Teatro Universitário em Coimbra na década de 1980
Introdução
O presente artigo insere-se numa investigação mais profunda, que pretende dar a
conhecer o meio estudantil coimbrão na década de 1980, a partir do estudo das
ações culturais levadas a cabo por um núcleo de estudantes, à margem da cultura
institucional da Direção-Geral da Associação Académica de Coimbra (AAC),
enformada pelos poderes políticos fortemente influentes. Considera-se que,
apesar dos evidentes focos de despolitização, um grupo importante, ainda que
minoritário, de ativistas estudantis respondeu a essas formas de
institucionalização e lógica partidária, e insurgiu-se contra a passividade com
que os anos oitenta são globalmente classificados, procurando, através de
manifestações de caráter cultural, recuperar o intervencionismo que
caraterizara as juventudes estudantis das décadas anteriores.
Partindo do fato histórico de que, a partir de 1975, a sociedade portuguesa
abriu portas a uma fragmentação e a uma diferenciação de consumos culturais
distintos e distantes dos padrões do regime ditatorial, reconhece-se a
democratização das práticas culturais, marcadas pela renovação das linguagens
nas artes plásticas, no cinema, na literatura e no teatro.
Neste campo concreto, emergiram novas conceções cénicas, estudaram-se novos
autores e textos, reinventaram-se espaços, reequacionaram-se opções estéticas e
surgiram importantes grupos amadores e experimentais, independentes e
universitários, que apresentaram fortes sinais de renovação (Vasques, 1999:
119). Esses grupos surgem com uma nova dinâmica de ruptura estética e de uma
prática teatral como espaço de afirmação política e de autonomia ideológica,
bem como de uma nova lógica organizacional baseada no modelo cooperativo
(Baptista, 1992: 103).
Seguindo esta tendência, o teatro, nos anos oitenta, carateriza-se pela
conjugação com as artes visuais e as artes performativas, devido ao hibridismo
de géneros (Sucher, 1999), configurando-se como um mosaico de experiências que
ajuda a entender a lógica e a dinâmica dos movimentos artístico-culturais na
sociedade portuguesa.
Foi nos meios urbanos universitários que se refletiram, melhor e mais
decisivamente, estas alterações que se vinham operando na sociedade em geral,
assumindo-se como um verdadeiro laboratório de experiências (Estanque e
Bebiano, 2007: 79). Historicamente, o teatro universitário colocou-se
frontalmente como alternativa estética e ideológica à maioria do teatro oficial
e desencadeou um processo de renovação que teve resultados visíveis. Tornou-se
num fenómeno bastante claro no contexto pós-revolucionário português, dando
origem a um movimento teatral nacional que, em relativamente poucos anos,
protagonizou a produção e consumo de novos modelos artísticos e culturais
(Barata, 2009; Vasques, 1999).
Assim, as universidades portuguesas viram nascer vários grupos de teatro
independentes como o Cénico de Direito, o Teatro Universitário de Braga, o
Teatro Universitário do Porto (TUP), o Grupo da Faculdade de Letras da
Universidade de Lisboa, o Grupo de Teatro da Associação de Estudantes do
Instituto Superior Técnico (IST), o Grupo de Medicina de Lisboa, o Grupo da
Faculdade de Direito, Grupo do Magistério Primário de Aveiro, o Teatro da
Cantina Velha, o Grupo de Teatro da Faculdade de Letras de Lisboa, o Teatro dos
Estudantes da Universidade de Coimbra (TEUC) ou o Círculo de Iniciação Teatral
da Academia de Coimbra (CITAC) (Porto, 1990-1992; Porto, 1996).
Neste período, um pouco por toda a Europa, assistiu-se a uma salutar
revitalização do teatro universitário, que desenvolveu uma prolífica atividade,
apoiada pela criação de uma Federação de Teatro Universitário que promovia
festivais nacionais e internacionais ' como o Festival Internacional de Lyon, o
Festival Internacional de Teatro Experimental Internacional em Palermo, o
Festival Internacional de Teatro Universitário em Inglaterra e a Semana
Internacional de Teatro Universitário em Coimbra ', realizava cursos, editava
um boletim mensal e apoiava os grupos.
Neste artigo procurar-se-á discutir o papel do teatro universitário na
definição das novas culturas urbanas no período da chamada transição
democrática, a partir da análise do trabalho cultural independente de dois
grupos de teatro universitário: o Teatro dos Estudantes da Universidade de
Coimbra (TEUC) e o Círculo de Iniciação ao Teatro da Academia de Coimbra
(CITAC).
