Pluralidade e reconfiguração da identidade cigana em Portugal
1. Dinamismo dos processos de identificação
A principal questão que se coloca no processo de construção identitária tem a
ver com a procura de explicações para a sua compreensão e para isso recorre-se
à história, geografia, biologia, instituições produtivas e reprodutivas, à
memória coletiva ou a expectativas pessoais. Nas sociedades modernas actuais
assiste-se a uma tendência para a uniformização cultural principalmente feita
pelo sistema de educação que, através da reprodução da cultura da elite
hegemónica, procura reduzir ao mínimo os particularismos locais e culturais
(Castells, 2003). A imposição de um conjunto de marcadores da identidade
unificadora nos Estados Modernos faz-se pela legislação (Marques, 2001) e isso
foi crucial para o desenvolvimento da individualização da sociedade (Kaufmann,
2005). Razão pela qual passou a ser aceite que uma cultura represente a cultura
nacional e se transforme em cultura dominante. Para Santos (1993), a
modernidade deixou que as múltiplas identidades, os contextos e as
intersubjetividades que a habitavam fossem reduzidos a uma forma leal ao
Estado, em detrimento das pluralidades. Os modelos de Estado nação assentam em
fenómenos de vigilância de controlo da circulação das pessoas e na necessidade
de unificação nacional (Cossée, 2004). Promove-se um sentimento de pertença
identitária que se deseja universal e dominante dentro de cada Estado, com
formulação de significações em que os elementos culturais são reinterpretados e
articulados com acontecimentos políticos, fixando fronteiras, distinguindo o
nacional do estrangeiro, o eu do outro, o maioritário do minoritário. Esta
imposição acaba por ser organizada em volta da unicidade e da integração
prometida por um Estado autor e ator identitário, criador, difusor e
controlador das regularidades sociais. Sob o ponto de vista das ciências
sociais, a construção do conceito de identidade encontra-se intrinsecamente
ligada às questões da modernidade (Giddens, 1990), na medida em que o indivíduo
integrado em sociedades tradicionais não se debatia com problemas identitários
como hoje são entendidos (Kaufmann, 2005). As transformações sociais
verificadas contribuíram para que os processos de individualização crescente
fomentassem fenómenos de afirmações identitárias e consequentes formas de
diferenciação social. Ao mesmo tempo que se verificam processos de
individualização, assiste-se a processos de individuação, pelos quais o
indivíduo constrói a sua identidade particular, com singularidades, tornando-se
único, no sentido em que se diferencia e se distingue do coletivo, ao mesmo
tempo que se torna consciente da sua individualização (Kaufmann, 2003). Cada
indivíduo pode fazer escolhas de acordo com os seus conhecimentos e capacidade
de reflexão e, através do processo de individuação, consegue interligar o pré-
existente sobre o assunto ao que foi, consciente ou inconscientemente,
selecionado, dando lugar ao que Beck (1995) designou por fabricação social dos
indivíduos. Assim sendo, as características das sociedades modernas permitem
uma maior plasticidade na construção biográfica pela possibilidade de
autodeterminação individual (Dubet, 1996), em que a conceção de um projeto de
vida traduz a comprovação de uma gestão autónoma que o indivíduo faz de si e
representa o culminar bem sucedido de um trabalho socializador (Kaufmann,
2005). Para Elias, os padrões de autorregulação que os indivíduos têm de
desenvolver para a aprendizagem durante a sua formação para se tornarem num
indivíduo único, são dependentes das especificidades de cada geração, o que
significa que cada indivíduo é determinado pelo ponto em que entra no fluxo do
processo social (Elias, 2004). A individuação consiste, então, neste processo
de particularização do ser individual e o desenvolvimento do ser psicológico
como ser distinto do conjunto. Contudo, o indivíduo precisa da modelação da
sociedade em que se insere para se tornar um ser mais forte individualizado e
diferenciado que não consegue chegar à compreensão da individualidade se não
pelo seu destino de relação e unicamente dependente da estrutura em que nasce,
ou seja, ele é, antes de mais, um produto de interdependências (Elias, 2004:
45). No mesmo sentido, Wacquant (2004) faz a distinção entre o processo de
sociação e de individuação, sendo que o processo de sociação será relativo às
nossas categorias de juízo e de ação vindas da sociedade, que são partilhadas
por todos aqueles que foram submetidos a condicionantes similares, e, por seu
lado, o processo de individuação consiste no facto de cada pessoa ter uma
trajetória e uma localização única no mundo, que faz com que internalize uma
combinação única de esquemas. Ou seja, desse modo, cada indivíduo é, ao mesmo
tempo, estruturado (por meios sociais passados) e estruturante (de ação e
representações presentes) (Wacquant, 2004: 4).O tipo e a dimensão de margem de
decisão que se abre a cada indivíduo dependem da estrutura e constelação
histórica do coletivo humano em que o indivíduo se encontra (Elias, 2004: 72).
A sociedade não é apenas tipificadora, mas também individualizadora. É nesta
dualidade que o indivíduo se encontra permanentemente: por um lado, a
individualização crescente do processo social que lhe permite mais alternativas
de modos de vida; mas, por outro lado, depara-se com uma maior confrontação com
a necessidade de decidir e se tornar mais independente (Elias, 2004). Contudo,
as identidades individuais e sociais não são rígidas e imutáveis. São sim,
resultados transitórios e processos de identificação que fazem com que as
identidades sejam sempre identificações em curso (Santos, 1994: 119). Implica
a imbricação em dois processos: pelo primeiro os atores sociais integram-se em
conjuntos mais vastos, de pertença ou de referência, com eles se fundindo de
modo tendencial (processo de identificação); e o segundo, através do qual os
agentes tendem a autonomizar-se e a diferenciar-se socialmente, fixando, em
relação a outros, distâncias e fronteiras mais ou menos rígidas (processo de
identização) (Pinto, 1991). O conceito de identidade remete, em simultâneo,
para o que cada indivíduo tem de mais específico, as elaborações psíquicas
individuais que incorpora pela aprendizagem social de valores e normas sociais,
e também para as identidades coletivas, para os quadros gerais da sociedade em
que se movimenta e que se incorporam nos indivíduos (Kaufmann, 2003). Na
perspetiva de Maalouf (1999), a identidade individual é o que faz com cada um
não seja igual a nenhuma outra pessoa e se vai construindo e transformando ao
longo da nossa existência. No entanto, a identidade também está relacionada com
a perceção que cada indivíduo tem de si próprio, isto é, com a sua própria
consciência de existir enquanto pessoa em relação com outros indivíduos com os
quais forma um grupo social, a família, as associações, a sua própria nação,
etc. Então, a identidade é a interiorização de valores através da socialização
que o indivíduo interpreta no desempenho de papéis sociais e que o adaptam ou
transformam num ser social identificado com determinada sociedade (Dubet,
1996).
