A política de classe na economia do Estado Novo: a burguesia como classe
beneficiária
Introdução
As noções que preconizam a ascensão do(s) fascismo(s) ' ou dos autoritarismos,
conforme a perspetiva teórica preferida ' como uma reação, são, na grande
maioria dos autores que se debruçam sobre a matéria, perfeitamente sintetizadas
na elucubração de Norberto Bobbio:
O regime fascista foi um típico regime contra-revolucionário. Reagiu
com a violência dos
squadre d'azione2
protegidos pelo Estado contra a revolução mais ameaçada do que
praticada pela ala esquerda, maximalista do movimento operário; e
impôs pela violência um regime que restaurou os valores da ordem
contra a liberdade, da hierarquia contra a igualdade, da nação contra
o internacionalismo (Bobbio, 2000: 600).
Apesar de se situar numa distinta perspetiva teórica, Eric Hobsbawm não está
longe da citação de Bobbio quando define o fascismo na mesma linha de fenómeno
multidimensional ' político, ideológico e, quando no poder, económico ' de
reaçãoà conjuntura do pós-Primeira Guerra Mundial. Segundo este autor, os
fascistas eram os revolucionários da contra-revolução (Hobsbawm, 2002: 123)
(grifos nossos). Isto é, o movimento político fascista consubstanciou-se numa
espécie de aríete sustentado na violência como modalidade específica de
restaurar a ordem numa Europa mergulhada no caos.
No respeitante à relação entre o fenómeno político (Fernandes, 1998) fascista e
o Estado Novo, sem ser esse o centro do trabalho aqui exposto importa, contudo,
realçar que tal não se trata de matéria escolástica, ao contrário do que
defendem alguns autores3. Do nosso ponto de vista, e de modo sucinto, o
deslocamento do ângulo de visão sobre a problemática Estado Novo/fascismo, que
tem vindo a ocorrer na última década e meia, parece corresponder menos a um
normal aprofundamento da recolha e análise do material historiográfico que,
progressivamente, vai ficando disponível, e mais a uma tendência histórica de
relativização teórica do leque de fenómenos que compõem o fascismo. Assim se
obscurecem mais do que se iluminam os becos da investigação.
Na secção I do artigo tentar-se-á enquadrar o fascismo enquanto fenómeno
político no seio da estrutura social mais vasta em que aquele se encontra
mergulhado, bem como das classes que o alimentam e lhe deram espessura
histórica. Por outras palavras, ter-se-á como propósito avançar com alguns
elementos acerca da relação do regime político em causa com as classes sociais
(Silva, 1988; Cabral, 1976). Por seu turno, na secção II abordar-se-á o feixe
de relações entre os regimes fascistas e a grande burguesia e o capital
financeiro, portanto concentrando esforços analíticos em torno da relação entre
o regime político e um espectro específico do espaço das classes sociais: com
as classes sociais dominantes mais relacionadas diretamente com a esfera
financeira. Por conseguinte, para recorrer à terminologia utilizada por Adriano
Codato, a ênfase neste artigo será dada à dimensão funcional4, portanto, onde o
Estado surge como a instituição responsável pela reprodução das relações de
dominação que caracterizam uma dada sociedade (Codato, 2001: 25).
Nesse sentido, gostaríamos ainda de sublinhar que tratando-se este de um objeto
de estudo historicamente situado (e, entretanto, circunscrito), não significa,
de todo, que se verifique tratar de um empreendimento eminentemente
historiográfico. Com efeito, a objetivação de propriedades políticas,
socioeconómicas e, em alguns momentos do trabalho, simbólico-ideológicas (M.
Pinto, 1985: 27) do regime busca muito mais apresentar pistas para um estudo
analítico-conceptual do Estado Novo do que, em estritamente, enumerar factos e
figuras históricas relativamente estabilizadas e relativamente consensuais para
a esmagadora maioria das pesquisas sobre o assunto. Em termos muito genéricos
defendemos que a Sociologia apresenta relevantes enunciados teóricos e
metodológicos para que possa abandonar certos objetos de estudo a outras
Ciências Sociais (Tilly, 1992). Com efeito, o que diferencia de sobremaneira as
Ciências Sociais umas das outras não é tanto a construção de objetos de estudo
específicos e delimitados, mas mais a adoção de perspetivas e problematizações
alternativas, se bem que complementares. Como vincou Adérito Sedas Nunes,
o campo da realidade sobre o qual as Ciências Sociais se debruçam é,
de facto, um só (o da realidade humana e social) e todos os fenómenos
desse campo são fenómenos sociais totais, quer dizer: fenómenos que '
seja na sua estrutura própria seja nas suas relações e determinações
' têm implicações simultaneamente em vários níveis e em diferentes
dimensões do real-social, sendo portanto susceptíveis, pelo menos
potencialmente, interessar a várias, quando não a todas as Ciências
Sociais (Nunes, 2001: 24).
