Escola e mudança social: recém-licenciados na área de informática em
instituições de ensino superior localizadas na área metropolitana do Porto
Introdução
O presente artigo tem por base uma dissertação de Doutoramento em Sociologia,
realizado na FLUP e orientado pelo Doutor João Teixeira Lopes. A tese intitula-
se Sociedade em Rede e Exclusões Sociais, e foi defendida em junho de 2010.
Apresentamos neste artigo alguns excertos, devidamente adaptados, no sentido de
apresentar dados empíricos acerca de um grupo de recém-licenciados em
informática, que permitem tecer algumas considerações acerca de continuidades
de estruturação de habitus entre instâncias primárias e secundárias desta
estruturação.
O objetivo da pesquisa prosseguida consistiu em captar práticas e
representações deste grupo privilegiado em termos de afirmação na sociedade em
rede e na lógica conexionista que a caracteriza, para, depois, tentar inferir
algumas conclusões acerca de grupos sociais que reúnem várias fragilidades em
termos de exercício da cidadania e, eventualmente, envolvidas em circuitos de
exclusão social. Os dados que se apresentam remetem, diretamente, para a
temática da escola enquanto perpetuador ou transformador social, sendo
apresentadas as presenças classistas segundo os diversos tipos de ensino em que
o grupo de inquiridos se insere. Procuramos concluir acerca de algumas
determinações estruturais nacionais no que se pode entender como uma sociedade
em transição para a sociedade em rede, a sociedade portuguesa.
1. Informacionalismo e realidade portuguesa: construção de um objeto de estudo
A par dos desenvolvimentos tecnológicos mais fantásticos, realidades de
pobreza, desemprego e de exclusão social são evidenciados nos meios de
comunicação social, ou mass média, também eles fruto dos desenvolvimentos da
microeletrónica, que adquiriram maior visibilidade pública a partir de meados
da década de 1970. Vários são os autores que procuram dar conta do conjunto de
mudanças que caracterizam a terceira vaga, como lhe chamou Alvin Toffler
(1982), um pouco à semelhança do que fizeram os fundadores da sociologia,
quando tentaram dar conta das mudanças trazidas pela revolução industrial.
A microeletrónica marca uma nova fase do capitalismo, mas nesta nova roupagem
continuam a estar presentes desigualdades, formas de demarcação/classificação
social e polarizações. Na modernidade tardia, os objetivos da racionalidade
iluminista continuam por concretizar.
Na qualidade de cidadãos portugueses, impõe-se-nos uma procura de
contextualizar a realidade portuguesa no panorama internacional, procurando
perspetivar os fenómenos de desigualdade e de exclusão social no contexto de
uma economia globalizada, na qual o domínio de capacidades técnicas
vocacionadas para as novas tecnologias de informação e comunicação é
determinante em termos de oportunidades de emprego e de exercício da cidadania,
sendo que a segunda dimensão abrange a primeira.
O exercício da cidadania é complexo, sendo objetivo de análise a reprodução ou
a transformação de práticas e representações por relação a instâncias de
estruturação de habitus, como o são a família, a escola e o trabalho.
Valorizamos o potencial transformador das TIC, mas pretendemos evidenciar
continuidades entre estas instâncias.
O estudo que serve de base ao presente artigo centrou-se num grupo que reúne
todas as competências em termos de domínio teórico-prático das novas
tecnologias, sendo que assumimos que as práticas e representações que o
caracterizam poderão revelar os verdadeiros contornos (o alcance) da
transformação social que se pode associar ao uso de TIC, permitindo ilações
relativamente a outros grupos sociais mais fragilizados, entendendo-se a
realidade planetária no âmbito da sociedade em rede.
2. Tecnologias de Informação e Comunicação, Mudança Social e Risco
Se, por um lado, o senso comum dá conta de uma homogeneização nos modos de
pensar e de fazer, assumindo como diapasão a cultura dos países de referência
na produção e no consumo, esta homogeneização ' efetiva ou com nuances locais '
não se faz acompanhar por um sentimento generalizado de segurança ou confiança
no presente, e, muito menos, no futuro.
É neste contexto de mudança e de incerteza ' risco ' que pretendemos
contextualizar a análise do combate à pobreza e à exclusão social, no seu
relacionamento com as TIC. O peso crescente das indústrias culturais, a
importância do saber, da sua produção, circulação, armazenamento, distribuição
e consumo, conduzem a uma reflexão acerca do papel que as novas tecnologias
podem desempenhar no desenvolvimento do nosso país, nem central, nem totalmente
periférico no sistema-mundo.
Como coexistem dinâmicas de reprodução e de mudança social, e em que moldes o
potencial modernizador destas tecnologias ' que permitem uma sociedade da
comunicação e informação generalizada ' se conjuga com o peso das estruturações
de práticas e representações realizadas em contextos de socialização primária,
é o que pretendemos averiguar.
Estas outras questões ganham força numa altura em que alguma análise social
pondera a possibilidade de integração social, pela via do trabalho, de setores
desfavorecidos ou, até, integradores do grupo alargado dos excluídos. Qualquer
proposta de intervenção e planeamento social realista não poderá ser alheia à
investigação já realizada, que conclui das multidimensionalidades dos processos
de exclusão social, sendo de ponderar no terreno os efeitos objetivos de
políticas que se referem à formação ao longo da vida (Liikanen, 2006), tanto na
sua vertente de aliciamento, como de utilidade para a generalidade dos grupos
sociais em presença em países com formas arreigadas de resistência à mudança
social.
A sociedade da comunicação generalizada ' a sociedade em rede ' alicerça-se
numa economia global e numa tecnologia de informação comum, e se podemos
pressupor que, a partir de diferentes contextos históricos e culturais as
economias e as sociedades podem alcançar níveis similares de informacionalismo
tecno-organizacional (Castells, Himanen, 2007: 4), será pertinente pesquisar
acerca dos moldes em que se configura a nossa realidade particular.