Para Giddens, o desenvolvimento da autoidentidade é um projeto reflexivo do
self, na perspetiva de que o eu social consiste na manutenção de narrativas
biográficas coerentes, revistas continuamente e que ocorrem em contextos de
escolhas múltiplas. A abertura social, a pluralização de contextos de ação, a
diversidade de autoridades, a possibilidade de escolha de um estilo de vida
assumem importância crescente na constituição da autoidentidade e na atividade
quotidiana (Giddens, 1994). A vida do indivíduo moderno organiza-se de modo
reflexivo com a avaliação de riscos, ou seja, recorre ao conhecimento
especializado (de peritos) para a construção e a estruturação da sua
autoidentidade moderna. O indivíduo é detentor de múltiplas identificações
(Lahire, 2003) e esforça-se por dar continuidade à experiência vivida, para
além da diversidade de experiências e papéis com as suas descontinuidades
temporais e também para participar nos ideais e modelos culturais do grupo,
concebidos como positivos, variáveis ao longo da história, de acordo com os
contextos (Lipiansky et al., 1990; Dubar, 2006). A perceção da identificação
individual e social consiste num reconhecimento recíproco entre o indivíduo e a
sociedade capaz de desencadear interações e relações sociais e a interiorização
dessas aprendizagens numa dialética constante entre indivíduo e sociedade
(Berger e Luckmann, 1999). A construção das identidades alimenta-se de trajetos
sociais incorporados nos agentes, das posições ocupadas na estrutura social (na
medida em que elas determinam e configuram contextos de sociabilidade e de
socialização duráveis) e dos projetos que, em função dessas coordenadas
estruturais, são socialmente formados. Ou seja, o contexto e as interações
sociais são essenciais para o desenvolvimento de sentimentos de pertença
identitária, para a integração e diferenciação, através de práticas de
confirmação e de práticas de classes e estatutos sociais. Os nós resultantes
desses cruzamentos dinâmicos formam um campo de forças que ocupam um
determinado espaço físico, geográfico, para além do virtual (Júnior, 2002),
onde nenhuma identidade existe sem ser em relação com outras e num contexto
espácio-temporal específico de objetivação (Cabral, 2003). A consciência de si,
o self, permite que o indivíduo se enraíze e adote de forma natural os pontos
de vista do grupo social ou coletivo a que pertence. Pela pluralização de
contextos é possível fazer escolhas de estilos de vida e planear a vida de modo
reflexivo (Giddens, 2004), uma vez que a modernidade se caracteriza por
relações fluidas estabelecidas entre os indivíduos e entre estes e a sociedade,
sendo uma mudança radical e irreversível, relativamente à sociedade tradicional
(Bauman, 2005). A fluidez da modernidade afetou as estruturas estatais, as
condições de trabalho, as relações entre os Estados, a subjetividade coletiva,
a produção cultural, a vida quotidiana e as relações entre o eu e o outro. É
assim que, para Bauman (2005), a identidade social significa, ao mesmo tempo,
inclusão e exclusão. Serve para identificar o grupo, mas também para o
distinguir dos outros. Sob este ponto de vista, a construção da noção de
identidade nacional consiste, antes de mais, no poder da exclusão, ao impor
fronteiras entre o nós e o eles, marcando-se negativamente indivíduos
muitas vezes, percebidos como dispensáveis para o funcionamento do ciclo
económico e de acomodação difícil numa estrutura social da economia
capitalista. Nas interações sociais as identidades vão sendo recontextualizadas
sendo necessário perceber as especificidades dos campos de confrontação e de
negociação em que as identidades se desenvolvem, se formam e se dissolvem
(Santos, 1993). O esforço de pensar o sujeito na sua globalidade coloca em
causa a identidade única, as obsessões pelo conhecimento das origens, das
raízes (Cossée, Lada e Rigoni, 2004).
2. Tornar-se integrado
Os modos de identificação variam ao longo da vida e refletem-se na aceitação ou
recusa de aspetos identitários interiorizados pela aprendizagem social que
transforma os indivíduos em membros de uma determinada sociedade (Berger e
Luckmann, 1999). A alguns indivíduos são atribuídas marcas identitárias
estereotipadas e estigmatizadas que constituem obstáculos a uma integração
igualitária (Cossée, 2004). A noção de integração assenta na conceção de que os
indivíduos se integram na sociedade que lhes pré-existe em que o processo de
socialização visa uma aprendizagem adequada da integração nesse sistema social.
