Novas imagens para velhas cidades? Coimbra, Salamanca e o turismo nas cidades
históricas
Introdução
É relativamente consensual a ideia de que, globalmente, as sociedades modernas
são sociedades em movimento, cada vez mais moldadas por mudanças
impressionantes na natureza e na experiência da mobilidade e da viagem.
Características da era moderna, a mobilidade foi desenvolvida e as viagens
foram submetidas a lógicas organizacionais Lash e Urry, 1994), representando
importantes conquistas do capitalismo ocidental. Nesse quadro, o turismo
adquiriu, sob vários ângulos, uma importância crescente.
Em primeiro lugar, as atividades turísticas e de lazer vêm ganhando um valor
crescente na vida das populações ocidentais, constituindo dimensões importantes
da vida moderna. Segundo, revelando boas perspetivas de expansão futura, o
setor alimenta uma série de outras atividades económicas, constituindo um fator
importante de desenvolvimento económico de muitas regiões de destino. Daí que,
e em terceiro lugar, os fenómenos do lazer e do turismo se venham revelando
decisivos na reorganização dos territórios, nas condições de ordenamento do
espaço, nas políticas de planeamento e desenvolvimento, com um especial impacto
nos espaços urbanos. Por fim, o turismo conta com a intervenção de um conjunto
de atores que organizam o setor e medeiam a relação entre os locais, os
turistas e as suas experiências, atuando, fortemente, sobre a dimensão
imagética das cidades.
O património urbano foi, desde sempre, um dos recursos mais valiosos para a
atração de turistas para as cidades. Não obstante, as estratégias de marketing
urbano baseadas exclusivamente na história dos lugares parecem estar agora a
ser ultrapassadas por novas retóricas de promoção que aliam a diversificação
dos lugares visitados a um uso mais criativo do espaço urbano. Não surpreende,
por isso, que tantas cidades históricas e monumentais, por toda a Europa,
estejam agora a virar-se para a (re)criação de novos imaginários turísticos.
Este artigo debruça-se sobre duas cidades que parecem especialmente reveladoras
dessas transformações ' Coimbra e Salamanca ', que, ao longo das últimas
décadas, estruturam a sua oferta turística em torno da história e da
monumentalidade, destacando, em particular, o património universitário. Mas nos
dois contextos urbanos são identificáveis, agora, por parte dos promotores
oficiais ligados ao poder público local, tentativas de diversificação da oferta
turística e de renovação das imagens das cidades, resgatando ou re)inventando
para o universo turístico local novos elementos de atração.
Neste quadro de análise, o turismo pode ser visto como gerador de uma linha
abissal ' no sentido teorizado por B. de Sousa Santos (2009) ', separando a
cidade a que dá visibilidade daquela que invisibiliza. À luz desta conceção,
confrontam-se as novas imagens das cidades com aquelas que continuam a ser
promovidas pelos agentes do setor privado e conclui-se propondo uma ecologia de
saberes (Santos, 2006a e 2006b) para a incorporação dos diferentes imaginários
turísticos das cidades.
1. O Turismo Urbano e os Patrimónios das Cidades
A partir da segunda metade do séc. XX, os mercados turísticos segmentaram-se e
diversificaram-se. A par do turismo de massas, surgiram diferentes tipos de
ofertas, diversificaram-se os públicos e as experiências turísticas. Neste
quadro, um tipo singular de turismo foi ganhando uma importância crescente:
aquele que se desenrola em contextos urbanos, particularmente os que registam
uma forte incidência de factores arquitectónicos, histórico-arqueológicos e
monumentais (Fortuna, 1999: 48). Se começaram por ficar à margem do turismo
massificado, as cidades e os seus centros históricos passaram, depois, a
constituir um dos grandes destinos turísticos, gerando interesses por parte de
produtores e consumidores (Page, 1995).
Nas grandes cidades europeias e, sobretudo, nas grandes capitais culturais, o
turismo foi sempre, na era moderna, um ingrediente importante da economia e do
ambiente urbano. A sua importância estratégica viu-se, muitas vezes, acentuada
pelas possibilidades de revitalização e de dinamismo social e económico, muitas
vezes perdidos na sequência dos processos de desindustrialização. Mas é talvez
nas cidades de pequena e média dimensão, e sobretudo naquelas cujos centros
antigos vêm sofrendo alguma desvitalização nas últimas décadas, que o turismo
ganha especial apelo no quadro de estratégias de desenvolvimento local.