3. Informacionalismo: entre o Global e o Local
Os autores da abordagem informacionalista são os primeiros a alertar para a
diversidade de graus e de ritmos da mudança a que nos referimos, afirmando as
propriedades de diversidade que esta realidade global pode assumir, consoante o
nível de desenvolvimento das sociedades onde ocorre, bem como dos seus
particularismos culturais. Contudo, onde uma perspetiva analítica do
desenvolvimento pode visualizar novas oportunidades, uma outra pode visualizar
os mesmos mecanismos de mercado e, basicamente, a mesma desigualdade e exclusão
sociais, só que permeada pela presença das novas tecnologias de informação e
comunicação. As mesmas tecnologias que permitem a inovação e o desenvolvimento,
a sociedade em rede e a economia do conhecimento, podem estar na origem de
precarizações e marginalizações a vários níveis.
É uma temática já identificada por Sampaio, organizador de um conjunto de
debates que se fulcram no núcleo da realidade das redes globais, nas quais há
que situar o território nacional, caracterizado por pesados défices de
literacia, cultura experimental e inovação enraizados na sociedade portuguesa
(Sampaio, 2006: 420). A definição de políticas equilibradas e eficazes implica
esta temática de análise, com o fito em três desígnios a conciliar: objetivos
de desenvolvimento nacional, aperfeiçoamento do Estado de Direito e combate às
desigualdades sociais (Sampaio, 2006).
Partindo do pressuposto de que o desenvolvimento de qualquer país é
indissociável das suas características estruturais, diríamos que Portugal terá
condicionantes específicas que o caracterizam num contexto económico de matriz
mundial. Encaminharíamos, assim, as nossas preocupações de estudo para a
adaptação do crescimento e do desenvolvimento nacionais a um modelo
informacional, baseado na difusão e no uso de novas tecnologias de informação e
comunicação, anunciado cada vez mais na continuidade de abordagens que usam
termos como o de modernização reflexiva(explorados oportunamente mais adiante
nesta investigação).
Convém referir, desde já, que vamos incluir no conceito de TIC, termo usado
frequentemente neste trabalho, o conjunto convergente de tecnologias em micro-
eletrónica, computação (software e hardware), telecomunicações/radiodifusão e
ótico-eletrónica, e até a engenharia genética e as suas aplicações (Castells,
2005: 34).
Mais do que explorar os usos em termos de produtividade e de crescimento
económico permitidos pelo uso das novas tecnologias, teríamos em mente usos das
TIC que se prendem com a gestão do espaço público, com reformulações dos moldes
em que a cidadania é exercida, e logo nos moldes em que a democracia pode ser
reconfigurada.
Supomos que as conclusões obtidas junto deste grupo da população, acerca das
suas práticas e representações, nos permitirá prefigurar o impacto de políticas
sociais que pressupõem o informacionalismo (nas múltiplas leituras de que pode
ser alvo) como orientação de futuro, ponderando a familiarização com as TIC
como a resposta para a integração social de grupos em situação (ou risco) de
exclusão e como aposta de integração da economia nacional nas dinâmicas
mundiais que a envolvem, podendo avançar (reconfirmar talvez) algumas
conclusões acerca dos moldes que caracterizam esta integração.
4. Razões para uma delimitação territorial do objeto de estudo: a área
metropolitana do Porto
Identificámos um objeto de estudo ' práticas e representações dos recém-
licenciados na área da informática ' faltando agora circunscrever
geograficamente o nosso universo de análise. Escolhemos a área metropolitana do
Porto2 . Faremos recair justificação desta circunscrição geográfica nas suas
características únicas que a tornam um local de excelência para a prossecução
de um estudo acerca de impactos de novos modelos de desenvolvimento assentes e
usos de tecnologias novas.
Identificaríamos características como sendo, além de constituir o segundo maior
aglomerado populacional do país, um espaço caracterizado pela coexistência de
dualidades diversas. Por um lado, é o espaço urbano que coexiste, lado a lado,
com o espaço rural, nas dimensões objetivas e simbólicas que lhes estão
associadas. Por outro lado, é um espaço onde ocorre a oferta de formação e de
emprego com exigências de qualificação muito díspares, onde as baixas ou
inexistentes qualificações são solicitadas a par das altas qualificações. É,
também, um espaço onde a inovação (a vários níveis) coexiste com o atavismo e a
resistência à mudança, o mesmo acontecendo com os estratos sociais, em que as
elites coexistem com grupos sociais mais desfavorecidos.
Estas características observáveis no espaço dão origem a uma dinâmica muito
própria de conjugação multidimensional, razão da sua organização polinuclear,
sendo as hierarquizações espaciais e as lógicas que lhe estão inerentes
relacionáveis com as situações diversas de exclusão social em presença (Guerra,
1992).
5. Tecnologias de informação e comunicação e exclusões sociais
Não podemos dissociar as temáticas da cidadania e logo da democracia, do
trabalho e logo da integração social. Não podemos separar o trabalho,
qualificações e possibilidades das tecnologias em uso. Não podemos separar a
cidadania da participação na gestão do coletivo mediante o uso de recursos
comunicacionais (TIC, por exemplo) e pelo emprego, as principais formas de
estruturação e alargamento das redes de relações pessoais no nosso país. Não
podemos separar as TIC das qualificações, sendo óbvia a referência à família, à
escola e ao trabalho nos moldes em que se interpenetram, formando um todo
dinâmico e multiforme estruturador de disposições para as práticas, práticas
estas também elas estruturadoras de disposições, num processo de reconfirmações
ou de reestruturações mediante o qual terá que ser ponderado o
informacionalismo por relação a características estruturais nacionais.
6. Continuidades e descontinuidades entre estruturações de habitus nos
contextos família, escola e trabalho
Com o objetivo de inteleger o social, Bourdieu recorre ao conceito de habitus,
que corresponde a um conjunto de disposições culturais duradouras associadas a
uma posição social e resultantes de um processo de inculcação. O habitus
primário é inculcado pelo meio familiar e pela classe social de origem.
Justapondo-se ao habitus primário, o habitus secundário adquire-se,
nomeadamente, através das atividades escolares e profissionais. Este habitus
tem uma relação de estruturação mútua (condicionando práticas e representações)
com o volume e a estrutura de diversos capitais que qualquer indivíduo detém e
determinado momento da sua trajetória de vida.