Este conceito é usado, a partir de meados do século XX, para designar a
operação pela qual o indivíduo se incorpora num determinado meio social
(Schnapper, 2007). Sendo esta noção uma construção teórica, para a análise da
realidade social importa ter em conta os processos de integração, estudando o
fenómeno social através de interrogações e de definição de conceitos e de
indicadores que desenvolvem uma construção da perceção sobre o fenómeno. Esta
forma de abordagem permite considerar a variabilidade de processos de
integração de acordo com os diferentes domínios da vida coletiva. Os modelos de
integração, ou padrões de integração, propostos pela sociedade têm modalidades
intrínsecas de colocar à distância, de criar ou recriar as marcas identitárias
que distinguem os indivíduos entre si em que, por vezes, a igualdade
estabelecida formalmente é (re)produtora de formas de discriminação ou de
exclusão. Para combater a diferenciação institucional, algumas sociedades
adotaram políticas multiculturais que reconhecem e pautam os atos públicos por
práticas multiculturais, por exemplo, com a formalização do uso de diversas
línguas oficiais ou por um projeto de identificação cultural (Taylor, 1994). De
acordo com Taylor, a conceção de multiculturalismo significa a convivência de
grupos culturalmente distintos num mesmo espaço territorial, sendo, nesse
sentido, um fenómeno antigo que também se verifica nas sociedades
contemporâneas. Contudo, significa também uma teoria normativa que se apresenta
como solução para os problemas de convivência entre os indivíduos e os
diferentes grupos culturais que procuram uma coexistência conjunta mantendo as
suas culturas de origem, sendo esta teoria usada para resolver e ultrapassar
alguns conflitos etnoculturais em que se tornam necessárias políticas de
reconhecimento público de minorias discriminadas (Taylor, 1994). O contexto
multicultural deve estar associado a políticas de reconhecimento público das
diferenças, por parte das instituições públicas, para que as diferenças
culturais possam existir, uma vez que estão vinculadas à formação das
diferentes identidades. Neste caso, a cidadania deveria pautar-se pelo bem-
estar dos diferentes grupos, pela conjugação dos direitos fundamentais e ter em
conta as particularidades culturais dos grupos, a exercer dentro dos limites
territoriais e ideológicos do Estado (Taylor, 1994). Ou seja, trata-se de fazer
a defesa do reconhecimento público pleno e total de todo o cidadão como igual
com formas de respeito pela identidade de cada indivíduo sem ter em conta o
sexo, a raça ou etnia e as atividades, práticas e conceções do mundo,
particularmente associados a grupos desfavorecidos. Esta política de
reconhecimento deve traduzir-se numa política de diferença que se contrapõe, e
complementa, ao princípio de igualdade universal, denunciando e recusando
cidadanias de segunda classe (Taylor, 1994: 57). As afirmações identitárias e
a defesa das especificidades culturais são hoje um vetor importante de
formulação de questões coletivas. Como responder-lhes com políticas voluntárias
de reconhecimento de especificidades culturais? (Doytcheva, 2005). Apesar de o
multiculturalismo ser concebido como um projeto de promoção equitativo das
diferenças no espaço público, com a coexistência pacífica e harmoniosa entre as
diferentes culturas, esta política de reconhecimento é, em alguns países,
entendida como uma forma de atentado à história de luta pelos valores de
individualismo, universalismo e a laicidade conquistadas, em que o
multiculturalismo é visto como uma invenção marcada por uma visão comunitarista
e diferencialista, estranha à tradição republicana (Doytcheva, 2005). O que se
constata, em muitos países, é que, apesar de formalmente instalado o
multiculturalismo, reconhece-se as suas fragilidades e assiste-se ao aumento de
manifestações racistas, por vezes veladas ou subtis (Wieviorka, 2010).
A teoria multiculturalista começa a ser criticada e colocada em causa por se
considerar que pode conter o risco de querer fechar indivíduos, grupos ou
comunidades numa tradição. Para Wieviorka (2010: 127), o multiculturalismo
acaba por se transformar numa espécie de fábrica de elites que reproduzem o
seu poder e os seus privilégios, sendo acusado de favorecer identidades
tradicionais ou comunitárias e de liquidar os valores universais da herança das
luzes. O conceito de interculturalidade tem vindo a sobrepor-se ao conceito de
multiculturalidade, apostando na importância dos contextos, nas interações
sociais e nos resultados surgidos dessas dinâmicas sociais. Preconiza-se a
defesa de integração pluralista ou de um modelo intercultural (Clanet, 1990:
63), que é, sobretudo, proveitoso no caso da existência de culturas
minoritárias. Se o conceito de integração reenvia para a ideia de
interdependência entre culturas dominantes e minoritárias, envia também para a
ideia de reparação, de recreação, de renovação em relação ao sentido de
coerência de uma globalidade, então, o projeto de integração pluralista ou de
sociedade intercultural reenvia para a noção de democracia cultural, projeto
que parte da diversidade cultural e procura dar, a cada indivíduo ou grupo, os
meios para aceder a uma interdependência cultural (Clanet, 1990). Os processos
de aculturação são dinâmicos e multilineares na construção das identidades
pessoais minoritárias no seio das identidades coletivas, sendo que significam a
relação entre os indivíduos num processo contínuo e dialético de intervenção
social e humana. Ou seja, são modelos formados pelo contexto dentro do qual o
indivíduo foi criado ou vive em que a integração surge como processo e
resultado do contacto intercultural e conduz a atitudes de aculturação
(Berry, 2004: 33), com a possibilidade de conciliação entre aculturação e
integração sem a perda das pertenças identitárias. Mas nem sempre todos os
grupos classificados como etnoculturais têm possibilidade de se inserir de
forma paritária na dinâmica das relações interculturais, por haver
reconhecimentos culturais diferenciados à partida. Para que haja uma acomodação
mútua, é preciso que a integração possa ser feita com aceitação, pelos grupos
dominante e não dominante, do direito de todos viverem com culturas distintas
dentro de uma mesma sociedade, compartilhando instituições comuns e em
transformação. Isto é, deve ser quando a integração significa que a diversidade
cultural é um objetivo da sociedade como um todo, representando uma estratégia
de mútua acomodação, e que esteve na origem da política do multiculturalismo
(Berry, 2004: 35). Apesar da ideologia multicultural defender que a diversidade
cultual é benéfica para as sociedades e para os seus membros, persistem
conflitualidades culturais e a estigmatização de certos grupos culturalmente
distintos.