Por conseguinte, nenhum fenómeno social e político é estranho a uma
problematização sociológica dos seus fundamentos e propriedades estruturantes.
No caso, as classes sociais, a estrutura económica e a sua inserção histórico-
política.
1. O Estado Novo português e o campo das classes sociais
Um dos temas mais controversos no estudo do fascismo prende-se com a imbricação
que esse fenómeno político teve com as classes sociais (Sá, 1989). Assim, esta
secção procurará trabalhar em torno da relação que o Estado fascista estabelece
com a matriz socioeconómica e as classes existentes numa determinada sociedade.
Se há correntes de pensamento que tendem a considerar como não pertinente o
enquadramento de classe para o estudo do fascismo (A. C. Pinto, 2011, 2000,
1992; Ramos 2009; Cruz, 1988; Meneses, 2009; Leonard, 1998), estamos em crer
que é, exatamente, uma perspetiva de totalidade histórica e de ligação entre os
fenómenos políticos com os fenómenos económicos e sociais que permite desvendar
a natureza substantiva de classe do fascismo, não o reduzindo apenas a esta
dimensão5. Portanto, a nossa tese parte do princípio que o fascismo é um
fenómeno de classe, sem com isso querer afirmar que é um epifenómeno de uma
única classe ou que a classe seria a única variável explicativa. Aliás, a
confusão por vezes instalada entre a equivalência de um fenómeno político com
raízes de classe a uma pretensa exclusividade da ação de uma única classe está,
a nosso ver, na base das teses que procuram elidir a conexão entre os dois
tabuleiros. Do fascismo e da(s) classe(s), entenda-se. Na verdade, os fenómenos
despoletados por uma classe nunca dizem respeito apenas a ela, mas a todas as
outras, tendo em mente que existem sempre efeitos em todo o tecido social. Daí
que se valorize aqui uma visão que se pretende relacional(Bourdieu, 2001).
Um dos autores que mais trabalhou com a tese de que não haveria uma forte
correlação entre fascismo e classes sociais, mais ainda entre fascismo e as
classes dominantes, é o italiano Renzo De Felice. Este autor utiliza
precisamente a supramencionada confusão entre fenómeno de classe com fenómeno
de uma única classe para justificar a ausência de qualquer relação entre
fascismo e classes sociais. O fascismo não foi a expressão de uma classe
social precisa, mas ele recolhe partidários e adversários em todas as classes
(De Felice, 1975: 265). Mais uma vez se verifica o facto de se equiparar
automaticamente um fenómeno relacionado (e relacionável) com as classes à
pertença de uma única classe social. Para este autor, se o fascismo tem alguma
ligação com o campo das classes, então ela se daria em termos do estado de
frustração social, muito fortemente gerador de uma profunda inquietude, de um
desejo confuso de revanche e de uma contestação surda (idem: 267) por parte
das classes médias. Para De Felice, o fascismo teria tido os seus mais
ardentes defensores junto da pequena-burguesia6(idem: 266), sem com isso
afirmar um eixo de causalidade entre classe social e fascismo.
Sem querermos ser demasiado exaustivos, consideramos que o fascismo firma- se
numa estrutura complexa de interações que as classes fundeiam entre si. Ou
seja, o fascismo, ao nível das classes, sustenta-se em três eixos essenciais de
classe.
