A celebridade pós-moderna da solidão plural e da banalidade pública
A celebridade é um plebeísmo Fernando Pessoa
Introdução
Em fevereiro de 1968, Andy Warhol apresentou a sua primeira exposição
retrospetiva internacional na galeria Moderna Museet, em Estocolmo. O que hoje
a memória coletiva mais lembra não foi este facto, já relevante per se, porque
se tratava já de um criador de renome na moda e na vanguarda artística, cuja
obra simbolizava uma emergente sociedade de massa. O que é mais sublinhado
nesse acontecimento é o que o próprio artista escreveu no catálogo de
apresentação da exposição: o slogan/manifesto artístico 15 minutos de fama
que, segundo Warhol (apudHarris, 2010: 217), todos teriam direito.
Então, como hoje, nas atuais sociedades e culturas de massa, este slogan/
manifesto parecia apelar a um tempo sem imanência, sem presente nem duração. O
slogan/manifesto ou mera provocação de Warhol sobre a fama desbragada a almejar
por todos é, ele próprio, uma expressão famosa para compreender a
instantaneidade mediática que hoje, mais do que nas décadas de 1960-70, em que
o artista a enunciou e a enquadrou, caracteriza os discursos mediáticos de
massa.
Warhol teria dito que, no futuro (hoje?) todas as pessoas teriam fama mundial
durante 15 minutos. Ora, isso foi, até ao momento, impossível e continuará a
sê-lo, por mais celebridade instantânea que os mediapermitam e por mais
eletrónicas que se constituam as sociedades e culturas mediáticas, como as
definiu, entre outros, Ed Shane (2001: 56) ou até mesmo o visionário Marshall
McLuhan (1972: passim), na década de 1960, em A Galáxia de Gutenberg. Mas o
sentido da expressão de Warhol parece residir na leitura crítica que o próprio
fez de uma sociedade massificada de há cerca de 40 anos, altura em que,
precisamente, surgiu a Arpanet que, depois, se desenvolveria na Internet, na
redentora forma de comunicação global.
Foi com o advento da Internet que o fenómeno da globalização se tornou numa
atmosfera tecnológica que varreu toda a superfície terrestre, segundo Anthony
Giddens (2000: 19-29) acentuando a instantaneidade e a homogeneização das vidas
quotidianas: a economia, o comércio, a geografia, a cultura, os hábitos de
consumo e as necessidades, a informação, o entretenimento e até a celebração do
banal. Uma celebração instantânea do instantâneo, própria dos cidadãos anónimos
de um tempo efémero. Cidadãos que participam no mediatismo televisivo e
adquirem uma nova, repentina, descartável e notória identidade.
Há uma evidente perversidade paradoxal neste mediatismo, que surge quando a
mediocridade moral narcísica, típica da ausência de valores da pós-modernidade,
acirra estes cidadãos a adquirirem essa característica identidade. E quanto
mais escândalo televisivo para todos verem (por exemplo, num formato de reality
show), mais celebridade instantânea se obtém.
Ora, esta perversidade paradoxal do mediatismo é típica de uma época pós-
moderna. À letra, de uma época posterior à modernidade; de uma época que
suscita estudos sobre as implicações recíprocas entre a sociedade de massa e a
comunicação global. Esta é a abordagem dos estudos que levaram Giddens (2000:
22-3) a admitir que a comunicação eletrónica instantânea não é apenas um meio
de transmitir informações com maior rapidez, pois, sendo esta uma consequência
da modernidade, a sua existência altera o próprio quadro das nossas vidas,
ricos ou pobres (Giddens, 2000:22-3). As ditas implicações entre a sociedade
de massa e a comunicação global tornam emergentes as preocupações em
compreender os efeitos que as formas e os modelos de comunicação exercem nos
indivíduos, nas culturas e nas sociedades. Neste domínio, a posição de Giddens
sobre uma vida moderna transformada pela globalização é bastante moderada,
cautelosa e descontínua no uso do conceito pós-moderno, pois, na introdução
de As Consequências da Modernidade, este autor preferiu considerar que, em vez
de estarmos a entrar num período de pós-modernidade, estamos alcançando um
período em que as consequências da modernidade estão a tornar-se mais
radicalizadas e universalizadas do que antes (Giddens, 1996: 9). Giddens
(1996:58 e 71) admite, com mais rigor, a preponderância do papel dos mediae dos
dispositivos tecnológicos de comunicação na transformação e reformação social,
cívica, cultural, educacional e política dos indivíduos, pois, criar mitos,
celebridades e fãs é apanágio do campo dos media.