3. Hibridismos, mestiçagens e pluralidades identitárias
Sobretudo no que se refere às características de fluidez, de transformação e de
dinamismo social dos processos de identificação social, será que continua a
fazer sentido afirmar a existência de cultura(s) ou identidade(s) específicas,
nomeadamente a(s) cigana(s)? Para Bastide (1989), em todos os processos de
socialização existe aculturação de traços culturais que resultam em trocas e
receção de novos valores e atitudes e já vimos, com Berry (2004), os
constrangimentos que resultam dos processos de acomodação, mas os resultados
das interações culturais vão sendo incorporados ao longo dos processos de
socialização, de onde resulta um hibridismo cultural, na origem de formas de
mestiçagem cultural e de novas configurações identitárias (Bastide, 1989).
Compreender processos de mestiçagem e de influências culturais passa por
ultrapassar fronteiras simbólicas, culturais e sociais e sobre como cada
indivíduo circula entre diferentes espaços sociais, entre grupos culturalmente
distintos, apreendendo aspetos múltiplos das diversas culturas que se incrustam
na formação identitária de cada um (Ramos, 2006; Costa, 2007). Os espaços de
fronteira são, ao mesmo tempo, lugares de encontro, interação e de troca, isto
é, são lugares de relação e de narrativas identitárias (Friedman, 2001). São
espaços difíceis, de conflitualidade, mas também possibilitam o desenvolvimento
de uma consciência mestiça2 , o que permite um ajuste às múltiplas posições que
o indivíduo ocupa e às diversas comunidades a que pertence enquanto membro de
uma minoria (Friedman, 2001). As raias da fronteira funcionam, simbólica e
materialmente, segundo conjuntos binários em que se combina o puro e o impuro,
o mesmo e o diferente, o dentro e o fora. Se, por um lado, remetem para a noção
de pureza, distinção e diferença, por outro lado, propiciam a mistura e a
crioulização (Glissant, 1996). São zonas de contacto para onde convergem as
diferenças fluidas e onde o poder circula de forma complexa e multidimensional
e indiciam quem lhes pertence ou não. A atribuição de uma designação a uma
minoria tem um efeito simbólico, marcando as relações de poder entre os grupos
socais na sociedade (Bourdieu, 1979, 1989). As culturas nascem de relações
sociais desiguais, o que justifica, segundo Cuche (1999), que se fale, de
preferência, de grupos sociais que mantêm entre si relações de dominação e de
subordinação, trocas reais e simbólicas entre os que estão classificados em
grupos, separados por fronteiras simbólicas, de onde podem resultar
aproximações sociais. De acordo com Bourdieu (1979), as práticas culturais
constituem os marcadores privilegiados das distâncias sociais e das estratégias
de distinção, marcadas também pela relação desigual das diferentes classes
sociais com a necessidade económica que o autor ilustra com a noção de capital
social, elemento indicativo da diferenciação social. A classificação
identitária, as categorizações e as marcas identitárias são formas de
discriminação que pesam sobre os indivíduos e os grupos alterizados, marcados
social e simbolicamente (Wieviorka, 2001). Os indivíduos alterizados circulam
entre diferentes universos e espaços sociais, entre várias pertenças e
referências ou diversas maneiras de se definir. Trata-se de um percurso com
obstruções, mas fundamental de percorrer, para a reinterpretação de si e do
grupo de pertença, passando, necessariamente, pela redefinição e reconfiguração
de identidades. A globalização contribuiu para a proliferação de fenómenos de
mescla de culturas, de multiculturalismo e de afirmações identitárias que
surgem sob a forma de defesa de tradições locais ou de xenofobia. A economia
acelerou os intercâmbios, originando uma espécie de melting pot planetário
(Gruzinski, 2001:305). A palavra mestiçagem esteve, durante muito tempo,
associada às sociedades coloniais, mas, atualmente, a expressão é usada para
descrever, não só o fenómeno biológico, mas também para designar um estilo de
vida e uma maneira de pensar o mundo (Sansone, 2004). Neste sentido, a
mestiçagem é uma espécie de processo de bricolage (Laplantine e Nouss, 2002)
e que procura ultrapassar a rigidez de noções dicotómicas. O pensamento mestiço
é de mediação e participação em, pelo menos, dois universos sociais, culturais
e simbólicos. As mestiçagens são fenómenos variados e complexos, traduzem
intenções, pensamentos e ideias, motores que facilitam os processos de mescla
(Gruzinski, 2001). Mas por que é tão difícil pensar a complexidade e a
mestiçagem? Como a mestiçagem consiste num produto de interações não lineares
entre muitas variáveis, de intercâmbios, vaivéns contínuos e imprevistos entre
elementos em movimento, de um modo geral, tememos esses processos de mistura. A
mestiçagem é sempre mais do que uma bricolagem intelectual, ela tem também
uma dimensão política. Podemos estender a categoria de mestiço a todos os
indivíduos que desenvolvem e que assumem o papel de passeurs entre as
sociedades e os grupos (Gruzinski, 2001). A conceção de mestiçagem convida-nos
a observar o modo como as culturas se modificam, a estarmos atentos às
flutuações de identidades e às fronteiras, onde tudo se mistura e tudo se muda
(Wieviorka, 2001). Com a mistura, trata-se de estudar as interações, os
reencontros, as relações entre grupos e indivíduos que se transformam sob o
efeito destas relações. Para Laplantine e Nouss (2002), a mestiçagem pertence
ao território do ato, ou seja, aos fenómenos sociais que acontecem na realidade
social. É o acontecimento que se dá numa temporalidade, no qual já não é
possível distinguir o passado, o presente e o futuro em estado puro. A
identidade híbrida ou plural surge como resultado das distintas culturas que
convivem no espaço territorial e social. Este resultado nem sempre é
harmonioso, porém possibilita o cruzamento e o processo de hibridação
identitária e de reconstruções culturais (Júnior, 2002). Assim sendo, todas as
culturas são mescladas e resultantes de contactos culturais (Júnior, 2002), ou
seja, não existem culturas puras. Glissant (1996) sugere duas noções de
cultura historicamente construídas que permitem pensar sobre orientações
básicas entre povos colonizadores e colonizados: as culturas atávicas e as
culturas compósitas. As atávicas seriam as culturas que se procuram expandir e
sobrepor àquelas com que vieram a deparar-se no seu curso histórico. As
compósitas seriam formadas por elementos heterogéneos e abertas ao contacto com
outras culturas, mostrando-se dispostas a mesclar-se (Júnior, 2002). Na
perspetiva de Glissant (1996), as culturas atávicas foram difundidas sobretudo
através de textos impressos e as compósitas através da oralidade. Hoje em dia,
assiste-se a uma abertura das culturas classificadas como atávicas pela
intensificação dos contactos culturais (Júnior, 2002), em crescimento nas
sociedades e culturas compósitas, quase generalizado pelos fenómenos de
distensão cultural, advindos do processo de globalização e das consequências da
modernidade (Giddens, 1990). A teoria subjacente ao fenómeno de miscigenação,
das misturas e das mesclas que resultam em mestiçagens culturais, pode ser
transposta para a análise dos processos de identificação dos indivíduos de
origem cigana, uma vez que não existem tipos identitários puros. Trabalhámos a
hipótese de que a cultura e a identidade cigana refletem esta plasticidade e
multiplicidade de entrecruzar traços culturais. Esta perspetiva implica alargar
o campo de análise sobre a formação das identidades ciganas para perceber novos
processos de identificação construídos, tendo por base valores culturais
atribuídos aos indivíduos de origem cigana, mas também alguns dos valores
imputados à sociedade dominante e a forma como eles se conjugam.