Principalmente em cidades que enfrentam oportunidades económicas limitadas, o
turismo vem sendo encarado como uma alternativa de importância significativa,
sustentando expectativas de revalorização das economias locais, por via do
aproveitamento e da rentabilização dos patrimónios e dos recursos culturais
locais.
O fascínio pelas cidades esteve relacionado, sobretudo, com a sua
temporalidade. Daí que as cidades históricas e monumentais se tenham tornado
uma das principais atrações turísticas a partir dos anos 1980. Tanto pela
importância da cultura visual, como pela relevância do fator histórico das
cidades, a sua arquitetura histórico-monumental converteu-se no elemento por
excelência da identidade local e, também, no recurso que mais interesse e
curiosidade suscitou entre os turistas. Trata-se de patrimónios históricos
edificados, mas também patrimónios socioculturais, artísticos, linguísticos e
humanos que encontram expressões diversas nas cidades de hoje (Fortuna, 2006:
3). Dito de outra forma, como fator de atração turística, o património, está
tão relacionado com os aspetos físicos, enquanto património material e
edificado, como com os aspetos socioculturais dos contextos urbanos, enquanto
património imaterial, cultural e simbólico.
Neste processo, o valor de mercado que passou a ser associado às cidades
transformou o seu passado num produto do presente. Como refere C. Fortuna
(1999:57) sobre Coimbra e Évora, tudo nas cidades se tornou, por esta via,
negociável e mercadorizável: a indústria' do turismo objectifica e
mercadoriza as cidades e os monumentos, a natureza e as paisagens, os costumes
e os sentimentos. Como também assegura A. Huyssen (2003), pelo menos no que ao
contexto europeu diz respeito, o passado e a celebração da memória têm sido
valiosos recursos de promoção turística das cidades.
2. A Ludificação dos Territórios e os Dois Lados das Cidades
A consciência de que a história, o património, a arquitetura e as culturas
locais se transformaram em produtos turísticos cada vez mais apetecíveis levou
a que autoridades e intervenientes locais investissem, progressivamente, na
conversão desses elementos em recursos rentabilizáveis pelo turismo. L. V.
Baptista e J. J. Pujadas (2000) alertam para o facto de, em contextos deste
género, as cidades serem, muitas vezes, submetidas a pressões por parte de
operadores públicos e privados, que aspiram a apresentá-las como cidades
hospitaleiras e abertas ao mundo. Assiste-se, neste quadro, à conceção de
territórios lúdicos, ou seja, lugares ou cenários que, ou foram pré-definidos
para fins lúdicos, ou foram alvo de uma reavaliação económica que prevê que
estes se tornem ludicamente atractivos (Baptista, 2005: 47).
A ludificação dos territórios e o investimento no turismo envolvem, a meu ver,
duas dimensões intimamente articuladas: por um lado, a produção e a reordenação
físicas do espaço urbano e das atividades que nele se concentram; por outro, a
(re) criação de imaginários sobre a cidade e de imagens promocionais. Daqui
emergem efeitos de animação e espectacularização das cidades, como produto do
trabalho de atores que operam no planeamento urbano, na arquitetura, na decisão
política, na promoção turística e em muitos outros contextos de intervenção no
ambiente urbano.
Fruto da importância que as atividades turísticas vêm adquirindo no espaço
urbano, os agentes do setor turístico tornam-se cada vez mais influentes na
produção desse espaço: de forma indireta, pela influência e pressão que exercem
sobre os decisores e os técnicos urbanos; ou, mais diretamente, em virtude do
trabalho simbólico que exercem na produção e difusão de sentidos e imagens
sobre as cidades.
Do lado do setor privado, os operadores turísticos surgem como a ligação
principal entre a oferta e a procura: além de desempenharem um papel importante
na constituição de lugares como novos destinos turísticos, os operadores
influenciam os padrões de gosto e de preferência dos turistas, publicitando
imagens atrativas sobre os lugares (Richards, Goedhart e Herrijers, 2001).
Na medida em que os espaços urbanos não são apenas materiais ou vividos, mas
são também objetos de imaginação e de representação, com os seus espaços de
culto, os seus altares e, inversamente, os seus interditos (Lopes, 2001: 181),
o trabalho deste conjunto variado de profissionais passa, necessariamente, pela
seleção e visibilização de algumas características e narrativas sobre a cidade
e a sua história, o que implica o esquecimento ou desvalorização de outras
características e de outras narrativas.