Por conseguinte, justifico a adoção da epígrafe de Fernando Pessoa, no
introito, como descrição acurada da celebridade necessariamente plebeia, ou
seja, popular, porque impõe um parentesco exterior com a banalidade (Pessoa,
s.d.: 66-7). Só existe celebridade com banalidade, porque é a banalidade
popular e grosseira que cria e sustenta a celebridade, supostamente diferente,
mas idêntica, na sua essência estéril.
A ideia de modernidade que as sociedades de massa possuem é, particularmente,
uma ideia decalcada do mediatismo televisivo. É como se só existisse a
realidade virtual que está no ecrã de um televisor, telemóvel, computador
pessoal, MP4, tabletou outro dispositivo tecnológico moderno. Esta ideia de
modernidade assume, por isso, o estatuto de um produto ou mercadoria para
os indivíduos, que assimilam tudo como verdade e realidade. Todavia, esta ideia
de modernidade, que poderia e deveria ser reconhecida por um modo mais
tradicional e cultural, é construída pelos media, nomeadamente pela televisão.
Assim, na modernidade assiste-se a uma latente e necessária confrontação entre
uma prolífera sacralidade de instantes mediáticos e uma emergente e paradoxal
carência de desbanalização do próprio banal. É duplamente paradoxal: a) por ser
emergente, isto é, necessariamente decorrente dos tempos modernos; e b) por ser
carente nas próprias pessoas, culturas e sociedades, sendo, contudo,
negligenciada ou estando no inconsciente coletivo.
No primeiro polo de confrontação, sobrevalorizam-se instantes mediáticos com
referentes popularizados, conteúdos pouco exigentes e efémeros, enquadrados
numa cultura de massa que valoriza, acima de tudo, o espetáculo gratuito, como
é o caso dos reality shows, simples formatos de telenovela típicos das culturas
de massa, mas muito apreciados pelo homo videns modernus(sujeito que contempla
e que deseja) e, por isso, cultivados pelos media, sendo prática recorrente em
Portugal, desde 2000, com o Big Brother. Os instantes mediáticos são
espetáculos que funcionam através desta lógica de simulações e simulacros da
realidade para distrair atenções, segundo Jean Baudrillard (1991: passim), tal
como os diretos noticiosos.
No segundo polo da confrontação, o banal constitui um elemento característico
da aludida cultura de massa, pelo que oriento esta abordagem para um relativo
criticismo sobre as transformações superficiais (ou não essenciais) advindas da
modernidade no necessário desenvolvimento crítico, cultural e moral das
sociedades paradoxais: cada vez mais complexas e, por isso, menos capazes de
desenvolver solidariedades e cidadanias entre as pessoas; mais informadas (ou
mais wiki- informadas e com wiki-conhecimentos) e, por isso, mais incultas;
mais virtualmente interrelacionadas (agora, numa vastíssima rede mundial, o
ciberespaço) e menos humanamente interpessoais e tendentes à vida em comum;
enfim, mais modernas e menos conscientes da banalidade que grassa nos estilos
de vida e nos conteúdos mediatizados, estes últimos com mais responsabilidades
na formação dos indivíduos e das massas, no cumprimento das suas funções de
informação, esclarecimento, socialização e educação.
1. A fronteira pós-moderna da solidão plural e da banalidade pública
Os novos meios tecnológicos de comunicação e informação trouxeram uma latente
ambivalência às atuais sociedades e culturas de massa que deles resultam: o
diferendo entre a reserva de privacidade constitucional e a necessidade social
de exposição pública. Hoje, mais do que nunca, o acesso à esfera pública
tornou-se democratizado e virtual. Por esta circunstância, a esfera pública é o
palco privilegiado de afirmações de falsas ou pretensas identidades privadas
(isto é, de um Eu social conveniente e estereotipado), que almejam a
celebridade instantânea, mas efémera.
Face a estas pretensões do cidadão-mundo ciber-espacial, a mediasfera serve
para veicular tudo e todos. O protagonismo das notícias deixou de ser, por
exemplo, apanágio de quem é objeto das mesmas (as celebridades, as figuras
públicas, os políticos, etc.) ou de quem as produzia, os jornalistas, para se
democratizar e se tornar acessível a qualquer pessoa. Verifica-se a expansão
global do privado, através dos media(principalmente os media com ecrãs, porque
a sociedade é iconófila) que tornam público o que é apenas banal.