4. Traços culturais e identitários ciganos
A questão quem são os ciganos é antiga e coloca-se, frequentemente, em
relação às fronteiras sociais entre ciganos e não ciganos (Mayall, 2004). Os
ciganos são, geralmente, contestados pelas sociedades em que vivem, sendo-lhes
imputadas representações negativas. Por outro lado, frequentemente são acusados
de manter uma identidade social e pessoal diferente da normal, com associação
a traços entendidos como desviantes (de que não trabalham, são sujos, são
violentos e agressivos, etc.). As representações estigmatizantes podem
reforçar o conflito entre o grupo identitário tradicional e a sociedade
dominante. No entanto, é importante frisar as diferentes origens, com variações
culturais e sociais de traços culturais, de mesclagens e aculturações com
trocas culturais. Foi o que constatámos num grupo cigano estudado na cidade do
Porto3 (Magano, 1999), cujos resultados indicaram formas de aculturação de
modos de estar e de estilos de vida próximos da sociedade portuguesa em geral,
enquanto outros aspetos se podem considerar tradicionais ciganos, tais como os
casamentos endogâmicos e a preferência pela autonomia em relação ao mercado de
trabalho (prática de mendicidade e de venda por conta própria). O peso de
alguns destes valores pode justificar a continuação de altas taxas de
analfabetismo4, que impossibilitam alternativas profissionais. Para Fraser, ao
longo dos séculos, apesar de constantemente expostos a múltiplas influências e
pressões, os ciganos conseguiram preservar uma identidade própria e demonstrar
notável capacidade de adaptação e sobrevivência (1997: 7). Mas não existem
contactos sociais neutrais e também os ciganos desenvolveram estratégias de
adaptação (Liégeois, 1994: 39). Em paralelo com a história de exclusão, existem
histórias de integração, havendo ciganos em situações variadas no que se refere
à inserção no espaço habitacional, na escolarização, no desempenho de
atividades económicas, etc. Apesar de vários estudos que contrariam a
perspetiva de homogeneidade social e cultural dos ciganos em Portugal (Blanes,
2006; Mendes, 2007; Bastos et al., 2007), persistem imagens e representações
com tendência para agregar como se de um grupo homogéneo se tratasse, fechado
sobre si mesmo e portador de uma identidade específica estática. Como lidam os
ciganos com a pressão cultural exercida pelo peso da tradição cigana e o
desafio das transformações e oportunidades de vida diferentes? Se, por um lado,
há coação exercida pelo peso da tradição, por outro, as interações e práticas
sociais, com a convivência quotidiana nos espaços habitacionais, de trabalho,
feiras ou outros locais, a instituição escolar, áreas de comércio de lazer e,
mais atualmente, as redes sociais digitais, têm impacto a considerar nestes
processos de transformação cultural e identitária, que se sobrepõem e
complementam a socialização. Para Fernandez (2001), a situação vivida
atualmente pelos ciganos prende-se com o facto de nunca terem competido
socialmente, de forma directa, com outros grupos sociais. O autor aponta que
sempre viveram a reboque do progresso social e económico e fora das coordenadas
de industrialização e de competitividade, estando, atualmente, a pagar o preço
desse afastamento da sociedade envolvente. Sob o ponto de vista de traços
culturais ciganos, de acordo com alguns autores (por exemplo, entre os autores
espanhóis, Garrido, 1999 e Román, 1994 e entre os portugueses, Mendes, 2007;
Lopes, 2008 e Casa-Nova, 2009), há a concordância sobre alguns traços culturais
ciganos como, por exemplo, a ideia de uma origem comum, a tradição, a língua, a
valorização da idade e da experiência como princípios estruturantes do status,
o respeito e o culto que consagram aos seus mortos, assim como a coesão e a
diferenciação assumida face aos não ciganos, o valor da palavra dada, a ideia
do presente, a proteção das crianças e a solidariedade são alguns dos traços
distintivos nos coletivos que se autoclassificam como ciganos e que constituem
parte integrante deste conteúdo étnico necessário à sobrevivência do grupo como
unidade social diferenciada. Este conjunto de valores contribui para a
manutenção da hierarquia no seio da família e para a preservação da autoridade
no grupo, o que favorece o reforço da identidade dos ciganos enquanto grupo. No
caso da sociedade portuguesa, a situação é idêntica, o que muito tem
contribuído para que continuem a ser vistos como uma das minorias mais
refractária e distinta da cultura dominante (Nunes, 1996).
