A propósito da produção do território: Sociologia urbana e relações de poder na
estruturação do território como representação política e científica
Não se encontra o espaço, é sempre necessário construí-lo. Gaston Bachelard
(1966)
É indispensável na prática sociológica ' assim como o será na prática
científica em geral ' submeter os instrumentos teóricos e metodológicos
utilizados à análise crítica que, situando-os na sua esfera de produção, nos
permite a identificação das manifestações' especificamente ideológicas que
estão na sua origem e que escapam à visibilidade de uma praxis científica
assente na rotina. Se conferirmos à ciência ' em particular às ciências sociais
' o seu caráter de prática social (Bourdieu, 2004) ' o que implica reconhecer
desde logo um conjunto de relações sociais ' torna-se mais claro o conjunto de
determinações sociais à qual a ciência se expõe e sob as quais se constrói e se
institui.
A Sociologia Urbana' ' o uso desta terminologia implica ter em conta todo o
reducionismo temático que ela pode trazer ', considerada como uma ramificação
disciplinar da sociologia, permite-nos refletir, ainda de forma não casuística,
pelas particularidades da sua génese e desenvolvimento, sobre o conjunto de
lutas ' científicas, académicas, políticas, mediáticas ' nas quais a ciência se
encontra envolvida e sob as quais sedimenta a sua estrutura. Nesta pequena
aproximação ao universo de produção científica (um campo, no sentido
Bourdieusiano) encontramos que as lutas estão na origem ' e por isto o seu
produto na composição ' da própria ciência. A luta, batalha ideológica pela
imposição de uma ideologia, ' mecanismo que permite tanto catalisar como
inerciar os fenómenos sociais ' acontece, neste caso, pela determinação daquilo
que é o território e como ele deve ser interpretado, quer dizer, daquilo que
ele é de acordo com a imposição de um ponto de vista legítimo.
A sociologia cedo começou a debruçar-se por questões associadas ao território,
não propriamente per se, mas pela espacialização de determinados fenómenos
sociais que, em determinado momento, foram convertidos em assuntos de interesse
científico. Com isto, a importância dada ao urbano trouxe consigo a necessidade
(ou consequência) de delimitar um conjunto de fenómenos particularmente
urbanos, cedendo-se, inclusivamente, um certo particularismo ao modo de vida
urbano2, colocando-se, ao mesmo tempo, a cidade como um protagonista central '
geográfico, histórico, cultural, demográfico, económico ' nos estudos da
Sociologia Urbana.
Não se pode reduzir a história e a estrutura de uma disciplina a algumas
páginas e, salvaguarde-se, que a seleção bibliográfica se reflete na composição
daquilo que é escrito, podendo levar a pensar que se esboçou um ponto de vista
insuficientemente fundamentado'3. Mas pensamos, com todas as salvaguardas, que
é possível debater, através do breve percurso bibliográfico traçado, a certa
relação que se parece estabelecer entre ganhos ideológicos' e perdas
científicas' ' visão que não tem o intuito de fazer uma economia axiológica da
ciência ' o que, em última observação, leva a questionar as consequências da
divisão científica4 que se afirma, neste caso, sob o jargão da necessidade da
especialização científica num mundo cada vez mais complexo e urbanizado.
Em primeiro lugar, teremos em atenção a luta que decorre no campo das ciências
sociais (cf. Bourdieu, 1976), bem como, com mais especificidade, dentro do
campo de produção de conhecimento sociológico, pela imposição do ponto de vista
legítimo sobre o território urbano e, também, sobre a cidade. A Sociologia, sob
a label de Sociologia Urbana' (Topalov, 2008b), procura institucionalizar-se
através da construção de um quadro mais ou menos estável de métodos, técnicas e
conceitos que lhe permita surgir como disciplina especializada. Idêntico
processo, a nível formal, terão disciplinas como a História Urbana, a Geografia
Urbana, a Antropologia Urbana ou a Economia Urbana. A autonomização destas
disciplinas representa, de um ponto de vista epistemológico, um conjunto de
diferentes approachs ao território: como é que um conjunto de (di)visões
científicas sobre o território, objetivadas em divisões disciplinares, pode
contribuir para a produção de uma visão científica espartilhada' do
território?. Esta é a questão central que colocamos.
Se a história da Sociologia Urbana' mostra que o seu processo de afirmação e
autonomização como disciplina, em certos momentos, está relacionado com a sua
associação a políticas reformistas (Amiot, 1986; Valladares, 2005; Tissot,
2005), também é verdade que os corpos políticos e administrativos, em
determinados momentos, legitimaram' a sua ação ' veja-se, por exemplo, a
tentativa de construção, em França, de um urbanismo científico (Amiot, 1986)
' através do conhecimento científico a sua aproximação tornando-a politicamente
mais eficaz. Interessa-nos, neste segundo ponto, esboçar um quadro com algumas
das consequências sociais e sociológicas da relação que política e ciência
estabeleceram, deixando-se em aberto um conjunto de questões que permitirão
repensar algumas dimensões epistemológicas da prática sociológica.
1. Do território ao desenvolvimento de um ponto de vista disciplinar: a
Sociologia Urbana'
Pelo facto de ser uma parada de competição entre os diferentes agentes ( )
pela posse do solo; parada pela apropriação simbólica de controlo de vizinhança
e de acesso ao espaço público; parada, também, de dominações políticas fundadas
sobre competências territoriais (Grafmeyer, 1994: 26), o território é um alvo,
por excelência, de interesse analítico por parte das Ciências Sociais. Os
sociólogos ' largamente associados ao campo disciplinar da sociologia urbana '
versados nos espaços urbanizados, em particular nas cidades, mobilizam e
constroem um conjunto de conceitos/instrumentos de pesquisa que permitem-lhes
melhor aceder ao conhecimento sobre os fenómenos que aí encontram palco.