1. Teatro universitário em Coimbra: TEUC e CITAC
Na Universidade de Coimbra, o teatro foi o rosto nítido da mudança, o campo
que, desde sempre, fez eco de inquietações políticas, sociais e culturais, que
viveu, conheceu, antecipou, por vezes, todos os acontecimentos sociais
marcantes. Efetivamente, o teatro universitário em Coimbra, com importantes
raízes históricas, desempenhou um papel decisivo ' pelo desenvolvimento de
trabalhos teatrais ' nas lutas estudantis, foi um banco de experiências para
grupos e encenadores em vias de profissionalização e muitos conseguiram, deste
modo, meios de sobrevivência dentro das instituições de ensino. A atividade
teatral seria, particularmente, dinamizada no seio da Associação Académica de
Coimbra (AAC), pelo Teatro dos Estudantes da Universidade de Coimbra (criado em
1938) e pelo Círculo de Iniciação Teatral da Academia de Coimbra (criado em
1956), cujas atividades no decorrer da década de oitenta aqui analisaremos.
1.1 TEUC: Semana Internacional do Teatro Universitário e Bienal Universitária
de Coimbra
Seguindo uma linha artística de representação clássica, o TEUC desde cedo se
destacou, representando em festivais internacionais, ainda na década de 1950,
como a Delfíada ' Festival Internacional de Teatro Universitário ', cabendo-
lhe, em 1961, organizar, no Teatro Académico de Gil Vicente, a VIII edição
desse festival internacional de teatro universitário, que inauguraria aquela
sala de espetáculos, pertencente à Universidade de Coimbra. Renovando-se e
refundando-se, o TEUC veio a revelar-se, nos anos oitenta, um dos organismos da
AAC que maior inovação e alternativa trouxe aos públicos de teatro da cidade e
do país. Tendo em linha de conta o papel imprescindível da formação, o TEUC
promoveu anualmente um Curso de Iniciação Teatral, cursos livres de pantomina
clássica, encenação e dramaturgia e programas de estágio, abertos a todos os
estudantes universitários (Motta, 1999: 127-137).
Nessa altura, o TEUC foi responsável pela publicação, entre 1978 e 1988, da
revista Teatruniversitário, única publicação regular de teatro durante esse
período que acompanhou a organização da Semana Internacional de Teatro
Universitário (SITU), iniciativa que bienalmente reunia, em Coimbra, o melhor
do teatro universitário que à época se fazia pela Europa. A SITU revelar-se-ia,
efetivamente, um espaço de permuta de experiências na qual participavam vários
grupos estrangeiros, revelando uma extraordinária qualidade artística,
constatada pelas críticas positivas que ia recebendo e pelos cerca de dez mil
espetadores que, a cada edição, participavam no evento (Silva, 2009: 112-125).
Na SITU estiveram presentes grupos franceses, polacos, alemães, checoslovacos,
belgas, entre outros. Mas também tomaram lugar grupos de teatro universitário
português como o CITAC, o Teatro Universitário do Porto (TUP), o Cénico de
Direito, o TUBRA, o Grupo de Medicina de Lisboa, o Teatro da Cantina Velha de
Lisboa, o Teatro de Letras de Lisboa, o Grupo da Universidade de Aveiro ou o
GRETUA (Aveiro), a ESBAL, o Cénico de Direito, o IBIS e o Teatro da Nova
(Lisboa) (idem, 115).
Pela SITU foram passando algumas das mais interessantes propostas do teatro
universitário europeu, que ali encontraram o seu melhor palco, sendo este
festival uma das mais importantes realizações do género na Europa e
considerado, por organizações estrangeiras, como o lugar privilegiado para o
confronto entre as várias escolas de teatro e os vários grupos universitários
independentes.
Estes contatos com grupos universitários portugueses e estrangeiros serviriam
de troca de experiências e como excelente forma de ligação com novas culturas e
estéticas teatrais, numa época em que se cruzavam linhas de experimentação.
Iniciativas como a SITU ' que passou a designar-se Bienal Universitária de
Coimbra, em 1986 ' promoveriam, também, o desenvolvimento artístico em vários
espaços da cidade, nomeadamente exposições em montras de casas comerciais, no
criptopórtico do Museu Nacional Machado de Castro, no foyer do Teatro Académico
Gil Vicente e no Teatro de Bolso do TEUC, alguns dos espaços que acolheram
trabalhos relacionados com a BUC.
