III Congresso Internacional do GIGU “A questão do centro, o centro em questão”
III Congresso Internacional do GIGU “A questão do centro, o centro em questão”
Luís Mendes*
*Investigador do Centro de Estudos Geográficos da Universidade de Lisboa. E-
mail: luis.mendes@ceg.ul.pt
Nos dias 6 e 7 de Março de 2008, teve lugar no Auditório Grande da Faculdade de
Geografia e História da Universidade de Barcelona, o 3º Congresso Internacional
do GIGU (Grupo de Investigações em Geografia Urbana) – “A questão do centro, o
centro em questão”. A organização do evento ficou, naturalmente, a cargo do
GIGU, dirigido pelo Professor Catedrático de Geografia Humana da Universidade
de Barcelona, Carles Carreras, e presidido pelo Catedrático Emérito da
Universidade Complutense de Madrid e doutor Honoris Causa pelas Universidades
de Barcelona e de Granada, Professor Joaquín Bosque Maurel.
Um total de 18 comunicações internacionais foram apresentadas ao longo de três
sessões temáticas, todas incidindo sobre a problemática fundamental do
encontro: o processo de nobilitação urbana (“gentrification”) das áreas
centrais das cidades europeias. Concretamente, a primeira sessão intitulada A
teoria social da recuperação do centroreuniu múltiplos professores já
consagrados nas diversas áreas de especialização das ciências sociais e do
território, indo de encontro a um dos objectivos do congresso, nomeadamente o
de apostar no desenvolvimento de um entendimento interdisciplinar do fenómeno
da nobilitação urbana, pelo incentivo à troca de experiências entre
investigadores com formação académica variada, mas sempre com um olhar crítico
sobre o território urbano e as mudanças contemporâneas na organização socio-
espacial. Assim, participaram Professores de Teoria Económica, Gonzalo
Bernardos; de Geografia Humana, Carles Carreras; de Teoria Sociológica,
Filosofia do direito e Metodologia das Ciências Sociais, Marisol García; de
Geografia Humana da Universidade Complutense, Aurora García Ballesteros; e de
Geografia da Universidade de Nápoles, Rosario Somella.
Nesta sessão focaram-se fundamentalmente os novos cenários, desafios e
problemáticas com os quais a cidade centro se tem debatido, no quadro dos
processos de regeneração levados a cabo desde os anos 80. Se o discurso inicial
que justificou estes processos derivou da crise experimentada pela maioria das
áreas centrais e históricas da cidade, o actual discurso sobre o centro,
propõelas como áreas de crescente revalorização, ainda que não contrariando
completamente a tendência geral centrífuga para a desconcentração e
despovoamento.
Assim, a sessão deu sobretudo conta de como a evolução recente da urbanização
apresentou novas dinâmicas que intervieram no sentido de complicar
ulteriormente o quadro da cidade centro. Embora – considerando vastos agregados
urbanos e metropolitanos – se possa dizer que a difusão urbana ainda prossegue
no período mais recente, devemos reconhecer que, em muitas áreas metropolitanas
dos países do capitalismo tardio e avançado e, em particular, nas que polarizam
funções de nível mundial, surgiu, nos fins dos anos 80, uma requalificação de
numerosas áreas da cidade central, comportando uma nova atractividade
residencial.
As experiências dos centros das diversas cidades europeias apresentadas neste
congresso evidenciam essa complexidade, uma vez que, à semelhança de tantos
outros processos de produção social do espaço urbano contemporâneo, revelam
também, na mobilidade residencial, sinais contraditórios. Paralelamente a um
movimento dominante de periferização, surgem tendências em contra-corrente de
novas procuras e valorização das áreas da cidade centro. Como se viu ao longo
do Congresso, estas novas procuras – no que toca à habitação – são quase sempre
limitadas a alguns grupos sociais de estatuto médio-elevado. Portanto, e em
todo o caso, sublinhou-se nesta primeira sessão que esta retoma da capacidade
atractiva do centro não pode ser interpretada como sinal de uma nova viragem de
época na dinâmica urbana. A periferização continua a ser a tendência mais
importante. Contudo, a gentrificationé suficiente para contrastar, pelo menos
parcialmente, com os processos centrífugos e o declínio demográfico das áreas
centrais. Procurou-se compreender como o contínuo impulso centrífugo e a
revalorização da cidade centro representam duas tendências consistentes, mas
não forçosamente contraditórias, radicando ambas, salguardada a sua
especificidade característica, nas recomposições do sistema produtivo. Estas
apresentam uma evolução pautada por uma crescente polarização das funções do
terciário superior e pela emergência de um novo modelo de acumulação
capitalista mais flexível, com efeitos na diversidade de tendências locativas
das funções urbanas. Aquelas duas tendências que marcam o espaço urbano
contemporâneo ligam-se também a uma redistribuição espacial dos grupos sociais,
propiciando, geralmente, fenómenos de dualização.