Apesar da extensa dimensão do espaço físico5, foi a partir dos espaços
urbanizados, particularmente a cidade, pela variedade e originalidade dos
fenómenos sociais que aqui têm e tiveram lugar, que a Sociologia produziu parte
considerável do seu conhecimento sobre o território6. São já muitos os autores
que versam e versaram a sua análise nos fenómenos que tomam lugar em contexto
urbanizado: partindo dos clássicos', na Alemanha, Max Weber (1966), em The
City (Die Stadt (1921)), explora o surgimento de uma estrutura autónoma
política e administrativa que controla a cidade enquanto território e, a par
desta questão, a emergência de uma burguesia urbana. Partilhando a linha
teórica de Karl Marx, que entende a cidade como produto de uma exploração
capitalista fundada na dicotomização entre a cidade e o campo, Friedrich Engels
(2010), em Inglaterra, em The Condition of the Working-Cass in England in 1884
(1887), e tendo como pano de fundo cidades como Manchester ou Liverpool no
período da Revolução Industrial, estuda a forma como as lógicas de produção
capitalistas contribuem para a falta de condições de vida e habitabilidade do
proletariado industrial. Émile Durkheim, sem ter estudos nem escritos que se
dediquem especificamente à cidade ou à questão do urbano, esboça as primeiras
linhas para compreender o território como um espaço de cristalização das
relações sociais (Durkheim, 1960); ponto de partida para Maurice Halbwachs
(1909) estudar a morfologia social', em Les expropriations et les prix des
terrains à Paris (1860-1900) (1908], mostrando que o mercado fundiário é
reflexo das representações coletivas do espaço. Estes são alguns dos autores
que, muito cedo, trouxeram à Sociologia os primeiros contributos para o
desenvolvimento de um vasto trabalho no estudo daquilo que hoje se
institucionalizou terminologicamente como espaço urbano'.
É nas três primeiras décadas do século XX, e depois até aos anos 60, que a
denominada Escola de Chicago (EC) produziu, assente nos princípios biologistas
da Ecologia Humana (por exemplo Park, Burgess e McKenzie, 1984), os primeiros
grandes estudos sobre a cidade. Robert Park (2004 (1929)) considerando-a, por
excelência, como laboratório social' e Louis Wirth (2004 (1938))
conceptualizando o urbanismo como modo de vida', os vários autores que se
enquadram na tradição' da EC dedicam-se, numa performance quase sempre
associada ao trabalho social, ao estudo de fenómenos como: o crescimento
urbano; a assimilação cultural; a desorganização social; a delinquência
juvenil; e as relações entre raça e cultura (Chapoulie, 2001). Foi com o
advento das duas Guerras Mundiais, e sob a necessidade de repensar o
desenvolvimento urbano, que, entre os anos 50 e 60 do século XX, surgiram os
Urban Studies, que, recorrendo à estatística e à economia, levam a cabo estudos
comparados sobre o crescimento de diferentes espaços urbanizados. Também em
meados do século XX, na Europa, começaram a emergir um conjunto de estudos
urbanos, sobretudo financiados por entidades de planificação urbana: em França,
pela mão de P.-H. Chombart de Lauwe e, mais tarde, por R. Ledrut, e, em
Inglaterra, inicialmente pela mão Ruth Glass e pelos Institute of Community
Studies e o Centre for Environmental Studies (Topalov, 2005). Mais tarde, nos
anos 70, um conjunto de autores (cf. Castells, 1972; Castells et al. 1974;
Castells e Godard, 1974), inscritos na corrente de pensamento Marxista7,
colocaram no centro da sua análise as dinâmicas do sistema capitalista em
contexto urbano, tomando a cidade (capitalista) como expressão das contradições
desse mesmo sistema. Em resposta a esta problemática emergiu uma teoria global
da cidade no campo de estudos urbanos (Fijalkow, 2007: 18), ancorada numa
sociologia da planificação urbana, produtora de um discurso com o objetivo de
resolver os problemas urbanos consequentes do capitalismo.
Posteriormente ao auge teórico desta corrente, surgiram, quer na Europa, quer
nos EUA, um enorme volume de trabalhos sobre os espaços urbanizados na área da
Sociologia. Sobretudo nas últimas décadas, encontram-se obras que giram em
torno de vários eixos de análise, como: o largamente debatido problema da
marginalidade/ exclusão e estigmatização urbanas (Wacquant, 2006; Beaud e
Pialoux, 2003; Kokoreff, 2000; Masclet, 2003; Bourgois, 2001; Venkatesh, 2000),
estudado, sobretudo, em cidades da Europa, dos EUA e da América do Sul; a
renovação, reabilitação, enobrecimento, nobilitação, emburguesamento'
(embourgeoisement) urbano de espaços degradados pelas classes médias, fenómenos
correntemente associados ao anglicismo gentrification (Smith, 1996; Atkinson e
Bridge, 2005; Bidou-Zachariasen et al., 2003; Slater, 2006); o efeito do
fenómeno globalização na cidade e nos processos de urbanização (Sassen, 1996;
Harvey, 2006) ' fenómenos que levam a repensar os limites territoriais, porque
movem os próprios limites daquilo é tido como espaço urbano, particularmente a
cidade.8
2. Fronteiras científicas, fronteiras territoriais?
A reunião de 1925 da American Sociological Society, onde participaram figuras
cimeiras da EC como Robert Park ou Ernest Burgess, pode ser considerada, tal
como o faz Topalov, como marca do princípio da institucionalização da
Sociologia Urbana como uma etiqueta científica.' (Topalov, 2008b) É a partir
deste momento, de forma mais ou menos instável, que a SU se vai sedimentando
como disciplina, e se vai construindo um campo científico que produz e supõe
uma forma específica de interesse (Bourdieu, 1976: 89). Isto implicou uma
processual (re)construção e estabilização de métodos, técnicas, conceitos, bem
como a reprodução e o reconhecimento de um conjunto de realidades
institucionais9 (Fabiani, 2006: 23) válidas.
Como cerne da especificidade de uma disciplina estão, é claro, os eixos sobre
os quais a pesquisa se deve orientar. Por exemplo, para Yves Grafmeyer a SU
estrutura-se em três eixos temáticos, a saber, a distribuição e movimento da
população no espaço; as práticas e atitudes dos indivíduos que vivem em meio
urbano; as ações públicas ou privadas que estão ligadas à organização da
cidade, no seu funcionamento e nas suas transformações (Grafmeyer, 2006: 21).
Yankel Fijalkow, por sua vez, enumera igualmente três tipos possíveis de
aproximação em relação ao espaço urbano: a problemática morfológica, que se
refere à explicação das formas espaciais visíveis; a proximidade espacial e
a interação entre os indivíduos; e a decisão política relativa à gestão do
espaço urbano (Fijalkow, 2007: 94). Já Patrick La Galès reconhece que o papel
da sociologia urbana deve ser o de distinguir diferentes tipos de cidade; na
verdade a grande quantidade de trabalhos que estão a emergir tentam fazer uma
distinção entre cidades de diferentes partes do mundo e ver a cidade a partir
de diferentes perspetivas teóricas e empíricas (Perry e Harding, 2002: 849) Se
alguns dos eixos de análise são partilhados entre os autores, os que diferem
estão na origem da luta pela imposição da visão sobre o que estudar no/do
território, que tem como consequência a diferenciação e a especificidade do
enfoque dado ao fenómeno urbano pelos diferentes lugares da hierarquia da
sociologia urbana, enquanto disciplina posicionada no campo das ciências
sociais.