No espaço social, quem impõem as regras, impõe, também, (des) identificações
culturais/simbólicas com os capitais valorizados, impõe e gere a violência
simbólica. É o caso do capital cultural, que sendo veiculado na escola, estará
mais próximo das classes médias e de elites culturais e mais afastado das
classes populares, usando a linguagem de Bourdieu. O poder simbólico é exercido
pelas pessoas e grupos que estão em posições de o gerir. Mesmo na carreira
académica, o saber científico constituidor do homo académicus (Bourdieu,
1989) como legítimo, obriga-o ao uso de uma linguagem conceptual específica,
rejeitando outras. Boaventura de Sousa Santos (2006) fala do epistemicídio que
tem caracterizado a modernidade. A linguagem popular, e o conjunto das suas
práticas, a sua cultura marcam uma desvantagem de partida no acesso a capitais
como os que caracterizam a cultura cultivada, sendo os critérios de qualidade
nos possíveis consumos culturais, uma grelha classificatória, que parecendo
natural, indica os critérios (socialmente construídos) da sua avaliação.
Esta violência pode não ser percebida, porque é vulgar que as pessoas não vejam
o social como o resultado de processos históricos de reprodução e mudança
social. O tempo e o espaço, visualizados instantaneamente permitem atributos de
naturalidade inquestionável ao social no qual o indivíduo se movimenta. Desta
forma, as presenças, os sucessos e os sucessos escolares podem afigurar-se como
naturais aos indivíduos que os protagonizam, sendo que, em contexto da escola e
do trabalho, reproduzem habitus estruturados, primariamente, na família.
Assim, poderemos entender os percursos de exclusão como incapacidades ou
impossibilidades dos agentes sociais pertencentes aos mais diversificados
campos conseguirem protagonizar relações de força asseguradoras dos
posicionamentos sociais por inacessibilidades aos mais diversos tipos de
capitais socialmente situacionadores dos indivíduos. Sendo estes campos
dinâmicos, não estáticos, diríamos na linha de Bourdieu, que os agentes
situados, mais ou menos centralmente, nestes campos tentam subverter,
permanentemente, as lógicas de valorização social que os organizam, de modo a
alterar posicionamentos existentes e a conseguir posições mais centrais no
espaço social.
Os excluídos estarão, não só apartados da possibilidade de afirmação nos campos
sociais, pela não posse de capitais (que se podem estruturar segundo uma
infinidade de combinações), como ainda as práticas e representações que os
caracterizam são eles próprios evidências de um habitus composto por
disposições não valoradas (estrutura estruturada) e eles próprios estruturantes
da sua posição social desfavorecida (estrutura estruturante), funcionando como
operadores simbólicos desvalorizadores/excluidores socialmente (Bourdieu,
2003).
7. Escola e efeito de destino
A análise social da ação razoável (Bourdieu, 1997: 114), racionalizável,
obriga a um uso de conceitos como os de habitus, campo, interesse ou illusio
(Bourdieu, 1997:114), evidenciando a diversidade, o conflito, a reprodução e a
conservação. A diferença existe e persiste no espaço social (Bourdieu, 1997). O
Espaço social é mapeado com um conjunto de posições de agentes. Mas este mapa
de posições, como as que são evidenciadas na construção analítica de classes
sociais, só pode ser inteligível no âmbito do que estes agentes fazem e pensam
coletivamente, e que se materializa na cooperação e no conflito. Estas práticas
e representações são percetíveis empiricamente, e inteligíveis quando são
situadas historicamente, já que o campo social é composto por um historial
próprio do desenrolar de estratégias de ação dos agentes que se situam neste
espaço (Bourdieu, 1997). Mais ainda, a estrutura de um campo é o estado das
relações de poder entre agentes ou instituições envolvidos na luta pelas
posições centrais (Bourdieu, 1997). Este princípio de análise em que se
privilegia a explicação do social pelo social é fundamental para não recair em
explicações psicologistas da ação social produzida coletivamente.
Os capitais estruturadores de posições de agentes no campo social, o capital
cultural e o capital económico, por exemplo, ganham propriedades heurísticas na
análise social, somente quando enquadrados no illusio do social, em termos de
disputas por lugares mais centrais no campo social. Em La Distinction (1979), o
autor mostra como estes capitais objetivam distinções sociais, por relação a
uma lógica de valorações de prática e representações nos quais se objetivam.
Estas valorações obedecem a uma lógica que não é natural, sendo o produto de
estratégias de reprodução das lógicas de avaliação e dos seus detentores,
precisamente os ocupantes dos lugares centrais nos campos. Estes agentes
centrais funcionam como os porteiros do espaço e da centralidade do espaço, e
as lógicas/regras de avaliação como um autentix, um descodificador
certificador.
Os agentes que ocupam os lugares centrais detêm o poder simbólico, ou seja, o
poder de impor os juízos de valor. Salvaguarda Bourdieu que este poder
simbólico só existe definido e contextualizado numa relação entre os que
exercem o poder e os que lhe estão sujeitos (Bourdieu, 1989: 14), relação só
percetível no âmbito das dinâmicas que caracterizam cada campo, a estrutura do
campo, formada pelo historial de estratégias de dominação e de subversão destas
regras ' que reconfirma o próprio campo. Os sistemas simbólicos têm
existência, não per si, mas no contexto dos campos, na existência relacional
entre agentes. Estas relações que decorrem de posições de força fazem do poder
simbólico um poder subordinado a outras formas de poder, uma forma de poder
irreconhecível, transfigurada e legitimada, das outras formas de poder
(Bourdieu, 1989: 15). As classes dominantes usarão uma linguagem inscrita num
sistema simbólico, linguagem que os identifica como constituintes dessas
classes, separando-se, assim, das restantes.
É no âmbito desta imposição de visões do mundo, que se inscreve o papel
reprodutor da escola. As visões do mundo são ideologias, e as ideologias servem
interesses de classes e frações de classe específicos. Esta perspetiva
desreifica a violência simbólica exercida por quem pode, em determinado momento
histórico da luta simbólica entre classes e frações de classe pela imposição da
definição de mundo social (Bourdieu, 1989: 11).
