Professor doutor Fernando Manuel da Silva Rebelo (1943-2014): In Memoriam
NOTÍCIA
Professor doutor Fernando Manuel da Silva Rebelo (1943-2014)
In Memoriam
Luciano Lourenço1; Lúcio Cunha2
1Professor associado com agregação, do Departamento de geografia da faculdade
de Letras da Universidade de Coimbra e investigador do Centro de estudos de
geografia e Ordenamento do território e do núcleo de investigação Científica de
incêndios florestais. E-mail: lucianol@fl.uc.pt
2Professor Catedrático no Departamento de geografia da faculdade de Letras da
Universidade de Coimbra. E-mail: luciogeo@ci.uc.pt
O Doutor Fernando Rebelo, Professor Catedrático jubilado do Departamento de
Geografia da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, nasceu em
espinho, a 16 de Setembro de 1943 e fez os seus estudos primários e secundários
no Porto.
Em 8 de Fevereiro de 1966, licenciou-se em geografia pela faculdade de Letras
da Universidade de Coimbra, com 17 valores, após a defesa de uma Dissertação
intitulada “Vertentes do rio Dueça”, que, no ano seguinte, veio a ser publicada
no Boletim do Centro de Estudos Geográficos de Coimbra.
Após uma breve passagem pelo ensino secundário particular, em Leiria, nos anos
lectivos de 1964/65 e de 1965/66, iniciou a sua carreira docente universitária
no dia 1 de Junho de 1966, como assistente eventual da Faculdade de Letras da
Universidade de Coimbra, carreira logo interrompida pela prestação do serviço
militar obrigatório (de 12 de Setembro de 1966 a 30 de Novembro de 1969). Nessa
época (anos lectivos de 1967/68 e 1968/69), voltou a desempenhar funções no
ensino secundário particular, em Lisboa.
Doutorou-se em geografia física pela Universidade de Coimbra, em 24 e 25 de
Julho de 1975, com a classificação de “aprovado com distinção e louvor”, por
unanimidade dos membros do júri, na sequência da defesa da Dissertação
intitulada Serras de Valongo – Estudo de Geomorfologia (publicada pela FLUC,
como suplemento da Biblos) e de um Projecto de investigação intitulado “Os
Processos erosivos actuais no Litoral norte e Centro de Portugal”.
Professor auxiliar, além do quadro, da faculdade de Letras da Universidade de
Coimbra desde 28 de Novembro de 1975, prestou provas públicas para Professor
extraordinário da mesma faculdade nos dias 6 e 7 de Novembro de 1978 e, sendo
aprovado, veio a tomar posse do lugar no dia 1 de Fevereiro de 1979. Extinta a
categoria de Professor extraordinário (Lei 19/80, de 16 de Julho), passou a
Professor Catedrático, em 4 de Março de 1982.
Entre 1 de Outubro de 1986 e 24 de Setembro de 1996 foi Vice-Reitor da
Universidade de Coimbra. Foi eleito reitor da mesma Universidade no dia 6 de
Maio de 1998, cargo em que foi investido a 24 de Junho de 1998. Reeleito no dia
20 de Maio de 2002, tomou posse no dia 24 de Junho seguinte, tendo renunciado
ao cargo no dia 13 de Novembro do mesmo ano.
Dedica-se, depois, à docência no Departamento de geografia, actividade que,
aliás, nunca deixou de exercer enquanto desempenhou funções reitorais e que
manteve até à sua jubilação, em 16 de Setembro de 2013, um dia em que muitos de
nós o acompanhámos e que culminou com o lançamento de um livro em sua homenagem
sobre riscos naturais, antrópicos e Mistos, temática que o apaixonou nos
últimos anos de vida e em que, apesar de jubilado, continuava a trabalhar.
Neste livro tivemos o ensejo de publicar a listagem das muitas obras de sua
autoria que, dado o seu elevado número, não cabe aqui referir.
A sua área de especialidade era a geografia física e, em particular, a
geomorfologia, ciência a que muitos contributos deu, particularmente em termos
de geomorfologia Dinâmica, através de brilhantes lições e de numerosos
trabalhos publicados.Manda, no entanto, a verdade que se diga que, do ponto de
vista da investigação científica, Fernando Rebelo, não foi apenas um
geomorfólogo, embora tenha desenvolvido a maior parte do seu trabalho nesta
área da ciência geográfica. Por força das exigências de serviço, quando iniciou
a carreira universitária foi responsável pela docência de várias disciplinas de
quase todas as áreas de geografia física, mas também de algumas disciplinas de
geografia Humana e, sobre estas deixou, não apenas a memória dos seus
ensinamentos brilhantes, mas também escritos científicos relevantes, como os
textos dos anos 70 que documentam o afluxo de trabalhadores à cidade de
Coimbra.