Seriam inúmeras as perspetivas analíticas que aqui poderíamos apresentar para
dar conta da heterogeneidade de pontos de vista intradisciplinares na SU;
contudo, esta luta científica em torno de uma visão sobre os fenómenos
territorializados ultrapassa as fronteiras da disciplina, alargando-se pelo
campo das ciências sociais interessadas em questões urbanas.
A autonomização de uma disciplina, reforce-se, implica, entre outros fatores, a
existência de um corpus teórico particular, em que parte estruturante deste é o
conjunto de conceitos que são herdados da história de uma disciplina;
construídos no movimento teoria-empíria; importados de outras disciplinas;
apropriados da linguagem ordinária, etc. Seja qual for a origem dos conceitos,
eles fundam-e por referência à estrutura epistemológica ' quer dizer, por
referência aos referentes epistemológicos da ortodoxia/ heterodoxia do campo '
vigente num determinado momento da história disciplinar. É a especificidade
desta referência epistemológica que permite a institucionalização da
disciplina, quer dizer, a estabilização de fronteiras: trabalho ideológico que
implica a determinação de modos específicos de compreensão de objetos
previamente delimitados (Fabiani, 2006). Igualmente como se passou com a SU, um
conjunto de disciplinas que se interessam pela cidade e pelo urbano foram
emergindo e autonomizando-se (sob diferentes contextos espácio-temporais, é
claro): a antropologia urbana, a geografia urbana, a economia urbana, a
história urbana, a demografia urbana. Cada uma destas áreas científicas
reivindica' para si um modus operandi particular. Um curtíssimo, e por isso
não acabado, percurso pela produção teórica de algumas destas disciplinas
permite-nos dar conta de discursos alusivos à especificidade, à autonomia, à
diferenciação, quer dizer à aquisição de autoridade científica (Bourdieu,
1976: 90) sobre um ponto de vista da cidade ou do urbano.
No que se refere ao caso da antropologia urbana, Graça Cordeiro escreve que é
necessário reconhecer a vocação urbana na antropologia e ter em consideração
que esta área científica possui modelos teóricos que fazem parte da memória e
do património da antropologia urbana. (Cordeiro, 2003: 5). A disciplina tem,
portanto, condições históricas e teóricas para se afirmar enquanto tal, o que
permite a reivindicação de um modelo teórico-metodológico, que no caso da
antropologia urbana se relaciona, exemplificando, com a produção de um
conhecimento sobre o urbano e as cidades que seja produto da aplicação de
instrumentos de pesquisa (etnografia, por exemplo e por excelência)
direcionados para apreensão das dimensões passíveis de recolha próxima dos
sujeitos (cf. Agier, 1996). Michel Agier defende, por exemplo, que uma boa
maneira de termos a possibilidade de falar da cidade consiste em nos situarmos
o mais próximo possível das práticas microscópicas, singulares e plurais dos
citadinos (Agier, 1996: 16); na mesma linha metodológica, Gilberto Velho vem-
nos relembrar que uma das áreas de pesquisa mais importantes no
desenvolvimento da antropologia urbana tem sido o estudo de bairros, áreas de
cidade, localidades, ruas, espaços em geral, em que forças de relacionamento,
organização e sociabilidades são exercidas (Velho, 2009: 14). O interesse
pelas dimensões de análise referentes às práticas sociais, é um dos pontos
charneira que permite à antropologia diferenciar a sua visão sobre o
território, particularmente em relação à sociologia. Depaule, a este propósito,
afirma que a autodesignação como antropólogo justifica-se, portanto, pelo
projeto de se ligar ao qualitativo, quer dizer, ao sensível', de levar a cabo
análises qualitativas.10 (Depaule, 1996: 138).
Um outro exemplo. Ilustrando a questão através do caso Francês, só tardiamente,
em meados do século XX, é que a cidade e o fenómeno urbano se tornaram alvo de
interesse por parte da geografia começando, assim, a sistematizar a sua teoria,
por exemplo, em torno de espécies de espaços urbanos. À semelhança da
sociologia e da antropologia, a geografia urbana constrói e delimita o seu
enfoque específico em relação à cidade, partindo do princípio que esta
representa um dispositivo espacial que configura as substâncias sociais, esta
configuração constitui, por sua vez, um estado que nós podemos analisar e um
processo sobre o qual importa compreender a sua arqueologia (Lussault, 2000:
31). Encontramos nesta disciplina uma visão teórico- metodológica que se
prende, sobretudo, com a compreensão da sociedade urbana' através do estudo da
organização dos espaços, levado a cabo com base, por exemplo, em tipos-ideiais
como os géotypes (cf. Lévy, 1994).
Poderíamos, aqui, fazer uma resenha muito mais alargada das disciplinas das
ciências sociais que tomam como eixos de análise problemáticas relacionadas com
o urbano e com a cidade, como a história urbana (Baudoui et al., 1990;
Thernstrom, 1969; Dyos, 1973; Lepetit e Pumain, 1999) a demografia urbana (Le
Bras, 2000), a economia urbana (Dazevies, 2000); porém, o que neste contexto
importa reter é a dimensão que estrutura, transversalmente, todas estas áreas
científicas: é em torno da cidade e da realidade urbana' que todas estas
disciplinas espacializam a sua análise, posicionando-se, ao mesmo tempo, e
muito especificamente, no campo das ciências sociais interessadas em questões
associadas ao território urbano.
Se é o interesse pelo urbano' que nos permite agregar analiticamente tais
disciplinas num mesmo grupo ' das ciências sociais que se debruçam sobre as
problemáticas urbanas ', são, também, estas duas dimensões' que lhes permitem
instituir-se enquanto parte de um campo autónomo de produção científica. Se a
autonomização de cada uma destas disciplinas é conseguida através da
especialização/diferenciação de um ponto de vista sobre o urbano ' que se pode
operar a nível metodológico, teórico, conceptual ' são também as
características que fundam os próprios conceitos de urbano', bem como o de
cidade', que permitem que essa especialização/diferenciação disciplinar ocorra
de forma eficaz. É a difícil determinação ' e quando realizada, é provisória e
situada - dos limites físicos e fenomenológicos da cidade e do urbano (cf.