A força de determinadas práticas e opiniões distintas das vulgares, reside,
precisamente, nos moldes em que a distinção entre agentes é efetuada. Quem
ocupa as posições centrais diz aos outros o que tem que ser valorizado em
termos de gosto, tornando as posições ideológicas como óbvias e não resultantes
de outros interesses que não o da estética em si (Bourdieu, 1997). A estética
dominante é a estética disponível, universal, sendo a inteligência não
valorizável quando percorre outros sistemas simbólicos alternativos (que são
impensáveis, imponderáveis). Quem monopoliza um determinado capital, que é a
base do poder ou da autoridade num campo específico, tende para a ortodoxia,
tende para estratégias de conservação, já que esta conservação garante a
centralidade das suas posições (Bourdieu, 1997). O conceito de habitus integra
esta atividade de perceção e classificação, transformando numa verdadeira
linguagem as opiniões expressas pelos agentes, as suas práticas e os bens
possuídos, com base em categorias sociais de perceção, categorias que são
princípios de visão e de divisão (Bourdieu, 1997: 9). Esta gramática de
interpretação do social e as regras de funcionamento do campo social, um campo
formado por campos distintos, explica o papel de reprodução social desempenhado
pela instituição escola, que separa, certificando com títulos académicos, os
detentores estatutários da competência social, do direito de dirigir
(Bourdieu, 1997: 23), dos que não têm esse direito, naturalizando clivagens
sociais. A escola mantém a ordem social preexistente, quer dizer, a distância
entre alunos dotados de quantidades desiguais de capital cultural. Mais
precisamente, através de toda uma série de operações de seleção, separa os
detentores de capital cultural herdado dos que são desprovidos dele. Sendo as
diferenças de aptidão inseparáveis de diferenças sociais segundo o capital
herdado, tende, desse modo, a manter as diferenças sociais preexistentes
(Bourdieu, 1997: 22).
A lógica escolar é a lógica do efeito de destino (Bourdieu, 1997: 29). Sob o
pretexto da posse ou não posse de inteligência, cumpre-se um destino social por
parte de herdeiros de capitais em estrutura e volume diferenciado. Bourdieu
contempla a possibilidade de transformação social, e no caso concreto dos
recém-licenciados que estudámos, esta possibilidade fica bem patente nas
presenças verificadas no ensino superior por parte de classes e frações de
classe que, a princípio, não têm afinidade com o campo escolar, já que estão
distantes da linguagem que o caracteriza.
Falar de reprodução social implica realizar uma referência obrigatória à
instituição escola, entendendo-se a escolarização como um contexto de
aprendizagem social, fundamental na construção de identidades coletivas e de
classe, dotada de autonomia relativa por relação a outros campos (Pinto, 1991),
como o do trabalho ou o da política (Magalhães e Stoer, 2002).
As virtualidades da abordagem da importância da Escola enquanto estruturadora
de práticas e representações da população revestem-se de fulcral importância
aquando da ponderação da sua eficácia enquanto transformador de habitus
formados em contexto familiar ou do trabalho (Pinto, 1991), ou enquanto
reprodutor de habitus familiares, dando continuidade a presenças e formas de
presença diferenciadas no ensino, e concretamente no ensino superior
(Fernandes, 2001), reprodutoras do sistema social e da estrutura de classes,
impossibilitando o conjunto de mudanças caracterizadoras do informacionalismo
(Castells, 2005), de uma nova fase do capitalismo a nível planetário e,
concretamente, a nível do nosso país. Encaramos aqui a escola como a
instituição capaz de mais rápida e eficazmente difundir e permitir o acesso da
generalidade da população às TIC.
8. Os herdeiros' e a mercadorização do ensino
É uma realidade que o acesso ao saber académico pode configurar um caminho
diferencial na procura de títulos académicos, com consequentes inerências no
acesso a emprego prestigiante e compensador em termos económicos, e com
consequências na reprodução das desigualdades sociais. Contudo, a instituição
escola pode funcionar como o mecanismo perpetuador das desigualdades sociais,
dirigindo a sua cultura a herdeiros de disposições simbólicas, que a encaram
como sua, enquanto que os não-herdeiros a consideram uma imposição/violência
(Clavel, 2004). Clavel fundamenta as suas afirmações na obra Les Heritiers,
datada de 1964 e elaborada pelos sociólogos P. Bourdieu e J. C. Passeron, sendo
de referir que a abordagem destes dois autores serve de base a todo um conjunto
de estudos ainda hoje com pertinência no que respeita à investigação social e à
intervenção nas suas componentes instrumentais e ideológicas, no sentido de
questionar/avaliar o alcance da escola enquanto instrumento democrático da
mobilidade social e também a sua função de legitimar ' e logo, em certa
medida, de perpetuar ' as desigualdades de oportunidades face a uma cultura em
mudança, através dos métodos de avaliação que aplica, de privilégios
socialmente condicionados e merecidos ou de dons' pessoais (Bourdieu e
Passeron, 1964: 194). Com esta obra, os autores supracitados afirmam a presença
no sucesso/insucesso escolar de heranças familiares no que respeita (muito para
além do capital económico) ao papel da herança cultural, capital subtil
constituído de saberes, saber-fazer e saber dizer, que as crianças das classes
favorecidas devem ao seu meio familiar e que constitui um património de longe
mais rentável que professores e estudantes recusam entender como um produto
social (Bourdieu e Passeron, 1964:194). A cultura escolar destina-se apenas
aos eleitos, para alguns capazes de a incorporar, transmitir, reproduzir sem
bloqueios, não lhe oferecendo resistência, não protagonizando violências
simbólicas face ao saber escolar. Mais ainda, a escola torna natural a exclusão
social, já que o insucesso escolar é assumido como uma inerência individual
natural, não questionando a possibilidade de aprendizagem de outros universos
culturais alternativos não conotados com classes sociais interessadas em manter
as suas posições sociais (Clavel, 2004). Se o indivíduo não tem sucesso escolar
é natural que não tenha um título académico que o classifique como mão de obra
qualificada, logo o não acesso ao mercado de emprego é, também ele, natural e
acompanhado por sentimentos de culpa pessoal (Clavel, 2004). Nesta linha, a
criança ou o jovem abandonam a escola dada a incompatibilidade de mundos em
presença. Não se sentem motivados para a aquisição de "habilidades
vendáveis" como refere Max Weber (Fernandes, 1991: 42).