1.2 CITAC: Ciclos de Teatro e Projectos & Progestos
O CITAC, por sua vez, enveredaria por um maior experimentalismo e arrojo
estético nas técnicas teatrais e nos autores representados e nasceria,
precisamente, como resposta à representação clássica do TEUC. Da sua atividade
destaca-se a organização dos Ciclos de Teatro, que levavam a Coimbra companhias
nacionais e estrangeiras que apostavam na renovação e inovação das linguagens,
encenações, texto e dramaturgia.
Nesse espírito de arejamento no domínio artístico, técnico e estético, o CITAC
procurou definir e assumir a sua identidade, desenvolvendo a sua ação em cursos
de iniciação de atores, montagens e apresentação de espetáculos experimentais,
ateliers sobre técnicas de clown, formação de atores, divulgação de
conhecimentos sobre os momentos e épocas fundamentais da história do teatro,
animação do teatro-estúdio, entre outras, rejeitando as regras convencionais do
teatro clássico, nomeadamente no que respeita à representação, cenários e
palcos.
Se, no período que antecedeu o 25 de abril, a sua ação se viu limitada pelas
imposições da censura, a partir de 1975 voltaria em força. No período que se
seguiu à sua reabertura, o CITAC procurou nova renovação, insistindo,
sobretudo, na formação, na experiência da pesquisa e em novas formas de
ocupação do espaço, retomando experiências de teatro de rua e de intervenção,
interagindo com outros grupos amadores e independentes que, entretanto,
proliferavam pelo país. O Círculo reiniciou os cursos de teatro, divulgando
autores até aí silenciados, como Brecht, Sartre, Aleixo, Fiama, Maltz, Gorki,
Fassbinder, Kowalski; participou em festivais internacionais em Portugal e no
estrangeiro, nomeadamente no I Festival Internacional de Expressão Ibérica e
foi-se renovando regularmente, com a entrada de novos encenadores que lhe
conferiram um cunho pessoal, como Mário Barradas.
Se as linguagens, estéticas e autores trabalhados ganharam uma nova dimensão,
também o espaço cénico a adquiriu, fazendo de Coimbra um imenso palco pronto a
receber os trabalhos do Círculo. Algumas das mais interessantes realizações do
CITAC nestes anos foram Noite de Guerra no Museu do Prado que, tal como Crime
na Catedral, intercalava peças com sketches de rua e de intervenção sobre
determinados momentos da vida académica e da sociedade, realizando happenings
entre os estudantes e a população, com cenas de confronto não ensaiadas,
performances nas ruas ou nas carruagens dos comboios (Esta danada caixa preta ,
2006: 89).
Segundo André Brito Correia, esta atividade dramática na rua faz-se em nome de
um projeto de defesa e luta pela cidadania [que] apela à intervenção dos
espetadores e a uma interação destes últimos com os performers (Correia, 2003:
6).
Tal como os locais ocupados pelo TEUC para as suas exibições, esta forma como
os estudantes ocupam o espaço urbano e se relacionam com o património histórico
e arquitetónico é, também, uma forma de resistência. Gerou, por um lado, um
interessante diálogo entre Academia e cidade, redescobrindo-se novas e
diversificadas formas de contato entre estudantes, população e património, e
levou à criação de espaços onde a performatividade ganhou particular realce, ao
subverterem-se os respetivos espaços de intervenção.
O espaço público onde intervieram estes atores assumiu-se, assim, como uma
tela gigante em que as aflições privadas são projetadas sem cessar, sem
deixarem de ser privadas ou adquirirem novas qualidades coletivas no processo
de ampliação: o espaço público é onde se faz a confissão dos segredos e
intimidades privadas (Bauman, 2001: 49).
Foi também no seu espaço íntimo, no Teatro-Estúdio, espaço cedido pela AAC ao
CITAC, que saiu uma das suas maiores realizações da época: o Multi/Ecos.
Apresentado ainda em 1979, expunha propostas multidisciplinares que englobavam
vídeo, artes performativas, texto visual e música eletroacústica. Neste projeto
ficariam lançadas as linhas norteadoras do que viria a ser o modelo do
Projectos & Progestos, enquanto proposta híbrida de integração de
audiovisual com o espaço cénico.
O ciclo intitulado Projectos & Progestos/Tendências Polémicas nas
Linguagens Artísticas Contemporâneas, coordenado por António Barros e Rui
Órfão, e formalmente iniciado em 1981, assumiu-se como um contributo cultural
coletivo, no sentido de fornecer informação e sensibilização para as
linguagens, expressões e filosofias da arte contemporânea. Do teatro
experimental às artes plásticas, da música minimalista à dança, passando pela
pesquisa literária, arte-performance, vídeo-arte, música experimental e um novo
conceito de museu e de comunicação audiovisual fizeram deste espaço um lugar de
alternativa.