Guerra, 2003) que autoriza que cada uma dessas disciplinas construa, por
exemplo, a sua cidade: a cidade dos sociólogos' (Pinçon e Pinçon-Charlot,
2000; Grafmeyer, 2006); a cidade dos historiadores' (Pinol, 2000); a cidade
dos antropólogos' (La Pradelle, 2000). É exatamente pela hiperplasticidade
fenomenológica e morfológica que o espaço físico oferece que a definição de
cidade como objeto de estudo resiste a uma atribuição disciplinar simples,
porque ela repousa sobre uma ambiguidade fundamental e os seus approachs
oscilam entre a escolha de um recorte geográfico aparentemente circunscrito e a
análise aprofundada de um objeto de estudo. (Van Damme, 2005: 14). Se a cada
disciplina corresponde um ponto de vista aprofundado sobre a cidade ' um
recorte geográfico' e um objeto de estudo' específico, o móbil da luta
científica ', ao invés, e por consequência, nenhuma delas é capaz de abarcar a
multidimensionalidade do fenómeno em estudo. Compreendendo os limites
analíticos que cada uma das disciplinas tem perante a cidade e o urbano, a
maioria dos cientistas sociais parte para uma tomada de posição baseada na
interdisciplinaridade de forma a tornar a sua visão sobre o seu objeto de
estudo mais robusta e mais acabada (cf. Perry e Harding, 2002). Se se partir da
lógica de que nenhuma área científica consegue lidar com a
multidimensionalidade do fenómeno urbano' ' que é o mesmo que compreender os
limites analíticos de cada área científica ', exatamente porque a história
epistemológica de cada disciplina foi institucionalizando um corpus de pesquisa
vocacionado para certas dimensões que, como escreve Godard, a injunção
interdisciplinar marca a investigação sobre a cidade na medida em que a
interdisciplinaridade se tornou no estandarte da epistemologia urbana.
(Godard, 2000: 369).
Se uma parte dos investigadores opta pelo cruzamento de metodologias, teorias e
conceitos de outras áreas científicas, não deixa, à partida, de produzir
conhecimento científico por e para referência ao campo científico específico no
qual está inserido, quer dizer, mobiliza na sua prática um conjunto de
recursos científicos', sejam os que se encontram em estado incorporado' ou em
estado objetivado'11 (Bourdieu, 1976). A estabilidade e a reprodução das
lógicas do campo são assim asseguradas, mantendo-se, de forma mais ou menos
estável, os pontos de vista instituídos por cada uma das disciplinas.12 Isto
implica pensarmos que, apesar das trocas de informação entre áreas científicas,
cada uma delas produz um programa de pesquisa específico ' e dentro da própria
disciplina um conjunto de pontos de vista, pelo menos no caso da sociologia
urbana ' (métodos, técnicas e conceitos), do qual derivam diferentes categorias
de perceção, que, dadas as diferentes origens, de uma ou de outra forma,
estarão na base de uma possível sobreposição de lógicas classificatórias sobre
o território.
O facto de a cidade ser o que nós decidimos fazer em função de um objetivo
analítico (Reissman, 1994: 153) abre portas, por um lado para a indefinição
dos seus limites quer físicos, quer conceptuais e, por outro lado, em larga
medida apoiada nessa indefinição, permite que mais facilmente se constituam um
conjunto de disciplinas interessadas em mobilizar e a impor o seu conhecimento
sobre a cidade, o que implica, por sua vez, o traçar de fronteiras
disciplinares (objetivadas através de metodologias, teorias, mas também, de
departamentos académicos, manuais especializados, etc.). Se estamos perante
realidades' que têm subjacentes elevados níveis de indefinição e um conjunto
de disciplinas que estabelece uma luta, mais ou menos evidente, pela definição
dos limites dessas realidades', o conhecimento construído, em larga medida
produto dessa luta, facilmente se torna disperso, quer dizer, responde a um
sistema de referências científicas. As fronteiras disciplinares são
representativas de um conjunto de approachs específicos sobre o espaço urbano,
incluindo a cidade, o que, de um ponto de vista epistemológico, representam a
delimitação de fronteiras analíticas, na medida em que, os cientistas sociais,
por referência ao seu eixo disciplinar, reconvertem a delimitação de um eixo de
análise numa visão fraturada/fraturante do território urbano.13
2.1. Um recorte sobre o urbano. A cidade como ponto de vista
Claro que se ocorre uma autonomização teórico-metodológica, é expectável que
surjam um conjunto de visões e de divisões sobre um objeto' que aparentemente
seja o mesmo: a cidade, por exemplo. Na verdade, o objeto, se assim é permitido
chamar à cidade, é só aparentemente o mesmo: ele representa apenas a mesma
palavra, o que permite que se fale da mesma coisa sem que se fale sobre a mesma
coisa. As cidades das ciências sociais (cf. Topalov e Lepetit, 2001) são todas
elas diferentes, exatamente porque cada uma das ciências constrói sobre o
espaço físico um duplo recorte (físico e epistemológico) e, provavelmente por
um efeito social de generalização semântica (cf. Depaule e Topalov, 1996;
Topalov, 2002), apoiada em coincidências de várias ordens14, lhe dá o nome de
cidade. Com isto, tomando em consideração uma instabilidade de definição, como
responder analiticamente à possível dispersão conceptual, que reduz a nossa
compreensão sobre a cidade?'.
Se podemos colocar esta questão, não podemos responder-lhe de forma taxativa
porque se existir um esclarecimento será, decerto, longo e complexo. Em todo o
caso, sobre ela podem ser deixados dois apontamentos. No primeiro surge uma
questão: queremos mesmo compreender o que é a cidade?'. Se esta for a nossa
opção, corremos o risco de reificar a cidade através da tentativa de encontrar
um conjunto de regularidades (sejam físicas ou sociais) necessárias para
circunscrever uma realidade.
Em segundo lugar, será que o fenómeno da dispersão conceptual em torno do
conceito de cidade, deverá ser o ponto de partida para a resolução das
ambiguidades relativas a esta discussão, através da construção de um conceito
transversal a todas as disciplinas?'. Roncayolo parece-nos apresentar uma boa
hipótese de resposta a esta questão: a cidade, mais do que um conceito de
análise, é sem dúvida uma categoria da prática social. (Ronacayolo, 2005: 33).
Partindo daqui, o problema das fronteiras analíticas, originário na divisão
disciplinar, poderá ser reduzido, na medida em que cidade passa a representar,
também, uma categoria socialmente estruturada, o que obriga o investigador,
seja qual for o eixo de análise que optar a ter em consideração, a priori, que
o território sobre o qual se versa sobre é produto da mobilização social
(classista, económica, política, administrativa) da categoria cidade,
disseminada e institucionalizada em forma de linguagem ordinária, de mapas
oficiais, de toponímias, etc.