O próprio saber escolar e os títulos académicos que o certificam estão a ser,
eles próprios, estruturados e segmentados com objetivos de mercadorização,
constituem-se em produtos educativos, levantando novas questões em torno do
caráter emancipatório da escola, do acesso e do sucesso escolar e, logo, do seu
papel no alicerçamento da democracia, bem como em torno da lógica de aplicação
prática dos saberes escolares no mundo do trabalho, sendo que o mundo do
trabalho e as necessidades de mão de obra do capitalismo, visualizado em termos
mundiais, podem colocar em causa a autonomia do sistema de ensino face a
lógicas externas contrárias aos moldes do ensino como o idealizou Rousseau, ao
propor uma obrigação ao ensino: a de ser um emancipador, um transformador
social (Magalhães e Stoer, 2002).
Os estudantes e suas as famílias ponderam as probabilidades objetivas de
mudança no campo social ' estratégias de ascensão social ' por intermédio da
escola, e, concretamente, pela posse dos já referidos títulos académicos. Neste
caso, a escola assume o papel de uma instância de transformação de habitus
familiar. Em determinado momento histórico, um agente social pode entender que
vale a pena a sujeição a um código que não é o seu (illusio), interiorizando a
noção de que vale a pena fazer o jogo do campo e sujeitar-se às suas lógicas
(collusion), e, estrategicamente, prosseguir à transformação da estrutura e do
volume dos seus capitais, sendo observável uma evolução no tempo, uma
trajetória de alteração do seu habitus ' disposições, conjunto de regras
estruturadas de ação e de julgamento. Estas estratégias de subversão de
posições nos campos podem ocorrer por necessidades de reprodução do campo,
transformando o volume e a estrutura de capitais distinguidores de posições
(situs), ou movimentando-se de modo a que os capitais que possui sejam mais
valorizados que outros capitais que mantêm os agentes situados numa posição
(Bourdieu, 1997). Os agentes que detêm capitais valorizados e estruturados de
forma a que se confirmem mutuamente tendem para a doxa, para estratégias de
manutenção (ataraxia), mas quem não possui capital em volume e estruturação
conforme a posições vantajosas pode alterar capitais herdados, mediante a
prossecução de estratégias de mudança.
9. Individualismo, reflexividade e risco
Ponderar a questão da mudança social justifica referenciar aportes de autores
anglo-saxónicos no que respeita a dinâmicas de transformação aos mais variados
níveis (individual e institucional). Segundo Beck, as fontes de significado
individual e coletivo estão-se a perder alicerçando-se a noção de progresso
individualizado (Beck, 2000: 7). Ou seja, em face de um cosmopolitismo
global (Beck, Giddens e Lash, 2000: VI) que caracteriza a orientação
"mono-ia" do desenvolvimento assente na modernização progressiva,
por consequência da aplicação das novas tecnologias da informação e
comunicação, cabe ao individuo ser o mestre do seu próprio destino. Não falamos
de um indivíduo que, tal como assinalaram os clássicos, tem que lidar com
certezas feudais e religioso-transcendentais (Beck, 2000:7) e libertar-se
delas, mas de um indivíduo que assume como única certeza, a incerteza e o risco
em todas as dimensões da sua vida. As oportunidades, ameaças e as
ambivalências da biografia, que antes podiam ser ultrapassadas no grupo
familiar, na comunidade ou recorrendo a uma classe ou grupo social, têm de ser
cada vez mais percebidas, interpretadas e geridas pelos próprios indivíduos
(Beck, 2000: 7-8).
Contrariamente a Touraine, Ulrich Beck afirma que existem desigualdades
crescentes, mas as desigualdades de classe e a consciência de classe perderam a
sua posição central na sociedade (Beck, 2000: 8). A mobilização é individual
por relação a interesses individuais partilhados. Diríamos nós que se trata de
um regresso do ator, mas informatizado e, logo, informado, pelo menos dos
assuntos que constituem os seus interesses. Os indivíduos, para Beck, Giddens e
Lash (2000: IX), são mestres do seu próprio destino, o self fragmenta-se em
diversos selfs que procuram gerir e rentabilizar o melhor possível o conjunto
de oportunidades arriscadas que a complexidade do da sociedade moderna oferece,
sendo que esta complexidade que proporciona oportunidades também é impeditiva
de dar lugar a decisões sólidas e responsáveis (Beck, 2000: 8). Segundo Beck,
esta individualidade reflexiva ' o progresso individualizado ' dará lugar não a
uma morte do espaço político, mas a uma reconfiguração da política, agora supra
partidária, para além da direita e da esquerda, que recai na auto-
organização, entendida como uma reunificação das forças livres nos estratos
mais profundos da sociedade, na atividade económica, comunitária e política. A
auto-organização significa a sub-politização (reflexiva) da sociedade (Beck,
2000:39). A política "estabelecida" e materializada no discurso e
projetos partidários já não decide a grande maioria dos assuntos coletivos
(agora individualizados), que andam a "reboque" das alterações, a
vários níveis, despoletadas pelo progresso ligado ao uso das novas tecnologias,
independente da vontade dos próprios Estados. A palavra de ordem na modernidade
reflexiva é a negociação, vestindo o Estado o papel de negociador com os
interesses individuais coligados, e, assim, capazes de negociação. Muito deste
entendimento está contido no denominado New Public Management, em que o Estado
abandona antigas funções com ele conotadas assumindo-se, cada vez mais, como um
árbitro, mais do que a figura paternal que ocupa todas as dimensões do serviço
público (Moreira, 2002).
10. Escola, trabalho e globalização
Para conclusão da análise das estruturações operadas pelo contexto escolar e do
trabalho na aquisição e aplicação de saberes capazes de reconfigurar a
realidade social portuguesa, adiantaríamos apenas algumas conclusões,
indiciadoras de estruturações difíceis de redefinir, que nos remetem para o
mundo da escola e do trabalho e para dificuldades de regulação social, assentes
em pressupostos da sociedade industrial, que nos encurralam entre demissões do
Estado no que respeita ao serviço público e ausência de protagonismos por parte
da sociedade civil para colmatar estas demissões desregulantes'.