Em primeiro lugar, o fascismo é geradono que toca aos seus pressupostos
políticos e ideológicosno seio de classes sociais específicas. Assim, a classe
média urbana, mas, sobretudo, as classes médias constituídas por pequenos e
médios proprietários rurais tendem a assumir-se como as classes organizadoras e
que fornecem os elementos ideológicosmais preponderantes para a construção do
fascismo enquanto ideologia e prática política. Em Portugal, o substrato
ideológico de Salazar (visão do mundo sustentada no ideário católico mais
tradicional, conservadorismo, apego à ordem) é em tudo coincidente com as
franjas mais conservadoras da burguesia portuguesa e da pequena-burguesia
tradicional da primeira metade do século XX. O próprio Salazar era originário
de uma família de pequenos proprietários agrícolas e o círculo universitário
que frequentou como aluno e como professor era marcado por um ambiente
simbólico-ideológico fomentador à adoção e (re)produção de orientações
políticas de cariz fascista. No Centro Católico Português, portanto ainda antes
de aceder ao poder, Salazar destacou-se por incorporar o ideário mais
conservador e tradicionalista de uma Igreja Católica portuguesa ainda
desorientada face à decadência da monarquia constitucional e ao avanço da
Primeira República (1910-1926). Por outro lado, a proliferação dos chamados
notáveis (Carvalho, 2001; Fernandes, 2001; Castilho, 2001; Rosa, 2009;
Fernandes, 2006) de cada região na estrutura interna da União Nacional, parece
dar razão à tese de que a pequena-burguesia e os pequenos e médios
proprietários do interior do país estariam fortemente ligados à orgânica
interna dos aparelhos partidários fascistas e à sua alimentação ideológica.
Em segundo lugar, e este é um ponto onde há uma clara coincidência entre as
características formadoras do fascismo como movimento internacional e o Estado
Novo português, o fascismo recruta massas populares que se encontram despojadas
de uma inserção em redes de solidariedade cultural e/ou política de classe e
onde grassam o individualismo e, acima de tudo, a animosidade e o ressentimento
relativamente à sua situação de insegurança material, e mesmo psicológica. Se
não há uma base social de apoio transversal a todos os fascismos, regimes e
movimentos deste tipo enraízam-se em torno de classes populares (classe
operária e campesinato ' vd. Bourdieu, 2004:372-396) politicamente
desorganizadas. Isto é, camadas populares sem capacidade de se organizarem
autonomamente em termos culturais, sindicais e/ou políticos. É no pântano de
uma classe trabalhadora ou de um pequeno e de um médio campesinato fragmentados
enquanto classe7, e, frequentemente, em situações de vida altamente precárias,
que o fascismo recruta não só apoio social, como o seu contingente miliciano e
de ativistas. Em Portugal, a presença de elementos populares (Melo, 2001) no
interior da União Nacional e das organizações milicianas, excetuando talvez o
caso da Legião Portuguesa, foi proporcionalmente inferior aos casos italiano e
alemão sem, contudo, deixar de assentar nos mesmos pressupostos de base: massas
populares desbaratadas e incapazes de se agregar coletiva e autonomamente como
classe8.
Em terceiro lugar, o fascismo tem como classe recuperadora e beneficiária
principal do seu desenvolvimento enquanto regime a grande burguesia. Com
efeito, se o fascismo não nasce ideologicamente na burguesia financeira ou
industrial, estas frações de classe acabaram por ser amplamente favorecidas por
aquele. Assim, a grande burguesia substantiva um caráter de beneficiária
económica principal, mas politicamente indireta na génese do fascismo. Esta
última vertente tem a ver com o facto de que não é esta classe que inicia o
processo político que leva o fascismo ao poder, mas que, após a estabilização
política de um regime fascista, é a classe que reverte a seu favor esse novo
enquadramento político como forma de incrementar os seus ganhos económicos. No
final de contas, com a constituição do fascismo em poder político, é a classe
dominante que mais vai passar a determinar as lógicas de desenvolvimento do
Estado fascista. A próxima secção documentará e versará em maior detalhe esta
questão.
Resumindo, a ancoragem de classe do fascismo passa por três eixos essenciais:
1) germina larvarmente nas classes mais conservadoras politicamente, com maior
incidência de dinâmicas de proletarização e com uma componente agrária e/ou
latifundiária muito vincada; 2) para além do enunciado no ponto anterior, o
fascismo tem o seu apoio político em massas populares fanatizadas (Alemanha
nazi) e/ou desmobilizadas, mas que não se demonstram capazes de se organizar e
mobilizar, autónoma e coletivamente, contra os regimes não-fascistas; 3) o
fascismo, no poder, dilata a dominação de classe da burguesia sob novos moldes.
