redução do deficit e da inflação, o que foi saudado positivamente
por aquelas instituições. Porém, este contexto de sucesso tem a sua face negativa: grande
arbitrariedade nas decisões, crescimento exponencial da corrupção, dos tráficos ilícitos,
da violência política com marginalização das regiões do norte e de parte do centro, o que
agravou uma dicotomia interna já existente. Naquelas, praticamente desde os fins da década
de 80, tinham voltado a eclodir confrontos e guerra de guerrilha, entre as forças governamentais e movimentos rebeldes (entre estes destaca-se o designado “Exército do Senhor”
– LRA – cujas motivações não são claras, reunindo muitos militares desmobilizados nos
regimes anteriores).
Se para interpretar a evolução registada, que se saldou na divisão do país em dois
conjuntos territoriais – as duas Ugandas – é determinante recorrer a factores herdados
do colonialismo, Shaw et al., salientam a necessidade de se ponderar a interferência de
outros aspectos, dado que as definições e relações entre sociedade civil, economia e
estado estão em constante mudança.
Nas últimas décadas, na construção do cenário de progresso apresentado pelo país
(pelo sul do país), foram decisivos os efeitos das dinâmicas próprias da globalização,
actuantes aos níveis local, nacional, continental e global, ideia que reforça as teses já
comentadas atrás, retirando vantagens da posição geoestratégica do país como placa
giratória de trocas formais e informais de diversas mercadorias (coltan, diamantes, ouro,
armas, capital, franchise, tecnologia, esta sobretudo proveniente da África do Sul, na
sequência do fim do apartheid, mas também de outras regiões do mundo).
Não obstante as dificuldades sentidas na obtenção de uma solução de paz pela via
negocial (que nem o governo nem os movimentos rebeldes mostravam empenho em
alcançar, preferindo a via militar), os acordos de 2006 e o plano sobre responsabilidade
e reconciliação de 2007, para o relançamento económico e integração das regiões do
norte, abriram uma possibilidade de se fazer justiça. Porém, a posição geográfica do
país, num quadro regional de guerra, onde acabou por se envolver, a porosidade das
fronteiras, a pobreza em que vive grande parte das famílias, a habituação à violência,
a desconfiança étnica, a necessidade de violar regras morais para sobreviver, a duradoura
intransigência dos governos em encontrar a paz por via do diálogo, são alguns dos
muitos aspectos que tornam difícil e problemática a sustentabilidade do “sucesso”…
Nestas condições, atendendo às limitações mencionadas, tal como Shaw et al.,
concluem, é difícil considerar o país como um exemplo de progresso real, em matéria
de desenvolvimento humano e de construção de um verdadeiro estado democrático,
dotado de uma política e de um governo representativo e eficaz.
IX. REFLEXÕES FINAIS
Fazendo um balanço do conjunto das questões analisadas, constata-se que é impossível abranger todas as manifestações e todas “causalidades” – as mais ou as menos
distantes, as internas e externas, as objectivas e subjectivas, as económicas e as culturais,
as sociais e as políticas – dos conflitos violentos recentes que afectaram e afectam o
continente. Cada caso é singular, complexo, multidimensional, dramático, demasiado
sério para que seja objecto de explicações simplistas e de soluções gerais na base de
modelos universalistas. Como refere Zeleza (2008: 26) “a história mostra-nos que os
estados e as sociedades africanas são constelações complexas construídas a partir de
múltiplos compromissos com o mundo exterior”. Nesta perspectiva ganham relevância
os estudos de natureza multidisciplinar desenvolvidos numa óptica comparativa, fundamentais para se encontrarem soluções de paz e se definirem medidas de prevenção
realmente eficazes e duradouras. É corrente afirmar que, num quadro global, as soluções
terão de ser vistas também numa óptica global. No entanto, sem o envolvimento participado dos africanos, através das suas organizações de nível regional e continental, serão
sempre soluções exportadas.
Sendo as tragédias humanas que são, as guerras, que se viveram e ainda vivem no
continente, num contexto dinâmico de mudança, suscitando processos de decomposição
– recomposição dos poderes e dos territórios (Bouquet, 2008), corresponderão, ou não,
ao começo de uma dinâmica de evolução, de reestruturação política, económica e estratégica, após as perturbações introduzidas pelo colonialismo e pelos reflexos da Guerra
Fria? Será que, de acordo com a expressão de Bayart, se configuram como “um modo
de produção do político, mas também como um modo doloroso, violento, mas talvez
necessário, de produção de identidades, da nação, da economia…Um modo de entrar
numa nova história” (Rufin, 1996:80)? Ou não serão, pelo contrário, processos de decomposição dos Estados, de bloqueio em matéria de desenvolvimento humano e económico,
não só devido à destruição provocada nas pessoas e nos bens, mas também decorrente
da insegurança na qual se encontram os agentes económicos? (Hugon, 2007: 143).
A discussão está aberta…
“A guerra, disse o adivinho, é uma serpente que matamos sem pisar a cabeça. Um
pequeno descuido e eis que ela ressurge no escondido do capinzal. Desta volta,
porém, para nos envenenar a cobra já nem precisa morder. Basta despertar a
lembrança dos venenos que nos correm nas veias …
Mas a guerra chegou aqui a esta região? indagou Benjamin.
– A guerra entra mesmo onde não chega.”
Mia Couto (O Outro Pé da Sereia)