2. Sacralização da mediasfera: modernidade vs.pós-modernidade
No seu conhecido Ensaio sobre a Dádiva, Marcel Mauss expressou claramente a
ideia de que é da natureza da sociedade expressar-se simbolicamente nos seus
costumes e nas suas instituições; pelo contrário, as condutas individuais
normais nunca são simbólicas por si mesmas', porque estas são os elementos a
partir dos quais se constrói um sistema simbólico, que não pode ser senão
coletivo (Mauss, 1988: 15). Nos dias de hoje, este aspeto coletivo do
simbolismo tem sofrido profundas alterações desde o ano 1950 em que Mauss
escreveu estas palavras.
Segundo Adriano Duarte Rodrigues (1999: 16), Mauss procurou mostrar, ao estudar
a instituição do Potlatchnas tribos trobriandesas, que a criação e o
restabelecimento dos laços sociais dependem de um processo de troca simbólica
generalizada, constituído pela obrigação de dar, de receber e de retribuir. É
este dispositivo da sociabilidade que funda, também, a lógica da comunicação.
De acordo com Adriano Duarte Rodrigues, Mauss descobria, no processo
generalizado de troca e de circulação, um dos princípios fundamentais do
vínculo social, fonte de todo o valor: o dispositivo para a gestação do valor.
Serve esta referência a Mauss para salientar a sua pertinência em situações de
crise da modernidade, em que as relações de sociabilidade através das
prestações sociais totais deixam, progressivamente, de existir.
Os modos de comunicação estabelecem inter-relações, formam partilhas de
informações e de situações em comum, características de uma troca generalizada,
de que é exemplo o caso da instituição primitiva Potlatchenquanto fundamento da
sociabilidade. O papel desempenhado pelo sistema simbólico nas atividades de
interação está ao serviço de processos de sacralização, de culto ou de
celebração de pessoas, objetos, produtos e marcas. Este papel assemelha-se a
muitos outros que, quotidianamente, acontecem nas sociedades contemporâneas. É
um sistema que realça o valor de ritual coletivo na esfera pública mediatizada
e suscita a interação e a inserção social. Por exemplo, a leitura da imprensa
cor-de-rosa permite pontos de conversa consonante entre muitas pessoas.
Segundo Gilles Lipovetsky, as pessoas gostam de se reconhecer e de descobrir a
sua identidade numa grande figura mitológica ou lendária, que reinterpretam em
função dos problemas do momento: Édipo como emblema universal, Prometeu, Fausto
ou Sísifo como espelhos da condição moderna. Hoje, é Narciso que simboliza o
tempo presente (Lipovetsky, 1989: 47). As pessoas duvidam de si próprias e
procuram segurança nas marcas de luxo que, no fundo, valorizam e pelas quais
são valorizadas, não só aos olhos dos outros, como aos seus próprios olhos.
Max Weber, no ensaio Ciência como vocação (1946: 139), utilizou o conceito de
desencantamento do mundo para caracterizar as sociedades modernas do
racionalismo, considerando este processo de desencantamento do mundo
consubstancial ao desenvolvimento das próprias sociedades, por um lado, e
desproporcional ao processo de criação de mitos e ídolos, celebridades
alimentadas por fãs de uma cultura muito popular e mediatizada, por outro.
Antes de Weber, Karl Marx, no prefácio de Para a Crítica da Economia Política
(1982: 531), compreendeu bem os sinais de uma nova iconofilia ou iconolatria,
advertindo que o processo de vida material condiciona o processo de vida,
política e individual, em geral. Ou seja, não é a consciência dos homens que
lhes determina o ser, mas, pelo contrário, é o seu ser social que lhes
determina a consciência. Não é a consciência que determina a vida, mas a vida
que determina a consciência, na medida em que o homem vive numa sociedade que o
supera. Principalmente pelo que o próprio Marx designou por fetichismo da
mercadoria, que pode ser uma figura pública considerada celebridade, como uma
marca global, desde que sejam signos de distração. O que são as mercadorias
senão produtos do trabalho humano, resultantes das relações sociais entre os
homens? Trabalho alienado; celebridades igualmente alienadas pelo imperialismo
mediático.
O conceito de pós-modernidade, apresentado em 1979, por Jean-François Lyotard
em A Condição Pós-Moderna(1989), sustentava a descrença nas mega-narrativas da
modernidade. Descrença que culminou na deslegitimação dos ideais, preceitos e
regras. Na obra O Crepúsculo do Dever ' A Ética Indolor dos Novos Tempos
Democráticos, de Gilles Lipovetsky (2004), demarcam-se os mais recentes
momentos históricos, que se caracterizam por justaposição.