A sua vasta actividade pedagógica, exercida ao longo dos 45 anos em que
permaneceu no Departamento, traduziu-se na leccionação de 26 disciplinas e
seminários, além da regência das disciplinas de etnografia e/ou geografia de
Portugal no Curso anual de Língua e Cultura Portuguesa para estrangeiros, no
âmbito das quais realizou inúmeras viagens de estudo, especialmente na região
Centro, e colaborou em diferentes cursos de outras universidades. As suas
metódicas exposições, muito organizadas e didácticas, cativaram todos aqueles
que tivemos o privilégio de o ter como professor nos primeiros anos das nossas
licenciaturas. Depois, nos anos seguintes, a atitude do mestre era diferente,
incentivando-nos a iniciar a investigação científica aplicada a temas
concretos, que acompanhava e orientava de perto.
Foram muitas as gerações de alunos, com idades e culturas bem diferenciadas,
que durante todos estes anos foram marcadas por este grande vulto da geografia
portuguesa, associado a uma personalidade de trato fácil e grande
disponibilidade, a que se aliava o carácter afável do grande pedagogo que foi o
Doutor Fernando Rebelo.
Viajante incansável, realizou numerosas viagens de estudo por todo o território
português, incluindo todas as ilhas dos açores e da Madeira, bem como por
praticamente toda a Europa e por muitos outros países de África, Ásia e
América. Nunca guardou para si as aprendizagens feitas nestas viagens, sempre
realizadas com uma perspectiva geográfica, uma vez que, depois, aproveitava
algumas das aulas para partilhar com os seus estudantes as experiências
vividas. Através da imagem, com os seus famosos slides, ultimamente
substituídos por não menos cuidadas apresentações emPowerpoint, com excelentes
fotografias, dava a conhecer outras paragens, com contextos geográficos
diferentes, tendo mesmo dado à estampa algumas delas, como as que constam do
livro Viagens pelo Brasil. Impressões de um Geógrafo, Memórias de um Reitor,
publicado em 2006.
Falar de Fernando Rebelo é, talvez, falar do último geógrafo pertencente à
geração dos chamados geógrafos completos. Completo na vida universitária, onde
percorreu quase todas as tarefas e cargos possíveis, completo na leccionação
por que foi responsável (em praticamente todas as áreas da geografia),
completo pela investigação que desenvolveu (em quase todas as áreas da
geografia física, mas também em geografia Humana e em brilhantes sínteses
sobre a geografia de Portugal), completo por desenvolver estudos mais teóricos,
por vezes mesmo de carácter epistemológico, e inúmeros estudos de caso quase
sempre desenvolvidos com um preocupação de aplicação, completo, finalmente,
porque ao brilho das suas aulas, juntava a competência científica e a elegância
dos seus escritos, bem como a eloquência das palestras e conferências que
muito frequentemente proferia.
Coimbra e o Mondego foram sempre território privilegiado para a investigação
geomorfológica de Fernando Rebelo. No nº 100 da revista Memórias e Notícias,
Publicação do Museu e Laboratório Mineralógico e geológico da Universidade de
Coimbra (1985) escreve um trabalho sobre a geomorfologia da área de Coimbra que
ainda hoje é referência obrigatória para enquadramento dos estudos de
geomorfologia urbana que respeitem Coimbra. Voltará ao tema mais tarde, em
artigos publicados nos Cadernos de Geografia (1999) e na Revista da Ordem dos
Engenheiros (2002).
Em 1990, publica nos Cadernos de Geografia um texto sobre a “Contribuição da
geografia física para a inventariação das potencialidades turísticas do Baixo
Mondego”. Ainda que preocupado com o conjunto dos aspectos ligados à natureza
no Baixo Mondego, as formas de relevo, pela sua importância na construção da
paisagem, pelo seu valor icónico e cultural, pelo seu significado pedagógico,
são tratadas como verdadeiras peças do património natural, num trabalho que
antecede em alguns anos os abundantes trabalhos sobre geopatrimónio,
geossítios e geomorfossítios que aparecem no âmbito da Geografia e da Geologia
no final do século passado. Já antes, Fernando Rebelo tinha participado num
conjunto de obras destinadas à promoção dos recursos turísticos da região
Centro, de Coimbra, de Aveiro e da Lousã, apelando sempre à importância da
geografia física, e particularmente da geomorfologia, na promoção turística
dos territórios.
Outra referência importante, até pela polémica que, na altura, envolvia o tema,
foi a publicação dos resultados de um projecto sobre a importância da
geomorfologia como contributo para a datação das gravuras do Côa, primeiro nos
Cadernos de Geografia (1996) e depois na Revista Finisterra (1997).
Na sequência do projecto de investigação que apresentou a provas de
doutoramento, a investigação científica de Fernando Rebelo no campo disciplinar
da geomorfologia foi pautada, sobretudo, pelo pormenor nas escalas de trabalho
e por uma perspectiva de aplicação. Talvez, por isso, foi fácil a passagem para
o tema de eleição da sua investigação durante os últimos vinte anos: o do
estudo dos riscos naturais. Riscos geomorfológicos, naturalmente, mas também
riscos hidrológicos, risco sísmico, incêndios florestais e teoria dos riscos.