Nesta primeira sessão discutiu-se também a ideia de que as formas de
intervenção, caracterizadas pelas parceiras público-privadas, inicialmente
reformas de reabilitação urbana, convertem-se porsteriomente em programas de
revitalização urbana afectando o uso, as funções e o valor do centro. Em
paralelo, as políticas de intervenção no campo social parecem também evoluir no
sentido de tentar minimizar o conflito, despolitizando as acções, as respostas
e as possibilidades de resistência dos residentes dos bairros centrais. Novas
actividades económicas, baseadas no cultural, no turístico e no comercial
parecem colonizar o centro, de tal forma que, se nos anos 80 a pergunta mais
pertinente dizia respeito às condições em que se construia/produzia socialmente
a cidade centro, na actualidade assume mais pertinência a interrogação sobre
que as condições em que se consome o centro.
Esgotadas as ricas orientações teóricas da primeira sessão, seguiu-se o painel
da tarde do primeiro dia do Congresso, exclusivamente dedicado à análise da
nobilitação urbana nas cidades de Turim, Bilbao, Granada e Lisboa.
Neoliberalismo, transformação urbana e processo de gentrification: o caso de
Turim.Os primeiros sintomas da crise do welfarestatecomeçaram a manifestar-se
por volta de meados dos anos 70. A partir de então, a gradual desagregação do
modelo predominante de intervenção pública fez-se paralelamente à superação do
fordismo pelo pós-fordismo, tornando cada vez mais difícil para o Estado reunir
os recursos necessários para garantir a intervenção da despesa pública ao mesmo
ritmo que se atingira em anos anteriores. À inevitável precariedade da situação
laboral dos trabalhadores mais desqualificados e dos grupos sociais mais
desfavorecidos, acumulou-se a desregulação do mercado de habitação e do uso do
solo urbano, que tende a valorizar um padrão mais aleatório na produção
temporal e espacial dos acontecimentos urbanos e o fabrico de uma segregação
residencial a escalas mais finas. Este padrão é produto social do jogo do
mercado imobiliário pouco regulado, de processos especulativos de valorização.
O governo urbano orienta-se por um modelo gestionário (gestão estratégica
importada do meio empresarial) em que o uso dos recursos públicos se faz para
atrair investimento, pasando o fornecimento dos serviços a fazer-se pelo
mercado e pelo sector privado, sendo valorizadas as parcerias público-privadas.
A propósito do desmantelamento das políticas de assistência pública como
tentativa de incutir alento à iniciativa económica dos privados, de que o
neoliberalismo dos governos urbanos se tem vindo a revestir, e de como a crise
do welfarestateestá associada também à afirmação de intenções conservadoras,
responsáveis pela produção de transformações no governo da cidade, discutiu-se
o conceito de cidade revanchista, ainda que de forma breve. Este conceito
denuncia como o discurso “regenerativo” da nobilitação no âmbito de políticas
urbanas de valorização da imagem da cidade, ainda que vise a fixação da
população já existente, a modernização do tecido económico, o aumento do
emprego e o crescimento económico, não deixa também de funcionar como mecanismo
de legitimação do poder instituído e da mobilização de grande investimento
público que, em última análise, é desviado do auxílio aos mais carenciados,
funcionando como subsídio aos mais ricos (Banca, instituições financeiras,
grandes grupos económicos e de construção civil, empreendedores, governantes,
etc.). Não só porque significa reformular o todo e a parte da cidade no sentido
de se adaptar à evolução das necessidades do sistema neoliberal, mas também nos
meios pelos quais o desencadear dos processos de nobilitação procuram atrair
população com um elevado capital cultural e económico. A análise do estudo de
caso de Turim – que muitas vezes está descrito na literatura como uma cidade
fordista por excelência – foi pertinente ao propor uma leitura das
transformações urbanas que têm sido importantes na sua cidade centro, desde a
segunda metade dos anos setenta. Especificamente, apresentando o contexto de
mudança socio-económica e política local neste contexto urbano nos últimos
trinta anos, esta comunicação deu um enfoque principalmente na produção dos
equipamentos, planos e projectos de desenvolvimento urbano e no seu papel numa
realidade em transição de um modelo de desenvolvimento fordista para um modelo
de desenvolvimento pós-fordista, tendo desmontado as mudanças de carácter neo-
liberal.