Adiantaríamos, assim, que a mundialização da economia, caracterizada por uma
ideologia neoliberal, abre caminho a um conjunto de incertezas/pobrezas e
exclusões que se naturalizam com a capa da flexibilidade (condição de
competitividade), mas que vêm precarizar algumas existências, até há pouco
tempo, garantidoras de posições centrais no espaço social. Esta precarização
pode conduzir, naturalmente, à exclusão social e pode atingir grupos que,
outrora, se encontravam a salvo, dando lugar a novas formas de exclusão e a
situações em que se alguns conhecem o sucesso, outros apenas conhecem o
fracasso (Fernandes, 2000), multiplicando novos espaços de precariedade.
Em vários países (como a França), os sinais de mudança iniciam-se já nos anos
80, assistindo-se a um estilhaçar do trabalho (Clavel, 2004: 67). Vulgariza-
se a precarização dos empregos, com a justificação da flexibilidade e da
seletividade, sendo usada como forma de ajustar as necessidades das
organizações em termos de mão de obra às necessidades do mercado e da produção
(Clavel, 2004: 67). Nestes países, onde se tem revogado os compromissos do
Estado-social, desenvolveram-se uma multiplicidade de medidas para minimizar os
impactos desta precarização do emprego que são tanto formas precárias como
atípicas de emprego (Clavel, 2004: 67) que podem conduzir em direção a uma
carreira nos circuitos de exclusão (Clavel, 2004: 78).
11. População e amostra
Como população em análise delimitámos, como já foi supracitado, o conjunto dos
recém-licenciados na área da informática em instituições do ensino superior
presentes na área metropolitana no Porto. Por recém-licenciados entendemos
licenciados há um ano (por relação à data de início da nossa pesquisa, no ano
letivo de 2006-2007), ou seja, no ano letivo de 2005/2006.
12. Análise de resultados: sexo e vencimentos
Verificámos presenças díspares no que toca ao sexo no grupo dos inquiridos. Se
bem que a amostra atingida não seja significativa ou representativa, esta
presença desigual de sexos é verificável nas estatísticas oficiais. Previamente
a uma apresentação em termos de lugares de classe que caracterizam os
inquiridos, apresentamos também a variação dos vencimentos observados,
condicionados à variável sexo (tabela_2).
Observamos uma presença desigual de sexos nas licenciaturas em informática, mas
mais paradoxal é a disparidade que se verifica entre sexos, em termos de
salários auferidos. Se 15,5 % dos inquiridos aufere um salário líquido de mais
de 1500 euros, destes, apenas 2 (7,4% das mulheres) casos são mulheres, sendo
que os homens reúnem 25 frequências (17% dos homens). Entre os 1001 e 1500
euros, para 44,2% de homens, temos 37% de mulheres. Se apenas 5,4% dos homens
se situa na categoria de entre 500 e 750 , esta categoria reúne quase 30% das
mulheres.
13. Lugares de classe individual e de origem
O recurso ao cruzamento entre o lugar de classe individual (LCI) e o lugar de
classe de origem (LCO) demonstra uma continuidade estrutural entre habitus
primário e procura de títulos académicos, com repercussões óbvias no trabalho
desempenhado. A procura de títulos académicos também origina a lugares de
classe individuais em presença com origens que recaem, maioritariamente, na
PBIC3 , mas que podem ter outras origens de classe, eventualmente como
estratégia de ascensão social intergeracional, como o demonstra a tabela_3.
As presenças no ensino superior verificadas indicam "recrutamentos"
plurais em termos de LCO, mostrando que o acesso às licenciaturas em
informática (o caso que estudamos) não é privilégio de algumas frações de
classe, e que é nas frações da pequena burguesia que encontramos uma maior
aposta num título académico como estratégia pessoal e familiar de ascensão
social. Contudo, os números revelam uma realidade estrutural de manutenção de
lugares de classe, que é claramente revelada, mas que pode ser mais
pormenorizadamente observada se considerarmos os níveis de ensino presentes no
agregado familiar de origem.
14. Tipo de ensino frequentado e níveis de ensino presentes nos agregados
familiares de origem
A reprodução estrutural pela via escolar acaba por emergir mais claramente
quando cruzamos o nível de ensino mais alto do agregado familiar com o tipo de
ensino a que corresponde a licenciatura realizada. São evidenciadas
disparidades no recrutamento para o superior e para o politécnico, recaindo,
neste último, os níveis de origem mais baixos. O caso do particular politécnico
acaba por ser o mais ilustrativo dentro destas disparidades, com 65,5% dos
licenciados com origem nos estratos mais baixos em termos de posse de capital
cultural4 .
A tabela_5 mostra que o nível de ensino da mãe acaba por ser mais determinante
nas frequências observadas, pois embora a análise referente ao agregado
familiar demonstre a presença mais significativa do nível de ensino alto, são
as mães que reúnem maiores frequências observadas para o nível de ensino alto,
como mostra a tabela_5.
15. Lugar de classe de origem e tipo de ensino frequentado
Vejamos agora os lugares de classe de origem (LCO) e o tipo de ensino
frequentado: público ou privado, politécnico ou universitário (tabela_6).
Os dados obtidos revelam a possibilidade de mudança em termos de classe social
pelo acesso ao ensino superior, sendo possível a fuga' a lugares de classe de
origem menos valorizados socialmente.
16. Os dados de 2009
Cardoso e outros afirmavam, há seis anos atrás, e caracterizando a realidade
portuguesa, que o atual momento de transição, entre um proto-industrialismo e
um estádio de informacionalismo ainda relativamente incipiente, está por um
lado próximo do modelo de produção industrial, pois mantêm em níveis
relativamente elevados (bastante mais de um quarto da força de trabalho) o seu
emprego industrial, mas ao mesmo tempo incorpora dimensões próximas de um
modelo económico de serviços, em que se enfatiza uma nova estrutura de emprego
na qual a diferenciação entre várias atividades de serviços se torna o elemento
chave para a análise da estrutura social (Cardoso e outros, 2005: 115-116).