C. Boyer (2000) fala de uma economia política da imaginabilidade3 para se
referir ao modo como as estratégias e as campanhas de promoção das cidades
produzem e difundem imagens dos lugares. Trata-se de uma economia
diferenciadora, hierarquizante e segregadora, na medida em que, na sua
seletividade mercantilista e publicitária, as imagens, assim como as práticas
de produção do espaço urbano, criam uma segmentação material e simbólica entre
espaços figurados e espaços desfigurados da cidade. Os primeiros são
espaços de desenvolvimento urbano, cujo planeamento, desenho e arquitetura lhes
atribui uma identidade visual forte. Isso torna-os figuráveis, quer pelas
imagens publicitárias, quer pela perceção dos sujeitos em geral. Os segundos
são espaços abandonados, urbanisticamente decadentes. Albergando os grupos, as
atividades e os modos de vida marginais ou destoantes com as lógicas do
desenvolvimento socioeconómico dominante, são esquecidos e escondidos pelos
processos que ordenam a formação das imagens das cidades.
Esta dualidade permite pensar o turismo como um discurso abissal, no sentido
que B. S. Santos (2009) lhe atribui4: se pensarmos nos efeitos do turismo numa
cidade, podemos imaginá-lo como criador de uma fronteira entre a cidade
turística a cidade visível para os turistas) e a cidade real a cidade vivida,
parcialmente invisível para os turistas).5
Qualquer imaginário turístico envolve aproximações e distâncias à cidade real.
Nessas aproximações e distanciamentos surge, deste lado da linha', a cidade
turística: com os seus altares, os seus lugares de destaque, a sua história
oficial, as suas personagens heroicas, os seus valores tradicionais,
arquitetónicos e monumentais. É a cidade apresentada como autêntica, aquela que
tem valor turístico, que é mais vendável e apelativa para o mercado.
Do outro lado da linha', pelo contrário, esconde-se a cidade que não é vista
como suficientemente atrativa para ser mercantilizada. Escondem-se versões
alternativas da história e da cultura da cidade, os elementos invisibilizados,
afastados para a posição de interditos ou de esquecimentos.
A fronteira entre estes dois lados é, em primeiro lugar, simbólica, na medida
em que está enraizada nos instrumentos de promoção que difundem as imagens
turísticas da cidade, aquelas que a identificam e qualificam como um destino
nos mercados do turismo. Os postais, os roteiros para visitantes e os guias
turísticos, por exemplo, são elaborados de forma a mostrarem certas fotografias
da cidade e não outras, a contarem partes selecionadas da história do lugar, a
revelarem determinadas palavras e não outras, a sugerirem algumas experiências
urbanas possíveis entre muitas outras. Na sua análise do Guia Azul, R. Barthes
(1957) já alertava para o cariz seletivo dos guias. O mesmo pode dizer-se dos
outros tipos de materiais de promoção turística: eles não dizem propriamente o
que é a cidade, antes apresentam uma cidade, ou várias cidades, idealizadas) a
partir das suas imagens mais atrativas.
Em segundo lugar, trata-se, aqui, de uma fronteira física. E. B. Henriques
(1996), referindo-se a Lisboa, chamou precisamente a atenção para o facto de
nem todas as áreas da cidade participarem com a mesma intensidade e o mesmo
estatuto na formação de uma imagem turística urbana. É um facto que os
circuitos turísticos organizados revelam determinadas partes do lugar e afastam
os turistas de outras zonas da cidade, evitando alguns lugares para chegar aos
pontos turísticos.
Trata-se, por fim, de uma divisão que é também política, porque é nas zonas
mais turistificadas da cidade que se concentram a atenção e os investimentos
políticos. As hierarquias simbólicas e materiais acabam por organizar, também,
os discursos e as estratégias políticas para as cidades, e estas traduzem-se em
abordagens distintas por parte de planeadores e decisores políticos.
Estas fronteiras não são, no entanto, definitivas ou irreversíveis. Pelo
contrário, estão constantemente em transformação, refazendo-se à medida que
também as preferências turísticas se vão alterando. Esta parece ser, aliás, uma
das características marcantes do turismo moderno ' a volatilidade das ofertas e
dos gostos turísticos.
Hoje, os turistas vão reinventando a própria experiência turística: já não
estão apenas interessados nas atrações turísticas mais centradas na apropriação
visual, mas pretendem agora ouvir e cheirar, sentir os sabores e os toques da
cultura. O olhar turístico, a que se refere J. Urry (1990) como um passatempo
predominantemente recetivo, deixa de ser suficiente para a satisfação do
turista. Esta atitude está a ser substituída por uma posição reflexiva, em que
o turista é, ao mesmo tempo, a fonte e o objeto de contemplação, o consumidor e
o produtor, a audiência e o executante6.