A segunda comunicação desta sessão, intitulada Regeneração urbana, áreas de
oportunidades e gentrification no “novo Bilbao”explorou a estreita relação
entre os processos de nobilitação e as políticas urbanas, que ao longo das três
últimas décadas, têm ocupado numerosas investigações sobre os processos de
revitalização de diferentes cidades. Deste modo, a gentrification, longe de ser
um perverso efeito não intencional, poderá ter-se tornado uma componente
essencial das estratégias de revitalização urbana. Este novo e crescente papel
do governo no processo de nobilitação parece ter contribuído tanto para a
expansão global do fenómeno como para o surgimento de novas formas de
nobilitação, com a consequente reformulação das definições e perspectivas
tradicionais do processo. Esta intervenção destacou a relação existente entre
os programas de revitalização urbana e o processo de nobilitação em Bilbao,
defendendo esta estratégia como legitimadora da retórica da cidade competitiva,
atraente e criativa, reforçada ainda pelo sucesso do “efeito Guggenheim” e do
“modelo de Bilbao”. Através da análise de três casos (Abandoibarra, Bilbao
Velha e Olabeaga) tenta-se mostrar, não só a nobilitação urbana como uma parte
integrante das iniciativas para a “regeneração” em determinadas áreas da
cidade, as chamadas “áreas de oportunidade”, mas também a diversidade de um
processo que se desdobra em formas específicas e dinâmicas em cada uma das
áreas estudadas.
Em AlbayzínGranada: um bairro multicultural entre etnização da diversidade
religiosa e a nobilitação turísticaexploraram-se os grandes desafios para a
gestão urbana colocados pelo turismo religioso para a diversidade, e que a
sociedade andaluza, crescentemente multicultural, enfrenta. Na cidade de
Granada tem-se vindo a assistir a uma convergência de dois processos: primeiro,
a cidade em si e o bairro de Albayzín têm vindo a experimentar um forte aumento
na população imigrante, nos quais se destaca uma significativa percentagem de
muçulmanos provenientes da África do Norte. Em paralelo, desde o final de
Franco esboça-se nas cidades andaluzas de Granada e Córdoba uma tendência de
conversão ao Islão pela população local. de um estudo etnográfico do antigo
bairro árabe, o Albayzin, parte-se para a análise dos diversos espaços-
interface que são abertos entre muçulmanos e não muçulmanos, contribuindo para
a discussão da formação de neo-comunidades muçulmanas e a sua ligação com a
tentativa das elites locais criarem uma identidade multi-religiosa, com origens
exploráveis importantes para estabelecer um destino de turismo cultural
“orientalista”, visando a nobilitação turística da cidade. Esta comunicação
afigurou-se polémica – sendo também a que mais questões suscitou no público
assistente por altura do debate – pois apresentou, e por um lado, uma definição
pouco ortodoxa de nobilitação associada ao desenvolvimento turístico dos
territórios urbanos, por outro, as clivagens culturais e religiosas entre
comunidades autóctones e os novos visitantes. Ainda a propósito do debate
suscitado por esta comunicação, a definição clássica de nobilitação urbana foi
contestada e discutiram-se os últimos contributos académicos conhecidos, talvez
um dos momentos mais altos de todo o congresso.
A realidade da nobilitação urbana em Lisboa foi representada em A
gentrification não é um efeito directo da política de reabilitação urbana: o
caso do centro histórico de Lisboa, que desenvolveu a hipótese de que – como o
próprio título indica – as políticas de reabilitação urbana no centro histórico
de Lisboa podem facilitar o processo de nobilitação. No entanto, são apenas
condições necessárias, não sendo por si só suficientes para induzir tal
processo socio-espacial. Um dos pontos de polémica em torno do processo de
nobilitação das áreas centrais da cidade reside na associação imediata do
processo à reabilitação urbana. Se é certo que a re-apropriação de um espaço de
habitatantigo – e por vezes em estado de degradação urbanística acentuada –
implica, necessariamente, a presença de um processo prévio de reabilitação do
edificado, não é menos certo que a nobilitação não pode ser vista como
consequência automática de políticas de reabilitação, conservação ou renovação
urbana, ou de qualquer política de incentivo ao investimento privado no sentido
da reabilitação de edifícios de habitação. Ao invés, argumentou-se que a
nobilitação deve ser contextualizada nas profundas alterações económicas que
têm decorrido nos espaços urbanos dos países ocidentais de capitalismo avançado
desde os finais dos anos sessenta e das transformações que esta reestruturação
económica desencadeou na estrutura profissional e na textura social da cidade,
com o declínio da produção e do emprego industriais e o rápido crescimento do
sector terciário qualificado no seu interior. Seleccionando o Bairro Alto como
caso ilustrativo deste processo de reestruturação urbana na cidade de Lisboa,
analisaram-se as importantes transformações na sua estrutura demográfica e
sócio-cultural, com a chegada de novos moradores desde o início dos anos 80.