Efetivamente, Portugal caracteriza-se por um número reduzido de profissionais
altamente qualificados (Cardoso e outros, 2005), confirmando a sua qualidade de
economia ou sociedade proto-informacional. Esta qualidade de
"proto" remete, diretamente, para o caráter exclusivista,
distintivo, da presença no ensino superior, já para não abordar distinções
entre tipos de ensino superior. Esta luta por posições sociais asseguradas pelo
ensino superior pode, ainda, configurar-se por lógicas que têm caracterizado as
últimas fases da ditadura e todo o período de democracia, salvaguardando,
evidentemente, as transformações que se têm verificado, especialmente no que se
refere a LCO e ao sexo em presença. Os dados do quadro 2 (baseados nos dados
disponibilizados pelo GPEARI), permitem identificar algumas nuances nos dados
existentes, por agora apenas para o ano letivo de 2008/2009, quando comparados
com os dados de 2005/2006.
O peso das mulheres no total diminuiu, podendo afigurar-se como uma tendência
futura difícil de contrariar. Reduções em termos totais também se apresentam no
ensino particular, sendo o aumento no número total de licenciados atribuível ao
ensino público, e, mais concretamente, ao universitário.
Os novos dados disponíveis carecem de um estudo classista aprofundado, e as
interpretações com base em dedução podem pecar pelas lacunas e outras tantas
incertezas. Poderemos interpretar, por exemplo, a diminuição de efetivos no
ensino privado, e concretamente no ensino politécnico, como uma constatação de
um acesso ao ensino superior mais democratizado (generalizado a todas as
classes sociais) ou como um corte (até por razões económicas) da possibilidade
de cidadãos oriundos de LCO caracterizados por baixo capital cultural acederem
ao ensino superior. Fica a sugestão para um estudo posterior, com intentos de
comparação.
Conclusões
Em conclusão, podemos adiantar que os resultados induzem, desde logo, a
concluir um relativo fechamento/restrição dos grupos sociais em presença na
amostra atingida. A transformação social é permitida pela escola, é verdade,
mas os grupos que dela participam revelam presenças díspares no ensino superior
vocacionado para a informática. À pequena burguesia cabe o mais significativo
papel transformador de lugar de classe individual permeado pelo acesso a
títulos académicos. Em termos de lugar de classe de origem a pequena burguesia
de execução e a pequena burguesia agrícola pluriactiva ' o retrato da realidade
social em presença caracterizada pela rurbanização e por possibilidades de
trabalho específicas que estruturam as últimas décadas em termos das suas
"possibilidades" nacionais e regionais. Estas duas frações de
classe reúnem um número muito semelhante àquele que a pequena burguesia
intelectual e científica reúne per si. Esta fração é a que está mais presente,
assinalando, objetivamente, a reprodução social no seu seio, colocando a escola
ao serviço desta reprodução, realizada, tanto no ensino público, como no ensino
privado, mostrando-se nos nossos dados uma preferência pelo universitário, em
detrimento do politécnico. O ensino politécnico, e especialmente o privado,
apresentam-se como a via possível e usada para a obtenção de um lugar de classe
desejado, distante do de origem, por parte das formações mais desprovidas de
capitais diversos. Não deixa de ser interessante verificar que o peso que a
habilitação literária das mães tem, é muito mais determinante que a dos pais,
em termos de procura do título académico em estudo. No agregado familiar de
origem, o peso estruturante dos pais é desigual consoante os sexos, sendo
paradoxal que esta influência não se repercuta, depois, nos sexos em presença
no grupo estudado, que se caracteriza por um número relativamente reduzido de
mulheres. Se nos centrarmos no lugar de classe individual, uma conclusão é
óbvia, a de que a componente económica pode jogar, e joga, muito a
"favor" destes licenciados. A integração nos subsistemas económico
e social (usando uma terminologia de Bruto da Costa, 2004), é objetivada no
acesso a posicionamentos de classe garantidos pela habilitação literária, e,
obviamente, pela área da licenciatura. Efetivamente, se nos lugares de classe
individual poderemos recorrer aos lugares de classe de origem na ausência de
atividade profissional, constatámos que, em 174 inquiridos, 1 afirma estar
desempregado, 1 é bolseiro de doutoramento e 2 afirmam ser estudantes, não
referindo ocupação. Ou seja, apenas 2,3% dos inquiridos, sendo recém-
licenciados, não têm atividade profissional. Contudo, algumas características
sociais da amostra atingida revelam aspetos "menos positivos" desta
integração social pelo trabalho. Se é notória a discrepância de sexos em
presença, podendo caracterizar-se como uma minoria a presença do sexo feminino
(relembramos que constitui 15,6% do total de inquiridos). Este grupo de
mulheres licenciadas em informática revela limites, em termos de sexos, para
objetivos de políticas sociais centradas nas TIC. As mulheres, não só estão em
menor número, o que se pode confirmar com estatísticas oficiais, mas também
auferem em maior número de salários inferiores aos dos homens. Efetivamente, os
números mostram presenças mais significativas de mulheres nos salários mais
baixos e presenças mais significativas de homens nos salários mais altos.
Estaremos face a dados que nos permitem afirmar uma presença do sexo feminino,
que contrasta com a generalidade da sua presença no ensino superior, tendência
que se tem verificado com a democratização do acesso ao ensino superior, sendo
que, a par da implementação "legal" desta prática, também as
mentalidades têm sido alvo de mudança na conceção da família portuguesa,
tornando-se natural o investimento alongado, em termos temporais, na educação
da mulher, abrindo espaço para um conjunto de papéis muito para além dos
tradicionais (Leandro, 2008). Efetivamente, o valor social e individual do
trabalho, enquanto estruturante da vida conjugal e familiar, tem colocado a
mulher portuguesa fora do espaço doméstico (Freire, 2008), reivindicando
protagonismo no desenvolvimento económico e social da sociedade. A situação de
inferiores rendimentos nas nossas inquiridas deve ser alvo de reflexão em torno
das oportunidades disponibilizadas na área do trabalho/emprego e da compleição
legal de que se revestem contratações e pagamentos de serviços. Apreendemos,
efetivamente, uma série de continuidades entre estruturações de disposições
operadas na família, que depois são continuadas na escola e no trabalho, sendo
sempre de salvaguardar o potencial transformador de práticas e representações
operável nas últimas duas instâncias de socialização referidas, assumindo que
são indissociáveis e mutuamente estruturadoras. Se poderemos encontrar na
escola mecanismos de reprodução social, são também evidentes mudanças sociais
apenas operáveis nestas instâncias de socialização secundária, deixando em
aberto possibilidades de desenvolvimento nacional, traduzíveis nos modos e nos
domínios de exercício da cidadania. Assim, poderemos começar por realçar
algumas especificidades do grupo inquirido, nomeadamente as que remetem para as
suas ocupações profissionais, muito relacionadas com o tipo de formação
académica na área da informática. A integração social e o exercício da
cidadania são assegurados pelo curso superior e pelo título académico possuído.