Não se pretende, com este ponto de vista, abolir total e instantaneamente as
fronteiras disciplinares ou determinar um conjunto de instrumentos de pesquisa
universais vocacionados para o estudo de fenómenos urbanos. Cada disciplina
estrutura a sua análise por referência às suas determinações analíticas, bem
como utiliza os instrumentos de pesquisa que lhe são particulares; porém, a
construção da problemática de investigação de cada uma disciplinas poderia
partir da lógica segundo a qual a cidade é, antes de tudo, uma categoria
socialmente mobilizada e mobilizável, quer dizer, uma categoria socializada que
permite os sujeitos agir nela e através da ideia que têm dela. Neste sentido,
as lógicas classificatórias mobilizadas pelas disciplinas não encontrariam
espaço para reificarem um determinado recorte científico sobre o espaço. A
certa inércia científica que existe na compreensão dos fenómenos, talvez
causada pela acumulação e reprodução dos dispersos conhecimentos disciplinares
' porque estão sujeitos aos interesses do campo onde são produzidos - pode
eventualmente ser atenuada na medida em que os conhecimentos partilhados ou a
partilhar entre as diferentes ciências sociais, ainda que produto de diferentes
pontos de vista, se fundam numa terminologia e num conjunto de interesses,
progressivamente mais coincidentes.
Com isto, poderíamos ir mais longe e propor, mais do que uma
interdisciplinaridade ' que acaba por supor quase sempre a luta pela autonomia
disciplinar ' e mais que uma cidade ' que se não for reconvertida em tipos-
ideais (cf. Rémy e Voyé, 2004) é sempre a reificação mais ou menos profunda dum
território ' haveria sobre o espaço físico, enquanto espaço de posições
determinadas relacionalmente, um conjunto de pontos de vista (histórico,
económico, demográfico, geográfico) que se concertariam para entender os
fenómenos sociais que aí ocorrem. É claro que tal facto implicaria a supressão
de um conjunto de dicotomias e de divergências analíticas, as quais não
encontram aqui espaço para discussão. Porém, longe de se ter a pretensão de, em
escassas linhas, se resolver, através de uma análise teórica, as complexas
lutas que se engendram no campo científico pela luta daquilo que é o
território, não se pode deixar de aludir, partindo daquilo que foi dito, a uma
prática onde não há a materialização da ideia de fenómenos especificamente
antropológicos, especificamente sociológicos, especificamente históricos,
especificamente geográficos.15 Partilhamos, assim, ' ainda que com consciência
de que tal tarefa será complexa e difícil ' com Marc Bloch a ideia da
necessidade de uma abertura de canais de comunicação entre as diferentes áreas
das ciências sociais, quando este autor propõe uma reconciliação das nossas
terminologias e dos nossos questionamentos, que a partir de uma boa vontade
mútua, uma linguagem científica comum - no sentido elevado da palavra, em vez
de uma coleção de signos e ordens de classificação ' constituir-se-á
progressivamente. (Bloch, 1983: 40)
3. Sociologia, elites dominantes e produção do território
Se o que colocamos em discussão são as lutas sob as quais a sociologia tem
construído a sua pesquisa sobre o território, é pertinente refletir em que
medida estas mesmas pesquisas estão associadas às relações que política e
ciência foram estabelecendo. Sendo impossível, aqui, apresentar e confrontar
todos os momentos em que a sociologia e o poder político se conectaram, com o
objetivo de construírem um conjunto de instrumentos e um campo de ação
específica na e sobre a cidade ou em outros territórios urbanizados, usaremos
apenas uma breve ilustração que procura analisar como é que o conhecimento
científico, em torno do espaço urbano, nomeadamente da cidade, representa um
ponto de partida para mostrar como é que a ciência social também se constitui
por uma adequação aos interesses em luta no campo de poder político.
É na convergência destes dois discursos (político e científico) que conseguimos
compreender uma das formas de produção do território. Por um lado, para que a
ação política sobre o território seja tácita é necessário que o espaço seja
nomeado por categorias (Topalov, 2002) ' em particular administrativas ' que o
permitam ser reconhecido enquanto tal. O discurso político sobre um espaço
reificado (que não é mais do que a mobilização política de uma categoria
arbitrária de perceção), ao circunscrever os limites desse espaço ' reduzindo o
arbitrário a um real com limites ', circunscreve, igualmente, um conjunto de
qualidades que lhe são próprias (Philifert, 2006), impondo a sua visão sobre as
divisões do mundo. Por outro lado, a sociologia urbana, disposta a cumprir a
sua função' de compreender as dinâmicas sociais do/no espaço, constrói um
conjunto de categorias que vão fundar, igualmente, o seu ponto de vista sobre o
território. Mas ciência e política não são independentes16 ' pelo menos quando
nos referimos à produção de uma visão sobre o território na tentativa de cada
um determinar o discurso verdadeiro sobre este. Ao longo da história não foram
raras as situações em que o Estado, os corpos administrativos e as instituições
de planificação urbana associaram ao seu poder de criar território o
conhecimento oriundo do campo de produção de conhecimento científico como ponto
de partida para as suas tomadas de decisão e de posição.
Se, por vezes, encontramos a prática científica unilateralmente dependente de
decisões e patrocínios de instituições políticas e/ou administrativas, noutros
momentos encontramos uma relação interessada entre política e ciência, em que a
primeira põe em prática as suas reformas com base no discurso científico e a
segunda aproveita as condições económicas e institucionais para alargar o seu
horizonte de prática. A sociologia urbana foi, por excelência, uma área
científica que se estabilizou e se institucionalizou por trás de um discurso '
nem sempre concordando com ele ' e de um conjunto de necessidades ' nem sempre
cientificamente reconhecidas político-administrativas (cf. Amiot, 1986;
Chapoulie, 2001; Topalov, 2008).
Cabe-nos aqui, então, fazer uma breve ilustração de alguns casos, com o
interesse maior de os mostrar enquanto exemplos de como a determinação dos
corpus teórico-científicos sobre a realidade urbana, que estão profundamente
associados a movimentos reformistas e de planificação urbana. Este facto
remete-nos para a questão central da reconversão da sociologia urbana, como
instrumento de compreensão de relações sociais espacializadas', em instrumento
de produção do território.
O fenómeno que envolve a inicial consolidação da Escola de Chicago' é um
interessante exemplo das relações entre o mundo Universitário (local, ou de
forma mais precisa, campo de produção, mobilização e institucionalização de
conhecimento científico) e uma elite urbana que constituía ' utilizando a
expressão de Topalov ' uma verdadeira Nebulosa Reformista (Topalov, 1999) em
torno dos problemas urbanos. Em 1923, a Fundação Rockfeller cedeu uma verba à
Universidade de Chicago com o objetivo de reorganizar de forma radical a
investigação em ciências sociais na Universidade (Topalov, 2008: 207). A
partir desta verba, Robert E. Park e a sua equipa desenvolveram um conjunto de
trabalhos ' num contexto urbano palco de vários fenómenos associados ao forte
fluxo imigratório ' com uma vertente ligada à reforma urbana e ao trabalho
social, dando menos ênfase às dimensões teóricas. Assim, a sociologia urbana
(aqui sob os princípios da Ecologia Humana), concomitantemente com a sua
estruturação enquanto disciplina ' participou na reforma política do espaço
urbano: através de um programa de trabalhos definido participou na determinação
social dos problemas urbanos', bem como legitimou, construiu, reproduziu e
naturalizou as configurações desse mesmo problema, através de um programa de
pesquisa.