As transformações sociais provocadas pela massificação dos meios de comunicação
social, os avanços tecnológicos e de infraestruturas (a televisão, melhores
vias de comunicação, telecomunicações), os realojamentos habitacionais que
abriram espaço para contactos sociais mais alargados (Castro, 1995), a partilha
de espaços, a obrigatoriedade da frequência escolar, medidas de política social
e a utilização mais frequente e adequada das estruturas de saúde (Silva, 2005),
trazem para a análise novos elementos a ter em conta na difusão de valores e
estilos de vida mais universais que se interpenetram no mundo tradicional
cigano. Os ciganos, enquanto grupo social em processo de interação contínua com
uma sociedade virada para o trabalho e para o consumo, vão sofrendo mudanças ao
nível dos seus valores e estilos de vida, aculturando-se e apropriando-se de
algumas ofertas da sociedade em que estão inseridos (Silva, 2005; Dias, Alves,
Valente e Aires, 2006). Os processos de mudança podem traduzir-se em desejos de
individualização e de mobilidade social. Para quem aspira a fazer um percurso
de mobilidade social, é mais fácil ter êxito se existir mais identificação com
o grupo maioritário do que com o grupo de pertença etnicizado. Uma das formas
de o fazer é o tipo de atitude com a escola, tendo em conta o impacto que a
escolarização assume para o processo de integração social (Vala, 2003). Apesar
do processo de desindustrialização, o trabalho continua, ainda hoje, a ser
entendido como o principal fator de integração5 e definidor de lugares sociais
pelas profissões desempenhadas e, em conjunto com a escolarização, são
elementos essenciais para a definição de estatuto social e de lugar social
(Soulet, 2000; Schnapper, 2007). Ou seja, a instituição escolar pode ser
instância privilegiada de capacitação e operador central na definição da
possibilidade de colocação no mundo do trabalho e de ascensão de classe.
Escolarização e trabalho continuam a ser os principais indicadores definidores
dos estatutos sociais (Schnapper, 2007) que propiciam mudança socioeconómica
que pode servir como meio de favorecer a integração social.
5. Pluralidade de identificação de ser cigano
Aderir ao que é da sociedade dominante pode ser interpretado como uma vontade
de se querer apayar ou assenhorar6 e ser entendido como uma espécie de
traição ao grupo de origem. Com efeito, o facto de levar uma vida não cigana
pode implicar o afastamento de certos rituais do grupo cigano (Reis, 2001).
Pode fazer com que deixe de participar em rituais ciganos, mas também pode
sentir desconforto, como refere um cigano advogado e autarca, pelo fosso entre
o modo de vida que leva e a de outros ciganos, sendo, por vezes, difícil ter
motivo de conversa, mesmo que, por parte dos seus familiares mais diretos, se
verifique apreço e orgulho por ter conseguido chegar aos senhores (Reis,
2001: 36). Num estudo qualitativo realizado sobre percursos de integração de
indivíduos ciganos em Portugal7 , analisámos indivíduos de origem cigana sob o
ponto de vista da alteridade, mas também atentámos na sua complexidade e
diversidade cultural, procurando compreender as múltiplas lógicas com que se
debatem e que procuram combinar. Verificámos sentimentos de identificação com
um certo habitus cigano relativo ao grupo cigano de origem (ainda que, por
vezes, seja meramente simbólica), com distinções entre grupos de ciganos o que
remete para diferenças socioeconómicas e estatutos atribuídos de acordo com as
origens e as atividades económicas, com maior ou menor prestígio. Situação que
é exemplificada com os ciganos chabotos ou ciganos transmontanos, que serão
mais pobres e menos integrados. Para uma entrevistada (Magano, 2010): os
chibotos' não têm tantos recursos como os outros (Mulher, 26 anos, pai cigano
e mãe não cigana, zona urbana), e considerados menos integrados socialmente.
(..) o cigano de Trás-os-Montes é completamente diferente do cigano do Porto,
mesmo os próprios valores são também eles diferentes. Por exemplo, no caso da
minha mãe há uma maior permissividade no que toca à intromissão de pessoas não
ciganas na própria comunidade, portanto, que todos aceitaram perfeitamente o
meu pai (não cigano). (Mulher, 25 anos, mãe cigana e pai não cigano, zona
urbana). Estas diferenças surgem hierarquizadas em culturas e subculturas
ciganas: R ' Nós normalmente tratámo-los por galegos, por beirões e por
chabotos. Isto tem a ver exactamente do maior desenvolvimento ou do maior
acompanhamento do progresso para o menos acompanhamento do progresso. Não
consegue encontrar, por exemplo, num cigano da subcultura menor, se assim
quiser chamar, dos chabotos, uma menina com calças de ganga, ah não encontra
uma apetência por ir ao cinema ou por ir por ver televisão Portanto, há aqui,
digamos, um sentimento muito mais tradicionalista daquela vida nómada cigana,
só vivência ( ) Só vivência cigana em que não há preocupação com o negócio,
vivem da mendicidade. Portanto, e depois, há o sector intermédio que é os
beirões, que já misturam um bocado o tradicionalismo com o progresso.