Ao longo das últimas décadas, o património tem representado um dos mais
importantes recursos para atrair turistas. No entanto, tal opção estruturada
unicamente em torno da história dos territórios parece ter sido ultrapassada
por novas retóricas, valorizadas através de estratégias de marketing urbano
cada vez mais agressivas. É neste contexto que podemos afirmar que, no que ao
turismo diz respeito, mais do que numa economia de serviços, nos encontramos
hoje numa economia de experiências (Richards, 2001:57).
É justamente neste sentido que apontam as novas propostas turísticas baseadas
na retórica da criatividade do espaço urbano, que apelam à incorporação de
experiências passíveis de proporcionar aos turistas mais do que um mero olhar
turístico passivo. Traduzindo para a esfera turística a linguagem e as
categorias que enformam o discurso em torno da vitalidade da economia criativa,
esta retórica enfatiza a necessidade de promover a oferta de oportunidades para
que os turistas possam desenvolver o seu potencial criativo, através do
comprometimento e da participação ativa nos modos de vida e nas experiências
típicas dos locais visitados (Richards e Raymond, 2000).
Muito embora se trate, aqui, de procuras que correspondem a perfis muito
específicos de turistas, juntamente com outras procuras igualmente
especializadas e orientadas para o património histórico, as cenas artísticas, o
tom étnico dos lugares, a gastronomia local, etc.), elas compõem um conjunto de
segmentos que se apresentam como alvos preferenciais dos promotores do turismo
urbano, até por corresponderem, em regra, às categorias de turistas mais
abastados e com maior capacidade de consumo. Nesta perspetiva, o turismo
criativo parece ser, apenas, mais uma nova versão das muitas em que a
associação entre turismo e cultura se vai desdobrando. Para a elaboração dessa
nova versão, consultores, promotores turísticos, planeadores e marketeers vão
procurando reinventar diferenças competitivas para as cidades e essa reinvenção
acaba por alterar as fronteiras entre a cidade turística e a cidade real, entre
espaços figurados e espaços desfigurados da cidade. Na tentativa de
reposicionarem as cidades nos mercados turísticos, muitos desses profissionais
reequacionam agora o valor histórico e patrimonial das cidades e avaliam outras
possibilidades de investimento simbólico.
3. O Valor do Património e as Novas Imagens Turísticas das Cidades
Os casos de Coimbra, em Portugal, e Salamanca, em Espanha, parecem apontar para
estas mudanças estratégicas na forma de promover imagens turísticas das
cidades. A importância do turismo é especialmente reveladora no caso espanhol,
na medida em que o país é, desde 2001, o segundo destino turístico a nível
mundial e, desde 2004, o segundo país que mais receitas gera através das
atividades do turismo internacional. Mas também em Portugal é bem conhecido o
relevo económico e sócio-cultural da atividade turística e o papel estratégico
que lhe vem sendo atribuído nas estratégias e nas políticas para o
desenvolvimento dos territórios. O que liga os dois países não é apenas a
importância que, na sua história recente, o turismo foi adquirindo, nem as
semelhanças entre os respetivos perfis e posições no mercado turístico
internacional; são também, de resto, os fluxos de turistas que se movimentam
entre ambos, a circulação e a mimetização de modelos de desenvolvimento
turístico no interior da Península e, no que ao turismo cultural e urbano diz
respeito, a competição entre cidades ibéricas pela captação das procuras
turísticas ibéricas e internacionais.
Coimbra e Salamanca são duas cidades dotadas de longa história e tradição
universitária: ambas nasceram com a edificação de lugarejos primitivos nas
colinas sobre os respetivos rios Mondego e Tormes. Foram ocupadas por romanos,
visigodos e muçulmanos, antes de serem reconquistadas pelos cristãos. Um marco
importante das suas histórias teve lugar no séc. XIII, em 1218 em Salamanca e,
em 1290, em Coimbra: a criação dos Estudos Gerais que dariam origem,
posteriormente, às Universidades de Salamanca e de Coimbra. As duas
instituições constituíram, desde muito cedo, centros de atração de milhares de
estudantes originários de diversos lugares do mundo. Ambas contribuíram,
também, para a consolidação e difusão das línguas portuguesa e espanhola,
transformando-se em importantes centros europeus para a inovação e produção de
conhecimento.
Durante as últimas três ou quatro décadas, a oferta turística promovida em
Coimbra e Salamanca, estruturada em torno da história destas cidades, com
destaque para as suas componentes monumentais e enaltecida pela importância das
instituições universitárias ' tanto pela dimensão histórico-monumental, como
pela trajetória cultural rica das duas universidades ' parece ter sido uma
fórmula de sucesso. Assim indicam alguns dados7sobre as experiências e as
preferências de turistas e visitantes8 nestas cidades.