Um dos exemplos das consequências socialmente nefastas, associadas à
mobilização política de dados científicos produzidos por investigadores
associados intelectualmente à EC, encontra-se nos fundamentos teóricos sob os
quais se ancorou a ação da Federal Housing Administration (FHA), relativamente
aos empréstimos para alojamento. A adoção, por parte da FHA, do modelo de
crescimento urbano (que se ancorava no naturalismo da configuração do
território que a Ecologia Humana defendia) concebido pelo economista Homer Hyot
(cf. Hyot, 1939), no âmbito de empréstimos para a habitação, levou à construção
de um sistema onde o valor de habitação em cada espaço dependia, entre outros
fatores, do valor social do espaço. A gestão urbana feita por referência a este
tipo julgamentos estereotipados' e fundada numa ilusão ecologista', que
colocava em relação direta as proximidades social e espacial17,
institucionalizou a discriminação racial sobre o mercado de alojamento
(Kuklick, 2004) e, como consequência, reproduziu as diferenças sociais,
reduzindo-as a um efeito do crescimento natural da cidade. A sucessiva espiral
de partilha de influências (cf. Chapoulie, 2001; Topalov, 2008) permitiu que se
estabelecesse uma determinada concertação de interesses entre campo político e
campo científico gerando-se, assim, um conjunto de medidas capazes de organizar
a população no espaço, determinando-se, assim, a configuração social do
território. Por sua vez, à sociologia foram dadas um conjunto de condições
(económicas e políticas) que permitiram a estruturação de um alargado plano de
investigação que ajudou à afirmação e à especialização da sociologia urbana;
bem como levou a que os cientistas sociais participassem na produção do
território, na medida em que os seus resultados permitiram levar a cabo um
plano de intervenção social.
No Brasil, no final da década de 50 do século XX, encontramos um outro exemplo
pertinente de referir, que mobiliza, num mesmo programa, ciência e reforma
social, e que permite, simultaneamente, a fundamentação de uma luta política e
uma verdadeira reconfiguração do campo académico das ciências sociais
(Valladares, 2005). Trata-se da investigação encomendada à Sagmacs18, realizada
sob a orientação do Louis-Joseph Lebret, que mais tarde daria origem à obra
Aspetos Humanos da Favela Carioca'19. Lebret, padre e fundador do movimento
cristão Économie et Humanisme', estabeleceu-se no Rio de Janeiro sob a égide
económica da Federação da Indústria do Estado de São Paulo, para levar avante
um trabalho de intervenção política, religiosa e administrativa nas favelas do
Rio de Janeiro20. Num contexto de miséria, analfabetismo e fome, Lebret,
juntamente com a sua equipa (formada, também, por sociólogos), estudava os
aspetos humanos da favela' e punha em prática princípios de Economia Humana e
Ética Comunitária, com o objetivo de melhorar as condições de vida daqueles que
viriam a ser determinados como os favelados'. Ancorado na sua reconhecida
competência, Lebret liderou uma equipa de investigação, financiada pela família
Mesquita, proprietária do jornal Estado de São Paulo e fundadora da
Universidade de São Paulo. É neste contexto, onde uma investigação no Rio de
Janeiro é financiada por um grupo com claros interesses em São Paulo, que
surgem as primeiras contradições, que nos remetem para uma reflexão em torno do
cruzamento de interesses políticos e científicos. Juscelino Kubitschek,
presidente do Brasil nesta data, estava a ser alvo de ataques políticos por
parte da União Democrática Nacional (partido de direita conservadora), por
estar a promover a deslocalização do poder federal para a cidade de Brasília.
Um estudo científico sobre as favelas permitia o jornal21 Estado de São Paulo
obter um conjunto de argumentos22 contra a deslocalização do poder governativo
do Rio de Janeiro; por outro lado, este mesmo estudo permitiria colocar em
causa a supremacia turística que o Rio de Janeiro sempre teve, comparativamente
ao caráter de espaço de industrial que tem São Paulo.
Se o trabalho realizado por Lebret foi estruturante na luta política Brasileira
da altura, também estruturou a visão da realidade favela' no mundo das
ciências sociais. A partir deste momento, a favela' foi legitimada como objeto
de estudo, por excelência, da pobreza, estatuto que levou os investigadores,
através de estudos que perpetuavam o uso das dimensões sociais de análise da
favela' utilizadas por Lebret, a estabilizarem e a reproduzirem as
representações sobre este lugar (Valladares, 2005:47), construindo uma
verdadeira agenda de pesquisa científica em torno de um território
estigmatizado, com a cumplicidade da própria ciência.
Podemos apontar aos cientistas sociais e às elites intelectuais académicas um
forte papel na construção e na institucionalização de um conjunto de problemas
sociais' e de palavras de conotação estigmatizante (ghetto, quartier
sensible') associadas ao espaço urbano. Através da mediação feita pela política
e pelos medias, o conhecimento científico sobre o território, mais do que
esclarecer as lógicas que estão inerentes à sua construção, constrói-o e
vulgariza-o. A mobilização política e mediática das categorias analíticas da
obra La galère de F. Dubet (1987) ou a investida feita pela revista Esprit em
relação à exclusão nos quartiers', a partir da organização e publicitação de
encontros e trocas de ideias, são exemplos. Com isto, o problema das
banlieues foi estabilizado com a cumplicidade das comunidades científicas: a
ciência social ajudou a criar uma categoria genérica que justifica a ideia
de uma necessária territorialização de políticas públicas (Tissot, 2005: 70).
É curioso constatar, através destes exemplos, que quando as elites dominantes
recorrem ao trabalho científico em torno do território, os estudos levados a
cabo se direcionam, especificamente, para espaços socialmente estigmatizados.