Os valores da modernidade foram baseados na razão, para se fundar uma sociedade
mais justa (construção racional do ser humano). A modernidade, período fértil
em ideais (de utopia e de progresso), subordinou o indivíduo aos valores morais
e às doutrinas que regiam o coletivo, impondo, por conseguinte, sacrifícios e
obrigações como fontes de abnegação. Era a época da moral de caráter religioso,
baseada em dogmas e mandamentos divinos típicos de sociedades morais, coercivas
e regradas, mas com formas e padrões culturais estabilizados e pré-definidos.
Pelo contrário, os valores (a existir algum consistentemente) da pós-
modernidade colocam em causa a utilidade social do que Immanuel Kant (2005: 65)
designou por usos públicos da razão. Como resultado do declínio dos ideais
antigos e da inexistência de usos públicos da razão ou de uma opinião pública
interessada e participativa, as sociedades tornam-se vazias. É o fim da ética,
para Lipovetsky, e o apogeu do narcisismo, da autonomia individual, através do
uso prolífero dos novos media. Na pós-modernidade do domínio absoluto de formas
de comunicação global, o interesse por questões públicas paradoxalmente
desvaneceu. Verifica-se a crise de ideais a favor de um pragmatismo e
utilitarismo do salve-se quem puder, porque o período é de disparidade do
passado, em que nenhuma versão de progresso não só não pode ser plausivelmente
defendida, como se fomentam reações contra o progresso e a evolução face a um
determinado utopismo da perfeição da evolução e da expansão científica.
A pós-modernidade é o culto da sedução, notória nos discursos publicitários de
massa, na medida em que se reconhece a importância da vivência imediata dos
sentidos, bem como da procura de confortos e de felicidades fáceis (Lipovetsky,
2010: 81). Por isso, dedicamo-nos hoje, sem moralismos, à procura do prazer
pessoal. Regemo-nos, sem escrúpulos, pelo desejo global e homogéneo. Se a pós-
modernidade não é a época do pós-dever ou de uma ética lighte indolor, como
defendeu Lipovetsky, no mínimo é a da ética hedonista, na qual predomina o
imediatismo, a superficialidade, a efemeridade, a velocidade das experiências e
das vivências, a informação-mercadoria ou informação pronto-a-pensar e
informação pronto-a-consumir. Assim é, se notarmos na cultura e na educação,
mais disponíveis e flexíveis, tornando superficiais e imediatas as relações
humanas.
A problemática sobre modernidade versuspós-modernidade gira em torno do
questionamento da atualidade, isto é, dos seus valores sociais, princípios
morais e padrões culturais. Através deste questionamento, Lipovetsky concluiu,
designadamente, pelo aprofundamento da lógica individualista (a cultura do
narcisismo), pelo consumismo da condição do Homem Moderno, pela ausência de
valores, pelo excesso de informações, pela falta de interesse geral em
participar na esfera pública (perda de laços comunitários). Numa palavra, a
atualidade caracteriza-se pelo vazio. Mas não chega a haver um vazio absoluto
ou um desinteresse absoluto, isto é, um niilismo nietzscheano. O problema é que
as pessoas se mobilizam em função dos seus interesses em vez de, sistemática e
quotidianamente, se envolverem pelo simples dever de cidadania ou, como
designou Jean-Jacques Rousseau no Contrato Social, pela soberania popular de
uma vontade geral.
A pós-modernidade é, por conseguinte, uma inevitabilidade fenomenológica da
própria sociedade contemporânea (Hartley, 2002: 180), cujo efeito evidente é o
do enfraquecimento do ideal democrático de esfera pública. Ideal que Jürgen
Habermas (1991: 219) e a Escola de Frankfurt conceberam como circunstância
propícia à produção de condições políticas saudáveis e justas, porque assentava
nos eixos deste movimento crítico, de inspiração marxista e de intervenção
social, designadamente nas críticas ao capitalismo e à cultura de massa, ou
seja, à indústria da cultura, bem como aos efeitos destes sobre os produtos
(culturais) estandardizados e pouco exigentes, conforme também reconheceu
Giddens (2003: 455). A modernidade ou a pós- modernidade fundamentam o
principal eixo crítico reivindicado pela Escola de Frankfurt: a alienação da
sociedade de consumo.
Se, por um lado, a esfera pública é, como escreveu Hartley (2002: 191), a
arena em que o debate ocorre, a geração de ideias, o conhecimento partilhado
e a construção de opinião que ocorrem quando as pessoas se reúnem e discutem,
e, por outro lado, a pós-modernidade é uma cultura onde a promoção dos
direitos subjetivos deixa sem herdeiro o dever dilacerante, onde o que é
rotulado de ético é assumido como invasor, usurpador, e de onde a exigência de
compromisso está ausente? (Lipovetsky, 2004:17), então, podemos concluir que
as sociedades e as culturas de massa não se caracterizam pela abertura de um
espaço público de interesse e participação comunitária, porque não há condições
para esse lugar (utópico ou em extinção) onde as ideias e a informação são
partilhadas e onde as opiniões públicas são formadas como resultado da
comunicação.