Entre eles, o conhecimento prévio de Salamanca parece dever-se, sobretudo, à
universidade e ao conjunto monumental da cidade9. O título de Salamanca como
cidade património mundial, embora com níveis de conhecimentos mais modestos,
parece ser, também, um importante fator de conhecimento prévio da cidade10. Por
outro lado, em Coimbra, a Universidade e o seu conjunto monumental, bem como o
parque temático Portugal dos Pequenitos surgem como os locais que a maior parte
dos turistas já conhecia11. Estes constituem, igualmente, o conjunto dos locais
mais visitados em cada uma das cidades12, enformando uma experiência turística
bastante centrada nos aspetos histórico-monumentais das cidades, com especial
presença dos que estão relacionados com as duas universidades.
É, talvez, pela consciência desta excessiva concentração da presença turística
num número limitado de atrações monumentais que os promotores turísticos
oficiais nas duas cidades13 estão, agora, a investir na diversificação da
oferta existente, avançando para a promoção de novas experiências que não se
limitem à tradicional contemplação do património monumental.
No portal oficial de promoção turística de Salamanca, pode ler-se que a cidade,
além de se dedicar ao ensino da língua espanhola, está a voltar-se para o
cinema, porque Salamanca es un escenario perfecto para el desarrollo de
rodajes. É igualmente uma cidade ideal para a realização de congressos, sendo
by far the best choice (Turismo y Comunicación de Salamanca, 2006). Aqui, os
turistas podem, ainda, diversificar a sua estadia com um jogo de golfe porque:
La ciudad ha ido ampliando su oferta sin renunciar ni a su encanto ni a la
riqueza que le hicieron merecedora de esos títulos. El turismo familiar,
cultural, idiomático, gastronómico o de congresos son parte de los mercados a
los que la ciudad se ha ido abriendo en los últimos años. Convertir a Salamanca
en destino preferente del turismo de golf es el nuevo reto de la ciudad
(Turismo y Comunicación de Salamanca, 2006).
Todas estas novas apostas da cidade têm subjacentes, de acordo com os
promotores oficiais, preocupações ambientais, pelo que turistas e visitantes
têm, ainda, à sua disposição um manual de boas práticas para usar a cidade ya
que nuestras acciones repercuten negativamente sobre el medio ambiente del
destino a visitar (Turismo y Comunicación de Salamanca, 2006).
Em Coimbra, por sua vez, segundo o portal de promoção oficial da cidade, os
turistas podem agora optar por um turismo de natureza, com visitas guiadas pela
Mata Nacional do Choupal, com passeios de barco pelo Rio Mondego ou com
percursos que dão a conhecer o valioso património natural de Coimbra,
constituído por um conjunto de locais diversificados sob o ponto de vista
ecológico e paisagístico (Turismo de Coimbra, 2008). Além disso, é também
possível experimentar os novos percursos religiosos pela cidade: explorando a
vida e obra da Irmã Lúcia, conhecendo os valores culturais e patrimoniais
relacionados com a Rainha Santa Isabel, ou dedicando-se a conhecer a vida de
Santo António. Por fim, para além de poderem Passear na História da cidade,
os turistas podem escolher Passear na Literatura com um roteiro torguiano, ou
conhecer a Coimbra Contemporânea, visitando os mais inovadores e
contemporâneos edifícios da cidade, com destaque para obras de autores de
reconhecido mérito nacional e internacional (Turismo de Coimbra, 2008).
Os dois casos envolvem a criação de novas imagens turísticas que usam mais do
que o património monumental e universitário para se promoverem. Disso são
exemplo estas novas ofertas disponíveis para fruição turística nas duas
cidades. Neste processo, vão incorporando algumas das fórmulas presentes na
retórica do turismo criativo, não só através da diversificação e integração de
outras atrações turísticas distintas, como também da abertura a novas formas de
turismo participativo e de experiências.
Não significa isto que o património das cidades não continue a ser responsável
pela atração de muitos turistas. Mas, segundo os desafios lançados pelas
agendas do turismo criativo, esses patrimónios podem ser enriquecidos, inovando
a experiência de quem visita as cidades. Esta nova leitura do turismo provoca,
assim, um reequacionamento do valor das narrativas históricas locais para a
promoção de agendas turísticas eficazes para as cidades. Parece que, nos dias
de hoje, se as cidades não atualizarem as suas estratégias turísticas estão,
constantemente, em risco de esgotarem o seu potencial de atração. E parece
evidente que as fórmulas de sucesso prometidas pela retórica do turismo
criativo, eficazes ou não, estão a alimentar, cada vez mais, o trabalho dos
promotores oficiais das cidades.