Por isso, de entre as suas obras, porventura a mais conhecida é o livro sobre
Riscos Naturais e Acção Antrópica, com duas edições, uma em 2001 e outra em
2003, e que constitui referência obrigatória em qualquer trabalho que verse
sobre ciências cindínicas. Sobre o tema viria ainda a publicar mais dois
livros: Uma experiência europeia em riscos naturais(2005) e Geografia Física e
Riscos Naturais (2010).
Querendo ou não, Fernando Rebelo fez e deixa escola! Basta pegar num qualquer
número dos Cadernos de Geografiaou da Territorium, revistas que criou e que
ajudou a promover, para encontrar referências suas em quase todos os trabalhos
de quase todos nós. Sobre a Geomorfologia da região de Coimbra e sobre o
Mondego, sobre cristas quartzíticas, sobre relevo granítico, sobre a
importância do frio no modelado das vertentes, sobre processos erosivos
actuais, sobre o litoral, sobre as montanhas, sobre planícies aluviais! Mas
também, e sobretudo, sobre teoria do risco, sobre riscos sísmicos,
geomorfológicos e hidrológicos, sobre incêndios florestais, sobre erosão
hídrica. De facto, sobretudo as dezenas de investigadores de geografia física
das escolas de Coimbra, do Porto e do Minho têm em Fernando Rebelo uma
referência científica incontornável, que ajudará a perpetuar o saber geográfico
e geomorfológico deixado pelo professor, pelo orientador, pelo investigador,
pelo amigo! As centenas de trabalhos de investigação publicadas nos últimos
anos pelas dezenas de investigadores que aprenderam com Fernando Rebelo sobre
geomorfologia, sobre riscos naturais, sobre epistemologia da geografia física
aí estão para o demonstrar.
Apesar de jubilado, o Doutor Fernando Rebelo continuou a vir frequentemente ao
Departamento de geografia e a colaborar na realização de diversas actividades
do Departamento e do CEGOT, acompanhando o grupo e incentivando-o a progredir
e a melhorar.
Condensar em meia dúzia de linhas os traços da personalidade e da vasta obra de
Fernando Rebelo não é fácil. Foram dezenas as reuniões científicas que
organizou e perde-se a conta daquelas em que participou, bem como das
conferências que proferiu em Portugal e no estrangeiro. Orientou 15 teses de
doutoramento e mais de 20 teses de mestrado ou de aptidão pedagógica e
capacidade científica. Participou em diversos projectos de investigação
científica e em actividades administrativas de vária índole.
Esta sua intensa vida académica, de professor, cientista e gestor
universitário, foi reconhecida de várias formas, designadamente através da
atribuição da qualidade de sócio Honorário por muitas instituições e
organismos, bem como foi merecedor de diversos prémios, homenagens e
distinções, de que se referem apenas duas: a Grã Cruz da Ordem Estadual
Renascença do Piauí,que recebeu no Brasil; e A Grã Cruz da Ordem de Mayo al
Mérito,que lhe foi atribuída na Argentina. Ao deixar-nos prematuramente, quando
ainda muito tinha para dar à geografia e à Universidade de Coimbra, Fernando
Rebelo leva com ele a referência de uma geração de geógrafos, a dos chamados
geógrafos “completos”, por ter trabalhado, como os mestres que o antecederam,
tanto em geografia física como em geografia Humana, como referimos já. Sobre a
vida e a obra de alguns destes mestres deixou testemunho na publicação que
intitulou A Geografia Física de Portugal na vida e obra de quatro professores
universitários – Amorim Girão, Orlando Ribeiro, Fernandes Martins, Pereira de
Oliveira(2008), quatro ilustres geógrafos portugueses, três deles eminentes
professores e mestres, no sentido vernáculo do termo, da Universidade de
Coimbra e, no caso do Doutor Orlando ribeiro, também com passagem pela
Universidade de Coimbra antes de ingressar na Universidade de Lisboa.
Ora, com o desaparecimento do decano da geografia de Coimbra, a 9 de Outubro de
2014, a geografia portuguesa ficou muito mais pobre. Igualmente mais pobre
ficou a Universidade de Coimbra, pois perdeu um dos seus reitores e um dos
seus mais brilhantes professores, que ajudou a promover e a divulgar pelos
quatro cantos do mundo a instituição que serviu com muita dedicação.
Lembramos, pois, com saudade, o professor e o cientista, mas também o colega e
o amigo que, tantas vezes e com tantos de nós, colaborou em trabalhos
académicos, de ensino e de investigação, uma obra que perdurará no tempo e que
não deixará de ser uma referência para qualquer estudioso de geografia física,
de geomorfologia, bem como da temática dos riscos e das suas manifestações.