3. Sacralização do instante mediático
A celebridade só é valorizada ou colocada em causa em sociedades tipificadas
pela massificação mediática, onde a procura existencial e coletiva por novas
identidades ilusórias é relevante para as necessidades que a própria sociedade
cria nos indivíduos e, ao mesmo tempo, lhes apresenta os modos consumistas de
as satisfazer. Por conseguinte, trata-se de uma celebridade do instante
mediático fabricada pela mediasfera, porque esta mediasfera é massificadora de
interesses, motivações, gostos, necessidades, hábitos e consumos mediáticos.
A celebridade é mais o produto da função de espetáculo ou entretenimento dos
media, do que resultante do cumprimento das funções de informação, educação ou
socialização de cidadãos. Por conseguinte, a massificação mediática é uma causa
e uma consequência da (des)regeneração identitária de cariz eminentemente
social e cultural das massas.
As celebridades, provenientes de qualquer campo ou domínio da vida, são
construídas socialmente pelos mediae continuam a precisar destes, nomeadamente
da televisão, para manter a celebridade. Aparecer, onde e quando for
necessário, é fundamental, porque o importante é, efetivamente, aparecer no
ecrã onde as massas depositam os seus interesses, o seu tempo e a sua formação
como cidadãos passivos.
As celebridades do instante mediático são do género mais imediato e efémero, na
medida em que, ao contrário das celebridades com carreira pública (nas artes,
por exemplo) e/ou política (bem como todas as pertencentes a instituições
sociais ou económicas de renome), são celebridades meteóricas, quase sempre sem
obra ou passado construídos gradualmente para edificar uma celebridade mais
previsível e sustentada.
Numa civilização do ecrã, como a das atuais sociedades e culturas de massa, a
celebridade tem mais facilidades em se efetivar. A proliferação de imagens na
sociedade potencia o culto das mesmas imagens e de quem nelas aparece como
referência ou paradigma de um dado estilo de vida, produto ou marca. As imagens
da publicidade são muito representativas desta iconolatria generalizada das
sociedades e culturas de massa.
A civilização do ecrã e a iconolatria publicitária alimentam a notoriedade e
celebridade de rostos e corpos idealizados e estereotipados pelos critérios
hedonistas da pós-modernidade. As celebridades, apenas admitidas como tal pela
aparição mediática em imagens de consumo de massa, são construídas e assumidas
como símbolos de determinados valores sociais ou princípios morais numa época
pós-moderna sem valores nem princípios inflexíveis como os da modernidade dos
séculos XVIII e XIX.
Na mediasfera predominam conteúdos de entretenimento de cariz popular, na
medida em que se torna mais irresistível para os mediao interesse do público em
detrimento do interesse público. É o caso dos reality showsnos canais
generalistas e abertos de televisão. Esta condição contribui para uma época do
triunfo do espetáculo, do consumismo mediático, do liberalismo do mercado
global, do capitalismo ou, conforme referiu Giorgio Agamben, qualquer outro
nome que se queira dar ao processo que domina hoje a história mundial. Uma
época onde o capitalismo não estava apenas dirigido para a expropriação da
atividade produtiva, mas também, e sobretudo, para a alienação da própria
linguagem, da própria natureza linguística e comunicativa do homem, do logos
(Agamben, 1993: 62).
Tomo este repto de Agamben como advertência ao sentido crítico face à emergente
sociedade do espetáculo, da informação, da globalização ou da mediasfera.
Sentido crítico essencialmente determinado por uma época global em que a
comunicação surge como ideologia da modernidade, cujas consequências mais
evidentes são a crise de valores sociais e a perda de humanidade e,
paradoxalmente, a incomunicabilidade. Conforme acrescentou Agamben, o que
impede a comunicação é a própria comunicabilidade, os homens estão separados
por aquilo que os une. Os jornalistas e os mediocratas são o novo clero desta
alienação da natureza linguística do homem (Agamben, 1993: 64).
De acordo com a obra A Sociedade do Espetáculo, de Guy Debord (1992: passim), o
espetáculo na sociedade corresponde a uma fabricação concreta da alienação.
Esta alienação ou desenraizamento do ser linguístico ou do novo homo
comunicansdeve-se, em parte, a esta época de excessos de comunicação que
Agamben mencionou.