Estes espaços que são marginalizados ' seja social, política ou cientificamente
- sob o fundamento de discursos associados à violência, à criminalidade ou à
pobreza são alvo, por excelência, de um conjunto de políticas públicas
reformistas. A ciência social, no seu estatuto de dominada, é mobilizada pela
política para exercer dominação sobre certos territórios, imputando-lhe um
conjunto de categorias de perceção e divisão. A sociologia é utilizada enquanto
instrumento de regulação social (através de uma espécie de transfiguração da
sua competência em discurso político), entrando, assim, na intrincada rede de
produção social do território.23
Apesar de a ciência reivindicar para si um estatuto de neutralidade axiológica,
a subordinação aos interesses das elites dominantes dificulta atingir tal
horizonte. Por exemplo, por volta dos anos 50 do século XX, em França, sob a
necessidade de introduzir no discurso político uma vertente social', uma série
de investigações em contexto urbano foram encomendadas pelo Estado aos
sociólogos. Mas, contrariamente ao expectável por estes, e contra os cânones
metodológicos e epistemológicos que visam a autonomia de pesquisa nas ciências
sociais, as suas investigações seguem o objetivo imposto pelas entidades
reguladoras estatais, e este objetivo não é um qualquer; ele é oriundo dum
mandatário que detém o poder de financiamento e que tem a sua própria
representação da sociedade e daquilo que espera das ciências sociais. (Amiot,
1986:52). Porém, as entidades de planificação e os sociólogos, apesar de
parceiros, são, sem dúvida, irmãos inimigos, porque cada um deles possui a
sua própria representação da sociedade, que considera legítima e que deseja
impor sobre a outra. (Amiot, 1986:88). Se a dominação é exercida no sentido da
ciência e se esta, ainda que dificilmente, procura impor a sua visão, resta-
lhe, ainda que de forma conflitual, utilizar os seus próprios instrumentos de
forma a produzir conhecimento de acordo com os eixos analíticos, ou então, como
defendia Chombart de Lauwe: se o sociólogo se deve abster de dizer aquilo que
pensa, pelo menos não se deve privar de dizer o que dizem os outros e como vêm
o seu futuro'. (Amiot, 1986: 81).
Os exemplos apresentados são factos ilustrativos do passado em diferentes
contextos, por isso não podemos, a partir deles, traçar uma linha histórica
lógica e generalizável porque, decerto, variadas conexões entre política e
sociologia no estudo do urbano e da cidade ocorreram. O que nos interessa, na
verdade, é a partir daqui construir um conjunto de questões que permita pensar
a suscetibilidade da sociologia, e das ciências sociais em geral, às
determinações políticas das elites dirigentes, podendo, assim, melhor controlar
as condições específicas de produção do conhecimento sobre o território.
Apesar de a sociologia poder manter, de forma mais ou menos precária, a
utilização dos seus métodos e dos seus eixos de análise, num contexto de
influência política, é o encomendante' que determina os horizontes/limites
analíticos, através da imposição, mais ou menos direta, de um objeto de estudo.
Neste contexto, o conhecimento obtido vai corresponder sempre a um produto
politicamente personalizado, facto que nos remete para uma dependência efetiva
entre a qualidade do conhecimento produzido pela sociologia e as configurações
impostas pelas entidades políticas. Sob este facto, que posição deverá tomar a
ciência em relação às elites dominantes, que possuem o poder determinar e impor
as dimensões bases do programa de investigação?'. A tentativa de afastamento
(cf. Spenlehauer, 1999) de relações estreitas com a política será uma opção a
considerar, na medida em que a ciência, ao reaver a capacidade de determinar o
seu programa de análise, conseguirá melhor cumprir a sua valência de
emancipação. Se esta atitude é a mais expectável de um ponto de vista
epistemológico e social, não podemos esquecer dois pontos fundamentais. O
primeiro tem a ver com facto de não existir uma ciência socialmente neutra,
porque mesmo espoletando um conjunto de mecanismos de vigilância
epistemológica, ela vai estabelecer sempre correspondência com as lógicas
internas do campo de produção científica (interesses e pontos de vista
interessados (re) produzidos por referência à doxa do campo num determinado
momento) (Bourdieu, 1976). Em segundo lugar, apesar do caráter objetivo e
potencialmente neutro axiologicamente, não podemos esquecer que o conhecimento
científico é mais um dos possíveis meios a partir dos quais se constroem
categorias de perceção sobre o território, até porque a ciência não tem outro
fundamento que não seja a crença coletiva nos seus fundamentos (Bourdieu,
1976: 99).
Através dos instrumentos críticos que a própria sociologia concede é, então,
possível levar a cabo uma crítica aos instrumentos que a sociologia dispõe e
constroem. Pensar a génese e a estruturação da sociologia urbana, ainda que de
forma preliminar, permite refletir sobre o facto de a ciência social ser,
também, um fenómeno ideológico, quer dizer, produto de um conjunto de
interesses que se situam, quer no seu interior, quer noutras esferas da
sociedade que, em dado momento, partilharam consigo, de forma mais ou menos
evidente e direta, objetivos complementares. A partir daqui poder-se-á abrir um
conjunto de questões que permitam, quer uma reflexão alargada e conjugada entre
as consequências da luta particularmente científica e a estrutura teorico-
metodológica do próprio conhecimento científico, quer, num sentido mais vasto,
sobre a dimensão axiológica que recobre as relações entre política e ciências
sociais.
Notas
1 Doutorando em Sociologia na Faculdade de Letras da Universidade do Porto
(FLUP) (Porto, Portugal) e na École des Hautes Études en Sciences Sociales
(EHESS) (Paris, França). Bolseiro da Fundação para a Ciência e a Tecnologia
(FCT). E-mail: tclemos@hotmail.com
2 Cf. por exemplo com os textos clássicos de G. Simmel (2004) ou L. Wirth
(2004); ou tomar em consideração o texto publicado em 1968 pelo Institut de
Sociologie urbaine de Paris onde se esboçam algumas preposições de pesquisa,
que constituirão um programa de trabalho para o Instituto de Sociologia urbana
(Institut de Sociologie Urbaine ' Paris, 1968:152). Mais recentemente podemos
ter contacto com uma série de monografias especializadas em questões urbanas e/
ou citadinas e periódicos (Urban Studies'; Espaces et Sociétés';
International Journal of Urban and Regional Research') que colocam quer a
cidade quer o meio urbano como esferas em torno das quais se produzem uma série
de estudos que contribuem para reconhecer e fazer aparecer o caráter
idiossincrático de cada uma destas realidades.
3 É necessário ter em consideração que a escolha dos autores abordados (que é
sempre condicionada pelo espaço disponível de escrita, pelo conhecimento
adquirido, pelos autores reconhecidos, etc.) corresponde sempre à construção de
uma visão historiográfica possível de uma disciplina (e, na verdade, ao mesmo
tempo a construção dessa disciplina), facto que se repercute numa análise do
tipo da que aqui é proposta. Sob a consciência da impossibilidade de se
construir uma visão linear e unificadora da história da produção teórica dum
universo disciplinar, prefere se levar a cabo um discurso com a configuração de
esboço analítico e levantamento de questões deixando assim em aberto a
possibilidade de introduzir na análise novos dados.