A integração no subsistema económico é óbvia, sendo evidenciadas trajetórias de
classe social de ascensão social. No entanto, se esta transformação na
estrutura de classes é uma realidade, também são notórias presenças no ensino
superior e nas ocupações profissionais que se caracterizam pela continuidade ou
manutenção de lugares de classe. Efetivamente, algum do recrutamento para o
ensino superior localiza-se no politécnico privado, ao qual correspondem os
lugares de classe de origem mais desprovidos de capital cultural. Não obstante,
é também evidente que o ensino superior público, politécnico e universitário,
reúne presenças de indivíduos localizáveis em todas as frações de classe, mesmo
as mais destituídas de capitais.
Esta origem pluralista de lugares de classe nos inquiridos deixa transparecer,
muito claramente, uma realidade estrutural em termos de estrutura de classes,
que é das permanências de lugar de classe de origem para o lugar de classe
individual dentro da pequena burguesia intelectual e científica. Este grupo
social reúne, pelo menos, o dobro de qualquer outra fração de classe social em
termos de presenças no grupo inquirido. Este facto lembra que a possibilidade
de transformação social pela posse de habilidades vendáveis na área da
informática e das TIC está condicionada pelo lugar de classe de origem, que
naturaliza o tipo de seleção classista que é operada pela escola. Este é o
primeiro dado que podemos avançar para ponderar a hipótese que queríamos
submeter a apreciação neste estudo, ou seja, a hipótese de que as práticas e
representações dos inquiridos demonstram continuidades entre estruturações de
habitus realizadas primariamente na família e estruturações realizadas no
contexto da escola e do trabalho.
Podemos adiantar uma certeza baseada nos dados do nosso estudo, a de que os
licenciados em informática estão empregados e, na sua esmagadora maioria, com
ocupações dentro da sua área. O que nos leva a algumas reticências
relativamente ao potencial integrador das TIC são as regularidades sociais
verificadas entre classes de origem e presenças no ensino superior na área da
informática, e os usos dos novos recursos tecnológicos que não se podem
traduzir, necessariamente, em exercício da cidadania, desenvolvimento e
crescimento.
Notas
1 Licenciado em Sociologia pelo Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da
Empresa do Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE IUL) (Lisboa, Portugal),
Mestre em Sociologia e Doutor em Sociologia pela Faculdade de Letras da
Universidade do Porto (FLUP) (Porto, Portugal). Docente no Instituto Superior
Politécnico Gaya e membro do Centro de Investigação e Desenvolvimento do
Instituto Superior Politécnico Gaya (Vila Nova de Gaia, Portugal). E-mail:
jmorais@ispgaya.pt
2 Esta área abrange as cidades de Espinho, Gondomar, Maia, Matosinhos, Porto,
Póvoa do Varzim, Valongo, Vila do Conde e Vila Nova de Gaia.
3 As siglas referem se a frações de classe que a seguir se identificam. BEP é
Burguesia Empresarial e Proprietária; BD é Burguesia Dirigente; BP é Burguesia
Profissional; BDP é Burguesia Dirigente e profissional; PBIC é Pequena
Burguesia Intelectual e Científica; PBTEI é a Pequena Burguesia técnica e de
Enquadramento Intermédio; PBIP é Pequena Burguesia Independente e Proprietária;
PBA, Pequena Burguesia Agrícola; PBPA é Pequena Burguesia Pluriactiva
Assalariada; PBAP é Pequena Burguesia Agrícola Pluriactiva; PBE significa
Pequena Burguesia de Execução; PBEP é a Pequena Burguesia de Execução
Pluriactiva; OI é o Operariado Industrial; OA, Operariado Agrícola; OIA,
Operariado Industrial e Agrícola; e o OP é o Operariado Pluriactivo. Esta
nomenclatura, usada para caracterizar a estratificação social que caracteriza
os inquiridos em classes e frações de classe, segue regras de taxonomia (ou
critérios classificatórios/distinguidores) sugeridos por Dulce Magalhães. Vamos
referir como fundamentação bibliográfica, a sua dissertação de doutoramento
Dimensão Simbólica de uma Prática Social: Consumo do Vinho em Quotidianos
Portuenses (2005). Na sua dissertação de doutoramento, Dulce Magalhães
explicita os moldes da construção do lugar de classe individual (LCI) e do
lugar de classe de origem (LCO). Na página 479, em nota de rodapé, esclarece
que foi efetuada atempadamente uma atualização da Matriz de Construção dos
Lugares de Classe dos Indivíduos, construída por João Ferreira de Almeida,
António Firmino Costa e Fernando Luís Machado com base na Classificação
Nacional das Profissões versão 1980, cuja primeira versão foi publicada em
Famílias, estudantes e universidade', in Sociologia ' Problemas e Práticas, n°
4, 1988, p. 14; as alterações produzidas pelos mesmos autores publicaram se em
Estudantes e amigos ' trajetórias e redes de sociabilidade', in Análise
Social, n° 105 106, Lisboa, 1990, p. 221. A atualização por nós efetuada, teve
por base os pressupostos teóricos dos autores referidos, adequados, desta
feita, à Classificação Nacional das Profissões, versão 1994, Instituto do
Emprego e Formação Profissional, Ministério do Emprego e da Segurança Social.
Muito embora tendo conhecimento das mais valias proporcionadas por opções
metodológicas e operacionais mais recentes a este nível, como será o caso da
construção do indicador socioprofissional individual e do familiar, da autoria
de António Firmino da Costa, optámos por uma aposta anterior, na medida em que
esta permite uma outra visibilidade entre clivagens encontradas no seio de
determinadas frações de classe; cf. António Firmino da Costa, Sociedade de
Bairro, Oeiras, Celta, 1999, pp. 226 245..
4 Consideramos como nível de ensino baixo até ao nono ano de escolaridade,
médio o secundário e alto bacharelato e níveis superiores de educação.