Este sentido crítico serve de justificação à utilidade em estudar a comunicação
e pretende enquadrar, neste contexto de globalização, o estudo e compreensão da
comunicação, quer como técnica retórica e ideológica, quer como instrumento de
gestão estratégica pessoal. A celebridade do instante mediático é do tipo de
estrutura fechada, segundo a conceção de Roland Barthes (1977: 263), de
conteúdos imanentes per se, na medida em que o que torna célebre o indivíduo é
imediato e efémero. Então, para que serve falar em comunicação de massa ou
advento de uma nova mediasfera, ela própria célebre, se a época da globalização
da comunicação fala por nós?
4. A expansão global do privado e celebridade das imagens mediáticas
O papel dos meios de comunicação social na formação cultural e social dos
indivíduos e das sociedades é determinante. As sociedades atuais são o que os
mediaapresentam e propõem. Principalmente nos ecrãs, cujas imagens
estereotipadas são conceções totalitárias (ideológicas ou impositivas) e
hiperbólicas (amplificadoras das mensagens) da realidade.
Os principais ingredientes do mercado de massa são a informação, o consumo, o
entretenimento, o espetáculo (cf. Baudrillard, 1981, 1991 e 2001), a
celebridade do popular e o respetivo culto de imagens (de figuras públicas, de
marcas publicitárias e comerciais, etc.) nos ecrãs das televisões, dos
telemóveis e dos computadores pessoais. O consumo de marcas e de produtos
globais contribui para a formação do próprio mercado de massa e para a
modificação dos indivíduos, cada vez mais com propensão para o individualismo
(cf. Camps, 1996).
A época das massas passou a ser um mercado-mundo de consumos homogeneizados e
popularizados. A comunicação social é uma indústria de celebridades: produtos,
marcas, pessoas, valores, ideias. A televisão é como uma indústria das
consciências e como uma forma de organização e controlo das sociedades. O papel
determinante dos meios de comunicação social é ainda mais efetivo no Ocidente.
Os mediaatuam como meios ideológicos. A interação dos mediacom as novas
tecnologias tornam os próprios mediamais influentes sobre os indivíduos.
Como a sociedade de massa baseia-se mais nas necessidades básicas (necessidade
de entretenimento), a força do mercado e a importância dos hábitos de consumo
de determinadas imagens devem-se ao marketinge às técnicas de sedução. A
cultura de massa é definida pelo conjunto de comportamentos, mitos e
representações produzidas e difundidas segundo uma técnica industrial
(conteúdos difundidos pelos meios de comunicação).
Se a cultura de massa diz respeito a todos os produtos fabricados para o
mercado de massa, então, a celebridade do instante mediático também é um
produto do mercado de massa. A celebridade deixou de ser privilégio de alguns
(poucos) para ser apanágio de todos os que expõem a sua condição mundana nas
redes sociais ou nos típicos realityshows.
Em função deste mercado de massa mediático, hoje há, cada vez mais, um só
público para a televisão, porque os gostos são popularizados e estandardizados.
Os géneros televisivos típicos nas sociedades e culturas de massa são programas
de entretenimento, que sobrevivem porque são ópios úteis e porque oferecem
referências e símbolos de pertença, mas não por terem qualidade. O mercado de
massa determina, por conseguinte, comportamentos sociais desviantes dos ideais
outrora modernos e idílicos.
Nas massas populares predomina o conjunto e não se distinguem as pessoas;
revoluciona-se tudo o que é diferente (singular ou individual). O conjunto de
pessoas é homogéneo. Nas massas, as pessoas não se conhecem, mas têm
possibilidade de exercer influências recíprocas. As celebridades do instante,
tal como as massas, não possuem tradições.
Estas características das sociedades e das culturas de massa apresentam
consequências na esfera pública que são, por vezes, paradoxais, como a
necessária ambivalência entre uma tendência para o anonimato e uma exposição
pública que fomenta a celebridade; o incitamento do individualismo face ao
nivelamento dos próprios indivíduos e a sujeição de influências; a exposição às
imagens e às mensagens de celebridades mediáticas sacralizadas na sociedade e a
respetiva autoidolatria.
Como os meios de comunicação social são instrumentos de iconolatria, que
promovem ou influem nos comportamentos e atitudes sociais, as imagens da
televisão, designadamente, provocam o que Régis Debray (1993: passim) designou
por um formidável efeito de realidade, como se a imagem emitida trouxesse a
coisa real ao domicílio, como se não fosse uma imagem. As transmissões em
direto, por exemplo, sacralizam os sujeitos e objetos transmitidos em
celebridades. A idolatria ou o feiticismo é quando se confunde a divindade com
a sua imagem material. O real desaparece nos simulacros do real. Cada imagem de
uma celebridade é uma escolha, uma interpretação, uma montagem e, portanto, uma
mentira ou, pelo menos, uma construção mental imposta às audiências para
consumo e cultivo simbólico.