4 É importante, assim, pensar e questionar, neste caso, se a formação de uma
sub disciplina não obriga a reconverter questões gerais em questões
particulares, quer dizer, questões de estrutura em questões de lugar?
5 Para se evitarem confusões conceptuais entre espaço físico e qualquer outro
conceito que remeta para um espaço material' e facilmente objectivável',
definimos o primeiro a partir da conceção Bourdieusiana que coloca em dialética
espaço físico/espaço social. Para Pierre Bourdieu o lugar pode ser definido
absolutamente como o ponto do espaço físico (negrito meu) onde uma coisa ou um
agente se encontra situada, num lugar, existe. Quer dizer seja como
localização, seja, dum ponto de vista relacional, como posição, relativamente a
uma ordem; com isto, o espaço físico é um espaço material de possíveis lugares
de posição, onde o espaço social (espaço de posições', disposições' e
prováveis tomadas de posição' sociais) se objetiva: o espaço social reificado
(quer dizer fisicamente realizado ou objetivado) apresenta se, assim, como
distribuição no espaço físico de diferentes espécies de bens e de serviços e,
também, de agentes individuais e de grupos fisicamente localizados ( ) e
dotados de oportunidades de apropriação destes bens e destes serviços mais ou
menos importantes. (Bourdieu, 1993:250 252).
6 Partindo da noção em torno da construção da ideia de região' debatida por
Pierre Bourdieu, considera se o território como um recorte sobre o espaço
físico ' no sentido lato , justificado sob um conjunto de fronteiras (fines)
arbitrariamente delimitadas por uma qualquer entidade com poder de dividir.
(Bourdieu, 1989).
7 Esta corrente é particularmente significativa em França. (Cf. Amiot, 1986,
sobretudo capítulos VI e VII).
8 Para uma perspetiva mais alargada e consolidada em relação à evolução teórica
em torno da Sociologia Urbana consultar Alan Warde e Mike Savage (1993), em
particular o capítulo II Os fundamentos da sociologia Urbana' (pp. 7 33).
9 Serão exemplos dessas realidades institucionais : manuais académicos;
departamentos universitários; centros de investigação; grupos de trabalho
especializados; conferências, colóquios e congressos temáticos; etc.
10 É necessário deixar claro que não se pode reduzir o projeto metodológico da
antropologia urbana a estas questões; porém pela sua recorrência na
bibliografia consultada foi tomada como exemplo.
11 Neste artigo escreve que os recursos científicos em estado objetivado se
referem ao conjunto de instrumentos, de obras, de instituições, etc. e os em
estado incorporado apresentam se sobre a forma de habitus científico
(Bourdieu, 1974:6).
12 Em certo sentido, e em certos casos, podemos pensar que a própria
interdisciplinaridade é parte integrante dos recursos científicos da
disciplina, não representando uma ameaça direta sobre os limites do ponto de
vista que dada área científica institucionaliza?
13 Veja se a seguinte afirmação como exemplo da institucionalização da divisão
disciplinar quando se debate a metodologia a utilizar na pesquisa urbana: os
geógrafos utilizam as histórias de vida; os antropólogos estudam as práticas
espaciais, os sociólogos privilegiam a multidimensionalidade, os economistas
praticam a observação de micro unidades sociais (Marié, 1996:133).
14 Colocamos, aqui, a mesma questão/problemática levantada por Roncayolo: Qual
é agora a parte de continuidade ' na realidade, nas representações ou na
ideologia ' que autoriza o uso das mesmas palavras, das mesmas noções,
aplicando se a formações históricas diferentes? (Roncayolo, 2005:33)
15 Exatamente sobre a especificidade do campo de análise da sociologia urbana,
Topalov escreve Se ela (sociologia urbana) nos dá por objeto as cidades como
sistemas espaciais, ela coloca se sobre o terreno da geografia e da demografia.
Se ela estuda somente os fenómenos sociais que tem como palco a cidade, ela não
tem nada de distintivo num mundo massivamente urbanizado onde, assim, as
fronteiras se esbatem entre aquilo que é urbano e aquilo que não é. Esta é sem
dúvida a razão pela qual a consistência da sociologia urbana foi, ao longo de
toda a sua história, largamente subordinada à forma de como os objetos lhe eram
designados no registo da ação ' quer dizer, em coerência com os múltiplos
projetos que os atores formaram para gerar, melhorar, mudar a cidade.
(Topalov, 2008:10).
16 Como escreve Bourdieu, na realidade histórica não há campo científico, por
mais puro' que seja, que não comporte uma dimensão política, e não há campo
político que não queira tomar um lugar no que se refere a questões de verdade
(Bourdieu, 2002:9).
17 Questão posteriormente refutada pela pesquisa levada a cabo por Jean Claude
Chamboredon e Madeleine Lemaire (1970) no artigo Proximité spatiale e distance
sociale. Les grandes ensembles et leur peuplement'.
18 Sigla de Sociedade de análises gráficas e mecanográficas aplicadas às
ciências sociais'.
19 Sagmacs, Aspetos Humanos da Favela Carioca, O Estado de São Paulo,
suplementos especiais de 13 e 15 de abril, 1960.
20 Tal como salientam os investigadores no capítulo introdutório do estudo: A
tarefa que nos propusemos era conhecer a vida nas favelas, penetrar, quanto
possível, na intimidade do favelado, descobrir suas atitudes fundamentais, suas
reações e sentimentos, sua conceção de vida, de si mesmo e da cidade em que
habita in Sagmacs, Aspetos Humanos da Favela Carioca, Op. Cit., suplemento
de 13 de abril.
21 Dada a publicação deste estudo num jornal diário, é importante não esquecer
a possível eficácia mediática deste facto, na medida em que a disseminação das
categorias de perceção sobre as favelas seria possivelmente mais rapidamente
generalizada pela população leitora.
22 A busca dessa argumentação está implícita nos objetivos dos encomendantes:
Ao encomendar à Sagmacs uma pesquisa sobre as favelas do Rio, o Estado teve
o objetivo de chamar a atenção dos governantes, administradores, legisladores,
políticos e estudiosos das questões sociais para esse fenômeno tão
característico dos centros urbanos do Brasil, que se manifesta de forma mais
evidente no Distrito Federal in Sagmacs, Aspetos Humanos da Favela Carioca,
Op. Cit.
23 Partilhamos, neste sentido, amplamente a opinião de Van Damme: A cidade
aparece como um lugar onde se estabelecem alianças, combinações, associações
entre a esfera académica, esfera política e grande público, onde os interesses
de uns reconfiguram as investigações de outros, e modificam em profundidade a
agenda de investigação, mas, também, e de maneira mais dissimulada, a
identidade da cidade (Van Damme, 2005:9).