Portanto, já há aqui uma mescla entre Já não são tão tradicionais mas também
não são tão progressistas. E depois temos então os galegos, que esses então
já estão mais progressistas (Homem, 51 anos, ambos progenitores ciganos, zona
urbana). Não obstante as práticas culturais de origem serem os marcadores
privilegiados das distâncias sociais e das estratégias de distinção (Bourdieu,
1979), os grupos sociais interagem no mesmo espaço e os contactos despertam
novos olhares e novas perspetivas sobre o outro. O contacto e o convívio com
não ciganos, casamentos mistos e escolarização mais prolongada foram marcantes
para optar por um rumo de vida alternativa que não o tradicional8. As vivências
sociais diversificadas interferem nos processos de identificação dos indivíduos
e se traduzem em formas plurais de estar e de se definir como ser cigano,
muitas vezes, até por aparentes contradições discursivas quando, por exemplo,
admitem que, mesmo não fazendo vida de cigano, continuam a sentir-se ciganos. O
sentimento de ser cigano pode assumir várias formas, com casos de combinação de
aspetos da modernidade com traços culturais ciganos tradicionais (Magano,
2010). Tomam os ciganos todos como: eles vão à feira ( ) Os que vivem em
barracas e os que são muito pobrezinhos. Muitos dos que vão às feiras nem
sequer vivem em barracas nem sequer são muito pobrezinhos (Homem, 51 anos, pai
cigano e mãe não cigana, zona urbana). Apesar das diferenças identificadas, há
quem defenda a existência de um comum sentimento cultural: Os valores e
costumes são próximos. São diferentes na maneira de ser (Homem, 24 anos,
progenitores ciganos, zona urbana), o que permite perspetivar uma Unidade da
cultura dos ciganos de Norte a Sul do país (Homem, 24 anos, progenitores
ciganos, zona urbana).
Eh por isso é que quando se diz: Ah, os ciganos são diferentes de todos os
outros, são nesta perspectiva! Porque depois, no tal sentimento cultural, eles
são rigorosamente iguais, quer eles estejam no patamar mais inferior, quer
estejam no patamar mais superior, são rigorosamente iguais. E portanto, isto
não acaba com a escolarização e não acaba com rigorosamente nada porque nós
mantemos esta estratégia de não falar de tudo aquilo que é o nosso sentimento
mais íntimo eh nem nós nem as nossas crianças. Elas sabem até onde é que podem
ir, pois são precisamente educadas, em termos familiares, para saberem até onde
é que podem ir e onde devem parar. (Homem, 51 anos, progenitores ciganos, zona
urbana) São assumidas posturas de autodistanciamento e de autodiferenciação em
relação aos outros grupos ciganos, por exemplo, defendendo que: Nós não somos
assim., Nem todos os ciganos são iguais (Mulher, 26 anos, pai cigano e mãe
não cigana, zona urbana), ou Os gitanos não casam com os de fora (Mulher,
29 anos, progenitores ciganos, zona urbana). Os grupos têm formas diferentes de
estar e uns são considerados mais conservadores do que outros. O sentimento de
pertença cigana expressa-se no orgulho em ser cigano, reivindicando a origem
cigana: Eu sou cigano e direi que sou cigano até morrer (Homem, 27 anos,
progenitores ciganos, zona urbana) ou Eu começo por lhe dizer que sou
orgulhosamente cigano. Tive um percurso de vida sem dúvida diferente (Homem,
51 anos, progenitores ciganos, zona urbana). Este orgulho manifesta-se também
pelo tipo de percurso ascendente que se conseguiu fazer, por exemplo, ( )
porque estava na escola e na escola era o único cigano, era o especial (Homem,
24 anos, progenitores ciganos, zona urbana). Ser escolarizado, ter feito
formação profissional, desempenhar uma profissão não cigana parece não afastar
o sentimento de identificação com a cultura cigana, pelo menos em termos
essencialistas e abstratos. Defende-se a compatibilização entre ser cigano com
estudos e continuar a ter uma relação próxima com o mundo cigano de origem,
com conciliação de sentimentos de várias pertenças, fazendo uma reinvenção das
suas origens e de si mesmos.
R ' Tenho muito de cigana, tenho muito, a fala ( ) Porque é assim ( ) porque
em casa eu falo, até com o meu companheiro eu falo cigano. ( ) Eu estou a
trabalhar, deixo cair, eu falo cigano (Mulher, 45 anos, progenitores ciganos,
zona urbana)
Para alguns entrevistados, não é por desempenharem atividades profissionais
diferentes das tradicionais ciganas ou por serem escolarizados que deixam de
ser ciganos.
R ' Sim, estou satisfeita. Estou satisfeita e, mais uma vez lhe digo, estou
orgulhosa, porque uma pessoa depois vai andando e vai vendo tanta miséria ( ).
No trabalho convive com várias pessoas, com várias caras, mas sabem sempre que
se uma pessoa é descendente de cigana já é cigana, e depois há sempre aquela
coisa: Ah é cigana, há sempre aquela coisa Mas eu, de certa forma, sinto-me
orgulhosa. Houve uma vez uma rapariga com que eu trabalhava nas limpezas que
disse: Aii! Vieram-me dizer que tu eras cigana!. Eu disse à rapariga: Por
acaso não sou bem cigana, sou metade! ( ) (risos). (Mulher, 25 anos, mãe
cigana e pai não cigano, zona urbana).
Mas as opções de vida integradas podem, também, ter um custo em relação ao
universo de vida cigano. Os entrevistados referem que, muitas vezes, são
considerados por outros ciganos como alguém que expõe a cultura cigana aos de
fora e são alvo de punições por parte do grupo. Podemos constatar esse
desalento quando referem já não ter praticamente contactos com a cultura
cigana. O mesmo se passa quando se tecem críticas a aspetos culturais ciganos,
considerados como obsoletos, sobretudo no que diz respeito a punições no caso
de desavenças familiares, o querer fazer justiça pelas próprias mãos,
completamente desajustado à sociedade atual. Distanciam-se de alguns traços
culturais, por exemplo, o casamento endogâmico, os acordos nos pedimentos,
prática de luto (especialmente no caso das viúvas, por exemplo, o rapar do
cabelo das viúvas, o impedimento de voltar a casar), a pressão para se dedicar
à venda, etc. (Magano, 2010).