Esta iniciativa, que pretendeu desenvolver uma interação direta com grupos
independentes portugueses e estrangeiros, levou a Coimbra as melhores
companhias profissionais de Lisboa e Porto, como A Barraca, o Teatro
Experimental de Cascais ou o Seiva Trupe, o L.A.C. de Lyon, o The Basement
Group de Newcastle e La Marginalia de la Forma de Arte, em Turim. Assim,
Projectos & Progestos viu-se internacionalmente reconhecido como um dos
membros de investigação no domínio das linguagens artísticas, nos anos oitenta.
O projeto recebia, continuamente, solicitações para colaborações, participação
em iniciativas locais e noutras cidades, escrita de artigos para revistas,
participação em colóquios, exposições, críticas, entre outras, colaborando com
organismos como a Tuna Académica da Universidade de Coimbra (TAUC), o Círculo
de Artes Plásticas, o CITAC, ' todos eles Organismos Autónomos ou Secções
Culturais da AAC ', revistas como a Sema ou Arte Opinião, mas também noutras
cidades, com instituições como a Cooperativa Árvore, Galeria Diferença ou, por
exemplo, a Bienal de Cerveira. A nível internacional, o Projectos &
Progestos colaborou com vários organismos, entre os quais The Basement Group,
Instituto Hasona, Vox Magazine, revista Rapport e revista Cannal.
Os seus fundadores integraram, ainda, o corpo permanente do coletivo do grupo
ARTITUDE: 01 - Progestos Visuais Multimédia, entre 1982 e 1985, uma revista de
suporte experimental do domínio dos multimédia, cujo número zero se apresentou
em forma de sapato e em que as suas páginas eram as palmilhas, como testemunha
o seu diretor António Barros em Esta danada caixa preta , conjunto de textos de
memória sobre os anos vividos no CITAC (Esta danada caixa preta , 2006: 91).
2. Breves considerações finais
O teatro universitário criou, na década de 1980, o seu lugar próprio e
específico dentro do movimento teatral português, como agente de renovação e de
conflito, capaz de desencadear um processo de mudança e consciencialização no
circuito oficial.
Na Universidade de Coimbra, grupos da Associação Académica de Coimbra, ligados
às artes cénicas, destacaram-se pela organização de cursos de formação, peças
de teatro e eventos de maior escala como festivais. O TEUC e o CITAC utilizaram
o teatro, desde a sua origem, como instrumento que institui a transgressão,
contextualizando e discutindo as utopias produzidas socialmente e criticando a
sociedade do consumo e a cultura, numa atitude de comprometimento social e
cultural (Cardina, 2008: 144).
O seu papel, enquanto dinamizadores culturais, tornou-se capital na projeção de
efetivos processos de renovação cultural e alternativa, verdadeiros
contramodelos culturais, preenchendo um lugar na sociedade académica: mais do
que uma simples função cultural, simbolizaram o imaginário referencial dos
estudantes, forma através da qual foi possível uma nova expressão, não apenas
cultural, mas uma tomada de consciência para a necessidade de alterar a
tendência de alienação, despolitização, individualismo e espírito de
concorrência de que a Universidade ia padecendo (Estanque e Bebiano, 2007).
Estes grupos revelam-se bastante inovadores, ao cimentarem uma afirmação de
identidade, através de tomada de posição política em relação à sociedade pré e
pós-revolucionária. Propõem uma nova forma de praticar a cultura, através da
utilização de formas de expressão cultural que, por um lado, reinventam o
passado ' apropriam-se dele e regressam, por vezes, a ele ' e por outro, se
aproximam dos modelos culturais internacionais, através da atualização das
técnicas e dos modelos de produção estrangeiros. Definem, ainda, uma cultura de
rutura e resistência ao padrão que se estava a afirmar, de um modelo da
revolução e de regresso ao passado adaptado à realidade democrática, centrado
na cultura popular portuguesa, que começou, então, a alinhar também nas
tendências da cultura europeia ocidental.
Estes novos formatos culturais de envolvimento estudantil tratam-se, assim, de
formas de reinvenção de práticas alternativas de cidadania cultural (Silva,
2011). Construíram lugares de produção, ação, receção e aprendizagem cultural,
que permitiram, também, uma progressão social para lá das estratégias de
democratização cultural institucionais. Em Coimbra, no teatro, como no cinema,
na música, na fotografia ou nas artes plásticas, vários movimentos culturais
ligados à universidade resistiram a esse regresso.