4. Os Imaginários Turísticos de Coimbra e Salamanca
Que tradução encontra este trabalho de renovação das imagens turísticas das
cidades na promoção que é feita pelos agentes do setor privado? Por outras
palavras, será que estas novas imagens de Coimbra e Salamanca, (re)criadas
pelos promotores públicos locais, estão a ser incorporadas nos discursos de
promoção dos operadores turísticos do setor privado?
Em jeito de resposta a esta interrogação, vale a pena olhar, primeiro, para um
lugar peculiar de construção de narrativas urbanas Barreira, 2005) ' os guias
turísticos, que apresentam a cidade através da recomendação de visita a
determinados locais, garantindo que se evitam desvios ao modo planeado de
conhecê-la.
No Guia American Express14 de Portugal McDonald, 2007), Coimbra continua a ser
a velha cidade universitária que merece ser explorada e constitui um bom
ponto de ligação para outros locais nas Beiras. O que aqui se destaca é o berço
de seis reis de Portugal, o título de capital até 1256 e a sede da mais antiga
universidade do país.
A descrição da cidade destaca a entrada para a cidade velha, as repúblicas e as
duas catedrais que se erguem na sombra da Universidade. Do outro lado do
Mondego merecem destaque os aspetos lendários: Santa Isabel e Inês de Castro. À
parte desta exposição, faz-se o desafio À Descoberta de Coimbra, rubrica que
chama a atenção para o afeto que os habitantes de Coimbra nutrem pelo Mondego,
o rio dos poetas, e apresenta breves explicações sobre oito monumentos da
cidade. A Universidade merece uma nota especial acerca da sua história e da sua
relação com as tradições estudantis.
Por seu turno, na versão espanhola deste guia, começa-se por afirmar, no
capítulo respeitante a Castela e Leão, que no coração da monumental cidade de
Salamanca fica a mais antiga universidade da Península (Inman, 2009: 347). De
acordo com o texto deste guia, a grande cidade universitária de Salamanca tem
o melhor conjunto espanhol de arquitectura renascentista e plateresca (Inman,
2009: 358). Na descrição do espaço urbano destaca-se o facto de todas as
atrações turísticas estarem presentes numa zona suficientemente compacta para
se visitar a pé. Apesar da descrição de onze monumentos, o guia refere que a
visita à universidade, à Plaza Mayor e às duas catedrais é indispensável
(Inman, 2009: 360). São, de resto, estes três elementos os únicos a merecer o
título de atrações.
Vale a pena olhar, em segundo lugar, para as imagens das cidades que são
promovidas, no quadro da atividade turística, por um conjunto de operadores
privados que atuam nos mercados nacionais e internacionais, porque é, também, e
talvez sobretudo, aí que se podem, efetivamente, encontrar as imagens que
identificam e qualificam as cidades como um destino nos mercados turísticos15.
Nos textos destes programas turísticos, Coimbra é apresentada, principalmente,
como uma cidade universitária. Nesses materiais pode ler-se que não se trata de
uma cidade com uma infraestrutura educativa comum a inúmeras outras cidades,
mas sim de uma ilustre cidade universitária. Interessante, também, é a
referência frequente ao facto de a Universidade estar ainda em funcionamento,
invocando uma imagem de património vivo.
Salamanca, por sua vez, surge nestes programas como uma das primeiras cidades
universitárias da Europa. É apresentada como uma cidade histórica e monumental.
É o seu centro histórico que merece destaque pela arquitetura barroca e
plateresca, de que a Plaza Mayor é um exemplar interessante.
Pode depreender-se desta breve análise que, em qualquer um dos casos, seja nos
guias turísticos, seja nos textos dos programas turísticos, as duas cidades
parecem permanecer, simplesmente, cidades históricas e universitárias, não
havendo qualquer referência explícita às novas imagens em que os promotores
públicos locais estão a investir.
Considerações Finais
Qualquer imaginário turístico envolve aproximações e distanciamentos em relação
à cidade real. Assim sendo, nem as imagens publicitadas pelos promotores
locais, nem as difundidas pelos operadores turísticos têm uma correspondência
absoluta com as cidades reais, que serão tantas quantos os seus habitantes e
utilizadores em geral. Ainda assim, parecem existir algumas descoincidências
interessantes entre estes vários imaginários.