Hoje, com a utilização democratizada da Internet, somos todos produtores e
consumidores, observadores (leitores) e analistas (intérpretes) de imagens.
Entre a multiplicidade de imagens produzidas e consumidas, algumas são de
celebridades. São imagens do cinema, fotografia, publicidade, escultura,
pintura, desenho, graffitis, cartazes, imagem virtual, imagem mental.
Esta nossa civilização é a da imagem. É evidente a omnipresença de imagens no
espaço público e a própria generalização da utilização das imagens. Hoje,
assistimos à preponderância da comunicação pela imagem nas sociedades
contemporâneas. As imagens são numerosas e distintas, mediáticas e imediatas,
contemplativas e duplicadoras da realidade.
As imagens propõem realidades concretas, abstratas, ilusórias ou contrafatuais
(conceção mental de mundos possíveis: imaginados, planeados, ficcionados). A
proliferação e a utilização das imagens conduzem à necessidade de compreensão
do modo como as ditas imagens comunicam e transmitem mensagens.
A profusão de imagens de celebridades é típica nas sociedades e nas culturas de
massa. Somos seres feitos de imagens e à imagem da Bíblia. Aristóteles já dizia
que nem é possível pensar sem imagens mentais. Fazer uma imagem é, antes de
mais, olhar, escolher, aprender. Não se trata da reprodução de uma experiência
visual, mas da reconstrução de uma estrutura modelo (Joly, 2007: 67).
As imagens de celebridades fornecem sempre informações, porque são
representações intencionais de um produto humano. Enquanto representação, é
um veículo ou suporte material de transmissão de informações sobre a pessoa que
se assume na esfera pública como celebridade. As imagens de uma celebridade
refletem sempre valores sociais, princípios morais, padrões culturais, etc. de
determinada sociedade e cultura de massa.
Seja expressiva ou comunicativa, uma imagem de uma celebridade constitui sempre
uma mensagem para os outros, mesmo quando estes outros são os públicos anónimos
que consomem os produtos mediáticos. Para compreender uma imagem de uma
celebridade, é importante saber para quem essa imagem foi produzida e qual o
objetivo (tornar alguém ou alguma coisa popular ou célebre) que a imagem
supostamente serve. A função da mensagem visual é determinante para a
compreensão do seu conteúdo.
Além da criação de popularidade ou celebridade de sujeitos e objetos, as
imagens mediáticas proporcionam sensações, aisthésisespecíficas nos públicos/
consumidores. Segundo Martine Joly (2007: 68), os instrumentos plásticos da
imagem, qualquer que ela seja, mesmo os próprios instrumentos das artes
plásticas', fazem dela um meio de comunicação que solicita a fruição estética e
o tipo de receção que a ela está ligada.
Sublinha-se, por conseguinte, a importância da presença, consciente ou
inconsciente, nos públicos-alvo, dos discursos mediáticos de massa nos espaços
públicos pós-modernos enquanto constituintes de uma dimensão retórica
específica. Para Gilles Deleuze (2005: 20), a denominação de civilização de
imagem é, sobretudo, uma conotação à civilização do cliché, cuja explicação
pode referir-se duplamente à inflação icónica que assenta na redundância e, por
outro lado, na ocultação, distorção ou manipulação de certas imagens, de tal
maneira que estas, em vez de serem um meio para descortinar a realidade,
ocultam-na. Assim, existiria, segundo Deleuze, um interesse geral em esconder
algo na imagem (o seu próprio caráter de persuasão).
Todas as linguagens e imagens publicitárias icónicas, por exemplo, são
resultados de estratégias significativas (persuasivas). O fluxo excessivo de
imagens condiciona o comportamento humano, havendo, por isso, a necessidade de
se falar em ecologia da imagem, no cuidado sobre a pressão visual a que somos
submetidos diariamente mesmo para as imagens de celebridades.
Na publicidade utilizam-se imagens de celebridades sem significado direto com o
objeto representado, mas com um sentido simbólico consciente e inconsciente
para os públicos/consumidores. A utilização de imagens de celebridades na
publicidade procura aproveitar o que Roland Barthes (2011: 263-298; cf.