R ' Não creio que exista uma vida de cigano. A vida que o cigano faz é a vida
que muita gente faz. Por exemplo, o cigano em si mesmo tem uma vida normal,
logo que o deixem ter uma vida normal. Portanto, pode ser visto por esse
aspecto também. O cigano, por exemplo, levanta-se às 7.30 da manhã, põe as
crianças na escola, vai para a feira, vendeu ou deixou de vender, pegou nas
suas coisinhas, vem para casa, toma um banhinho vai para o café, assiste a
televisão ou vai para a igreja. É uma vida normal que o cigano faz. (Homem, 55
anos, progenitores ciganos, zona urbana)
Uns são considerados mais abertos e outros mais tradicionalistas. Os ciganos
residentes nas grandes cidades consideram-se mais abertos a contactos com não
ciganos, por força da necessidade de desenvolverem as suas atividades sociais e
a partilha de espaços residenciais, mas, em simultâneo, entendem que eles são,
também, os mais tradicionalistas, por não aceitarem ligações matrimoniais com
não ciganos (entendido como desgosto e até motivo para fazer baixar o estatuto
da família perante todos os outros ciganos) (Magano, 2010). A diferença entre
grupos pode verificar-se, sobretudo, nas formas de vida: uns vivem do negócio,
outros vivem da mendicidade (Homem, 51 anos, progenitores ciganos, zona
urbana).
Pela diversidade de posturas encontradas verificam-se reconfigurações contínuas
do conceito de ser cigano resultante das aprendizagens sociais dos percursos de
vida de integração que culminam na reivindicação de ser cigano, ainda que
integrado. A reivindicação de ser cigano diferente do tradicional traduz um
desejo de ver recontextualizadas e reconhecidas as transformações das
identificações identitária.
Conclusão
A construção da identidade cigana constitui um processo social dinâmico, em
contínua mutação, devendo-lhe ser retirada a marca de tradicional e estática.
Propomos uma designação plural de identidades, para englobar as transformações
sociais, as novas configurações e reconfigurações identitárias que, no caso dos
ciganos, se prendem, sobretudo, com questões relacionadas com a diversidade de
estatutos socioeconómicos e de origem social que se traduzem em diferentes
posturas de integração na sociedade portuguesa. O aumento da escolaridade e da
formação profissional permite aos indivíduos de origem cigana percursos de
mobilidade social e, consequentemente, de estatuto social, com adaptação de
diferentes modos de vida, nomeadamente com maior abertura para casamentos
exogâmicos. Torna-se claro que, apesar dos condicionalismos culturais, os
indivíduos têm algum espaço social para escolher e traçar projetos de vida
individual (Velho, 1999). O projeto de vida é elaborado dentro de um campo de
possibilidades, circunscrito histórica e culturalmente, mas também reflete as
redes sociais e os contextos em que se movimentam os atores e que tivemos
oportunidade de constatar (Magano, 2010). Da integração e partilha de alguns
valores da cultura cigana e da contestação de outros surgem formas de
mestiçagem cultural que influenciam o processo de identificação com a cultura e
com a identidade cigana, com a combinação de alguns valores tradicionais, mas
também para a integração de valores e atitudes não ciganos. Dos processos de
socialização dos ciganos na sociedade portuguesa surgem novas formas de estar e
de se autodefinir como indivíduos com identificações múltiplas ciganas, mas
também não ciganas, traduzidos numa pluralidade de formas de estar e
relacionamento com a sociedade em que estão inseridos, com várias formas de se
sentir cigano, com a defesa de que a cultura cigana deve acompanhar e enfrentar
desafios e as novas oportunidades sociais, sendo uma das principais vias para
isso a escolarização.
Notas
1 Professora Auxiliar do Departamento de Ciências Sociais e Gestão da
Universidade Aberta (Porto, Portugal). Investigadora integrada no Centro de
Estudos das Migrações e das Relações Interculturais ' Fundação para a Ciência e
a Tecnologia (CEMRI/FCT) (Lisboa, Portugal). E-mail: omagano@uab.pt
2 Para investigadores da Escola de Chicago, o processo de mestiçagem era um
enriquecimento em que do contacto cultural surge um novo tipo de personalidade
(Coulon, 1995).
3 Estudo etnográfico realizado em 1998 1999 para a realização de dissertação de
Mestrado em Relações Interculturais.
4 Quando foi realizado o estudo, em 1999, quase toda a população cigana
residente era analfabeta. Apenas dois rapazes tinham frequentado a escola até
ao 4º ano (num universo de 80 pessoas ciganas).
5 Para o conceito de integração social seguimos a proposta de definição de
Gaulejac e Léonetti (1994) e de Schnapper (2007), usando como principais
indicadores a escolarização, a relação com o trabalho e as relações sociais,
etc., sobretudo em três grandes dimensões: a económica, a social e a simbólica.
Integração social consiste num processo de incorporação em várias dimensões
sociais, sendo que se espera a participação na dimensão económica (trabalho,
produtividade e consumo), na dimensão social (serem mantidas interações sociais
com a preservação de laços simbólicos e culturais), na sociedade global
(pressupondo se uma participação cívica efetiva na vida pública) e na dimensão
simbólica, que consiste na partilha e adesão a normas e a valores comuns.
6 Expressão usada por indivíduos de origem cigana que significa tornar se não
cigano.
7 Tese de doutoramento em Sociologia: Magano, Olga (2010), Tracejar vidas
normais. Estudo qualitativo sobre a integração social de indivíduos de origem
cigana na sociedade portuguesa. Lisboa, Universidade Aberta. Esta investigação
seguiu uma metodologia qualitativa com recurso à realização de entrevistadas em
profundidade a ciganos integrados em várias zonas do país.
8 Foram realizadas 21 entrevistas: 11 homens e 10 mulheres. Em 19 dos
entrevistados a viver conjugalmente, há 14 casos em que o(a) cônjuge é de
origem não cigana. Todos os entrevistados homens frequentaram a escola: dois
fizeram o 4ºano de escolaridade; um o 6º ano de escolaridade; dois o 9º ano de
escolaridade; dois o 12º ano de escolaridade; um fez curso técnico
profissional; um é licenciado e dois têm mestrado. No caso das mulheres, a
escolaridade é a seguinte: uma não tem escolaridade; quatro fizeram o 4º ano de
escolaridade; uma o 5º ano e frequenta formação profissional; três fizeram o 9º
ano e, por fim, outra mulher conclui o ensino superior.