Em primeiro lugar, parece haver um desfasamento entre as imagens promovidas
pelos agentes oficiais ' imagens renovadas e, portanto, mais dinâmicas ' e
aquelas divulgadas por guias e programas turísticos ' imagens tradicionais,
logo mais estáticas, que continuam a dar um relevo especial à universidade e à
história das cidades. Este desfasamento parece confirmar que, de facto, as
cidades vivem hoje pressões competitivas fortíssimas e que, nesse quadro, ao
turismo ' uma das grandes indústrias do séc. XXI, como frequentemente os
discursos político e técnico o qualificam ' é atribuído um potencial
regenerador para as suas economias e tecidos socioculturais. Nessa medida, os
promotores oficiais das cidades não podem correr o risco de estandardização ou
esgotamento do apelo turístico local, pelo que a retórica da criatividade entra
nas agendas de promoção ' em Coimbra e em Salamanca substituindo o olhar
passivo dos monumentos e a contemplação da universidade pelo contacto com a
natureza, a prática de desportos ou a descoberta de elementos religiosos.
Em segundo lugar, a admitir este desfasamento, ele parece fazer com que o
outro lado da linha' da cidade turística que é promovida pelos operadores
privados seja mais vasto que o da cidade turística que é agora promovida pelos
agentes oficiais. O mesmo é dizer que, através da integração de novos elementos
para fruição turística, a cidade turística, aquela que é visível a turistas e
visitantes, foi ampliada e enriquecida. Para 'este lado da linha', por um lado,
transitaram elementos que antes estavam do outro lado da linha' ' exemplo
disso são os elementos literários e religiosos, em Coimbra, e o ensino da
língua espanhola, em Salamanca; e, por outro, foram criados novos elementos que
passam, agora, a constituir os novos imaginários turísticos das cidades ' como
o golfe e os congressos, em Salamanca, ou as rotas pela natureza, em Coimbra.
A questão que aqui se coloca é a do poder do turismo na ressignificação dos
lugares, na medida em que, atuando sobre a história e a memória da cidade, as
ausências e as emergências geradas pela linha abissal do turismo ressignificam
a identidade da cidade.
A incorporação de outros discursos no imaginário turístico, através de uma
ecologia de saberes (Santos, 2006a e 2006b) ' pela qual podem emergir
alternativas ao discurso dominante ' constitui a possibilidade de reduzir o
caráter circunscrito e seletivo da cidade turística. Uma ecologia de saberes
permitiria o surgimento de diversas versões da cidade histórica, universitária,
e monumental e de muitas outras versões da cidade.
Pela incorporação de outros elementos plurais das histórias, das culturas e das
tradições urbanas, mas também pela inclusão material de espaços urbanos
diversificados, é possível imaginar uma cidade turística mais plural e diversa
com a qual os habitantes da cidade desenvolvam um sentido de identificação mais
forte. Mas uma ecologia de saberes no quadro do turismo teria uma importância
equivalente no plano político, pois pela incorporação de novos lugares
turísticos, o terreno dos investimentos económicos e financeiros por parte do
poder local seria, igualmente, alargado ' pelo alargamento simbólico e material
da cidade turística.
Mesmo da ótica do mercado do turismo, uma ecologia de saberes resultaria em
efeitos positivos, na medida em que as preferências dos turistas e a lógica do
setor não são imutáveis. Porque uma experiência turística rapidamente perde o
interesse e é substituída por outra, a incorporação sucessiva de novos lugares,
novos elementos e novas atrações é condição de sucesso para uma cidade que
queira assumir-se como turística.
Notas
1 Este artigo resulta da investigação em curso que desenvolvo no âmbito do
Programa de Doutoramento em Cidades e Culturas Urbanas, do Centro de Estudos
Sociais e da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, que, além da
Fundação para a Ciência e Tecnologia, contou com o apoio do Centro de Estudos
Ibéricos no âmbito do Protocolo de Atribuição de Bolsas à Investigação 2009.
2 Investigadora do Núcleo de Cidades, Culturas e Arquitetura do Centro de
Estudos Sociais da Universidade de Coimbra CES-UC) e Doutoranda no programa
Cidades e Culturas Urbanas, da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra
FEUC) Coimbra, Portugal). E-mail: carina@ces.uc.pt
3 Tradução da expressão original em inglês: imageability.
4 Segundo Santos (2009: 23), existem linhas radicais que dividem a realidade
social em dois universos distintos: o universo deste lado da linha' e o
universo do outro lado da linha'.