Bignell, 2002: 31-33) designou, no caso de modelos femininas, os significados
míticos associados (no caso, o de beleza feminina). Explora-se uma relação
entre a mulher célebre e o produto, um signo icónico (a mulher fotografada) e
um signo linguístico (o nome do perfume). Esta relação faz funcionar a
conotação.
Para Umberto Eco (2009: 51-7), o significado é como uma unidade cultural. Em
todas as culturas, uma unidade cultural é simplesmente algo que essa cultura
definiu como unidade distinta de outras (Eco, 2009: 112), sendo a conotação a
soma de todas as unidades culturais que o significante pode evocar e despertar
na mente do destinatário. O reconhecimento público de uma pessoa enquanto
considerada celebridade, por exemplo Humfrey Bogart, depende dos efeitos da
conotação produzida pelas imagens veiculadas na mediasfera. Mas o poder
evocativo de uma imagem não é o mesmo para todos, porque diferem as
experiências e contextos próprios de cada pessoa que a recebe e a interpreta de
forma diferente.
Na nossa civilização da imagem, cultura do ecrã ou paradigma do vídeo, o
culto das imagens de celebridades é sustentado pela indústria mediática e pelas
novas tecnologias de informação e comunicação presentes na fotografia, cinema,
televisão, multimédia, artes cibernéticas enquanto próteses de produção de
emoções na esfera pública.
Considerações finais
Um aspeto que me parece evidente na paradoxal distinção e complementaridade
entre fãs e celebridades prende-se com um cariz emocional que define quem se
assume como fã, face a um cariz mais racional que define quem se assume como
celebridade. Os fãs necessitam de emoções para exacerbarem o seu pathossobre
quem admiram; as celebridades necessitam de racionalidade para planearem
estratégias concertadas e politicamente corretas de aparição pública de um
ethos. Os fãs dependem tanto da emoção para serem fãs, como as celebridades
dependem da racionalidade para serem celebridades. O pathosdos primeiros
alimenta-se de emoções; o ethosdos segundos alimenta-se de razões. Mas a
racionalidade das celebridades contribui para formar fãs e a emoção dos fãs
contribui para a construção social das celebridades.
A própria cultura noticiosa, explorada com perspicácia por Nelson Traquina
(2002: 171), vai ao encontro desta associação entre emoção dos fãs e
racionalidade das celebridades na construção de conteúdos mediáticos
resultantes de critérios de noticiabilidade mais populares, imediatos e
efémeros, como são os casos de valores- notícia baseados na referência,
proeminência, notoriedade, celebridade, elite ou sucesso.
A partir da década de 1980, a mediasfera começou a transformar-se gradualmente,
não apenas em termos de meios tecnológicos utilizados e difundidos, como em
termos de conteúdos mediáticos mais popularizados, instantâneos e efémeros.
Passou-se a assistir também à mais frequente presença omnipotente dos mediae
dos multimédia, que provocou e provoca invasões da esfera social e pessoal. Por
outro lado, estes mesmos mediae multimédia têm provocado desejáveis exposições
públicas. Os reality showssão flashesda vida moderna transmitidos ao vivo para
todo o mundo. Os discursos dos mediasão, por conseguinte, espetáculo para
atrair atenções. Os diretos funcionam pela lógica de simulações da realidade.
Os media oferecem fantasias sofisticadas a quem não encontra satisfação na
realidade, ou seja, a quem alimenta e se alimenta de celebridades. Por
conseguinte, há uma saturação informativa e a uma velocidade vertiginosa sobre
celebridades.
As celebridades instantâneas são o produto das sociedades e culturas de massa,
típicas de uma época do pronto-a-pensar e da fast culture. Mas as
celebridades instantâneas também simbolizam o triunfo da banalidade pública.
Como sustentei, o antídoto para a banalização do mediático (do que não possui
relevância nem mérito e aparece na televisão) que contribui para a celebridade
do instante passa pelo processo difícil e inverso de desbanalização do banal: o
cultivo de massa crítica interessada e participativa nos assuntos de relevância
geral. O processo é difícil, como disse, numa sociedade cada vez mais propensa
ao fetichismo de um Eu social, do self-mediae da solidão plural pós-moderna.
Sendo estas sociedades e culturas assim depreciativamente caracterizadas, por
serem incapazes de facultarem aos indivíduos mecanismos de autoconsciência e de
defesa sobre elas próprias, suscitam, todavia, a necessidade de se falar delas
em abordagens cada vez mais contundentes e incisivas. Abordagens compreensivas
e desenvolvidas sob a égide do realismo crítico do que elas mesmas são e
representam no campo do social, cultural, político ou tecnológico para os
indivíduos.