A terceira sessão do Congresso iniciou-se na manhã do dia 7 de Março,
intitulandose Da regeneração do centro à regeneração da periferia e das cidades
médias, e estendeu-se até ao fim da tarde. A primeira comunicação A relação
centro-periferia. A mutação na periferia da cidade, explorou o papel da
nobilitação no reforço da metropolização de Barcelona. As preferências
residenciais da população afiguram-se um bom indicador para observar e analisar
esse processo de metropolização do território. A homogeneização de
comportamento residencial entre Barcelona e as cidades da sua periferia pode
indicar uma consolidação da Área Metropolitana de Barcelona, apontada para o
aparecimento de novas formas significativas de nobilitação que não se
restringem às definições tradicionais, ou pelo menos à definição mais clássica
do processo, tal como era definida nos anos 70 e 80.
Na mesma linha de reflexão, surgiu a comunicação Entre a centralização da
periferia e a gentrificação dos subúrbios: propondo um debate aberto, que
propôs a reflexão sobre a dispersão da nobilitação nos subúrbios, desafiando a
definição conceptual do fenómeno e a sua geografia não necessariamente
exclusiva à cidade centro. Neil Smith, Paul Caris, Elvin Wyly ou Randolph Capps
são os principais teóricos que estudaram os processos de nobilitação nos
subúrbios pobres da costa leste dos Estados Unidos. Os autores defenderam que
mesmo que as cidades da Europa do Sul tenham uma morfologia completamente
diferente das dos E.U.A., os processos urbanos crescentemente complexos têm
posto em causa esta distinção na análise dos novos fenómenos sociais e
culturais nas cidades do Sul da Europa. Concretamente, nesta comunicação,
propôs-se uma abordagem à realidade da área urbana de L’Hospitalet de
Llobregat, segunda cidade da Catalunha, localizada nos subúrbios de Barcelona.
Apresentaram-se os novos agentes, os novos processos e as novas procuras que
podem suscitar a discussão sobre a existência ou não de nobilitação em áreas
suburbanas de Barcelona, mormente emergentes das grandes transformações urbanas
e da animação nocturna nos bairros centrais de L’Hospitalet. Explorou-se também
o surgimento de um novo mercado imobiliário para a nova classe média e se tudo
isso é parte do processo de formação de novas centralidades na periferia.
Em As cidades médias catalãs e as condições para uma gentrification
municipaldefendeu-se a limitação explicativa da tese do rent-gapna geografia
contemporânea da nobilitação, face ao poder que as estratégias do
desenvolvimento cultural têm tido na valorização do território urbano e no
desenvolvimento regional do fenómeno. Foram apresentados vários exemplos de
bairros em cidades médias da Catalunha para, a partir daí, se propor a reflexão
em torno da especificidade das capitais regionais como realidades urbanas de
diferentes épocas, com texturas socio-espaciais diferenciadas e,
consequentemente, diferentes susceptibilidades ao fenómeno da nobilitação.
A terminar o Congresso, e tal como as anteriores, a última comunicação
continuou a avançar e a pressionar os limites conceptuais de nobilitação até ao
de regeneração ou recomposição das áreas urbanas. Exemplo foi a comunicação de
Sergio Redón que se debruçou sobre a gentrificationcomercial, intitulada
Actividades comerciais, centralidade, gentrification. Qualquer processo de
transformação urbana significa mudanças nalguns elementos sociais, económicos
ou culturais, mas eles nem sempre são visíveis e identificáveis. O debate sobre
a nobilitação, em geral, tem-se centrado na origem, na definição ou nas
consequências do processo sobre a população ou a morfologia urbana. Um dos
aspectos visíveis desse processo, difícil de avaliar, é a reestruturação das
actividades comerciais que lhe estão na origem ou que daquele são produto, pois
têm características específicas devido à sua relação directa com a fluidez da
procura, do preço da terra e até da cooperação e competição intra-urbanas.
Portanto, a análise da dinâmica urbana da oferta comercial é um indicador que
ajuda a explicar a nobilitação e a compreender a importância da mesma no
processo de recuperação económica da cidade centro.
O problema que nos ocupou nestas jornadas sobre a cidade centro disse respeito
ao funcionamento de um segmento específico do mercado imobiliário no espaço
urbano. Todavia, o tema da nobilitação urbana é suficientemente rico de
implicações nos mais diversos campos de actividade e do pensamento social e
geográfico para poder ser abordado sob uma grande diversidade de pontos de
vista. O seu estudo, mesmo quando referido a uma situação concreta de contornos
bem delimitados, revela-nos um problema complexo, dada a soma de aspectos a
considerar: económicos, sociais, político-ideológicos, técnicos, etc. O
interesse deste Congresso em lhe dedicar dois dias de trabalhos proveio tanto
de se tratar de um problema fundamental da existência humana na cidade centro,
como da necessidade que os académicos da Europa do Sul têm vindo a revelar em
discutir uma temática que tem já várias décadas na história da teoria urbana,
mas que poucos consensos reúne quando consideramos as suas geografias
múltiplas.