5 Para uma discussão mais profunda sobre os efeitos do turismo à luz do modelo
teórico do pensamento abissal, de Boaventura de Sousa Santos, ver Gomes (2011),
onde discuto, apenas para a cidade de Coimbra, e numa versão de trabalho ainda
em progresso, alternativas para a reduzida cidade turística e as possibilidades
e potencialidades de uma ecologia de saberes. São temas que, aqui, abordo
apenas lateralmente, de forma a discutir o valor turístico do património na
renovação das imagens das cidades.
6 Esta nova noção da experiência turística necessita, naturalmente, de ser
relativizada, na medida em que a diferentes segmentos de turistas
corresponderão, certamente, diferentes tipos de experiências turísticas. Ainda
assim, do lado da estruturação e da organização da oferta turística, esta é uma
tendência que merece atenção.
7 Os dados de caracterização geral que apresento de seguida para a
caracterização das experiências turísticas em Coimbra são provenientes de um
estudo recente (Fortuna, 2009) intitulado Fluxos Turísticos no Centro
Histórico de Coimbra, desenvolvido no Centro de Estudos Sociais da
Universidade de Coimbra, pelo Núcleo de Estudos sobre Cidades e Culturas
Urbanas. Os dados sobre Salamanca foram retirados da publicação anual da
empresa (Turismo y Comunicación de Salamanca, S.A.U. 2009) sobre a evolução, os
perfis e os comportamentos dos turistas em 2008.
8 Vale a pena referir que, em termos gerais, os perfis sociodemográficos dos
turistas das duas cidades são bastante semelhantes, apontando, principalmente,
para jovens até 30 anos com uma parcela também significativa dos que têm entre
30 e 40 anos), com elevados níveis de escolaridade, trabalhando em profissões
intelectuais, científicas ou técnicas.
9 Segundo o inquérito mais recente aos turistas (Turismo y Comunicación de
Salamanca, S.A.U., 2009), 95,4% entre os turistas espanhóis e 80,8% entre os
estrangeiros conheciam já a Universidade, enquanto 73% entre os primeiros e
70,3% entre os segundos conheciam alguns monumentos da cidade, como as
Catedrais Nova e Velha.
10 De acordo com os mesmos dados, 62,3% entre os espanhóis e 45,1% entre os
estrangeiros declararam conhecer este título já antes da visita à cidade.
11 61,1% dos turistas já conheciam a Universidade, percentagem à qual se somam
37,6% que afirmaram já conhecer a Biblioteca Joanina e 17,7% a Sala dos Atos,
ambos pertencentes ao conjunto monumental da Universidade. O Portugal dos
Pequenitos era já conhecido por 62,4% dos turistas.
12 Especificamente, a Plaza Mayor, as Catedrais Nova e Velha, a Casa das
Conchas, a Universidade e o Pátio das Escolas Menores, e a Ponte Romana, em
Salamanca; a Universidade, a Biblioteca Joanina, a Sé Velha, a Igreja de Santa
Cruz e o Arco de Almedina, em Coimbra.
13 Refiro-me, no caso de Coimbra, à Turismo de Coimbra, Empresa Municipal e, no
caso de Salamanca, à Turismo y Comunicación de Salamanca, S.A.U. Trata-se das
duas instituições de promoção turística diretamente ligadas ao poder público
local. As informações que apresento de seguida dizem respeito aos elementos
promovidos nos portais eletrónicos oficiais destas duas empresas:http://
www.turismodecoimbra.pt/ e http://www.salamanca.es
14No âmbito da minha investigação de doutoramento, estou a proceder à análise
de diversos guias turísticos portugueses, espanhóis e de outras nacionalidades
mas, a título exemplificativo, para este texto, parece-me adequado analisar as
narrativas do Guia American Express, por ser um dos que têm maior circulação a
nível internacional.
15Esta análise baseia-se num conjunto de programas, organizados por operadores
turísticos de vários países, que incluem Coimbra e Salamanca, seja como ponto
de passagem num circuito mais amplo, seja nos seus guias turísticos ou
informativos, seja, ainda, em programas direcionados especificamente para uma
destas cidades. A recolha destes programas teve início apenas para a cidade de
Coimbra, no âmbito da minha dissertação de mestrado, para a qual reuni 150
textos, e está agora em desenvolvimento na minha investigação de doutoramento,
contemplando as cidades de Braga, Coimbra, Évora, Santiago de Compostela,
Salamanca e Cáceres. Esta segunda recolha conta já com cerca de 100 textos. Uma
descrição detalhada destes programas para Coimbra pode encontrar-se em Gomes
2008).