Se o fascismo como movimento é hegemonizado pelo ponto 1) (caso português) ou
pelo ponto 2) (caso alemão), o fascismo enquanto poder político organizado
institucionalmente, passa a privilegiar o eixo 3). Quer dizer, a questão da
distinção entre fascismo enquanto movimento (Mann, 2011) e fascismo no poder
(Aguiar, 2008) não assume foros de relevância inescapável, na medida em que,
mesmo quando há distinções entre casos nacionais do fascismo como movimento, no
poder e enquanto poder político, o fascismo revela semelhanças incontornáveis
no que tange à reprodução da dominação de classe nos planos político,
ideológico e económico (Trindade, 2008). A estes três eixos importa ter em
consideração a desorganização política e ideológica da classe trabalhadora.
Num outro domínio, o fascismo revela o seu caráter de classe aquando do
processo de reorganização e reunificação política do bloco no poder. Por outras
palavras, no contexto da cavada crise económica, política e ideológica do pós-
Primeira Guerra, o fascismo mostrou-se como uma das vias possíveis para
restaurar um mínimo de unidade política entre as frações da classe dominante.
Sem apagar as fricções que se mantiveram entre elas, mas arrumando as várias
frações e classes, estabelecendo-lhes uma coesão política mínima.
Em Portugal, o Estado Novo mostrou ser capaz de unificar politicamente as
várias classes dominantes em torno de uma plataforma ideológica e de uma
política económica9 que permitisse equilibrar as forças em competição: a
Nação. Foi desta busca de um consenso amplo ' tanto dentro das frações do
bloco no poder, como ao nível da desorganização10 das classes populares ' que
Salazar erigiu a Nação a um estatuto suprapartidária e supraclassista:
arrancar o poder às clientelas partidárias; sobrepor a todos os
interesses o interesse de todos ' o interesse nacional; tornar o
Estado inacessível à conquista de minorias audaciosas, mas mantê-lo
em permanente contacto com as necessidades e aspirações do País;
organizar a Nação, de alto a baixo, com as diferentes manifestações
de vida colectiva, desde a família aos corpos administrativos e às
corporações morais e económicas, e integrar este todo no Estado, que
será assim a sua expressão viva ' isto é dar realidade à soberania
nacional (Salazar citado em Henriques, 2010: 152).
Esta capacidade do Estado Novo em dar coesão política às classes dominantes
encontrou destaque na racionalidade política de atender à pressão dos
interesses (Rosas, 1994: 248) entre os lobbiesda grande agricultura
cerealífera, orizícola ou lanígera dos campos do Sul, as economias
industriais e aos circuitos comerciais a jusante, bem como na regulação dos
conflitos de interesses entre a produção nacional e o comércio internacional ou
colonial (idem, 1994: 247-248). Lógica que se manteve até ao último decénio do
regime como quando o autor discorre sobre a articulação que, nos anos 60 e 70,
o regime vinha fazendo entre uma burguesia industrial e financeira em
crescimento e uma agricultura latifundiária em crise interna11. Rosas
fundamenta que o crescimento sem precedentes da produção e do produto
industrial, que passa a ser um elemento claramente motor da evolução do PIB, e
a capacidade da iniciativa privada na dinamização empresarial do seu tecido
industrial, faz com que a taxa média de crescimento do investimento da
agricultura entre 1958 e 1973 seja de 15% anuais, justifica a afirmação de
que, durante este período, o sector (da agricultura latifundiária, nota nossa)
foi considerado como perdido para a causa do desenvolvimento (idem, 1994: 467-
468)12. Quer dizer, a sustentação de uma forma arcaica de produção (não
plenamente) capitalista nos campos do Sul do país passava pelo apoio económico
direto do Estado, como forma a preservar a unidade política do bloco no poder
de então.
Para terminar esta secção, assinale-se que as linhas políticas fundamentais do
Estado fascista português consistiram na unificação política (não confundir com
fusão) de diferentes frações da classe dominante. A Primeira República (1910-
1926), onde se assistiu à ascensão das burguesias industrial, comercial e
bancária na hierarquia do bloco no poder, não conseguiu nunca concertar
politicamente estas últimas com os latifundiários, onde, entre outros, os
conflitos com a hierarquia da Igreja Católica ' historicamente vinculada aos
senhores da terra ' deram azo a múltiplos conflitos políticos no seio das
classes dominantes. Desse ponto de vista, o conflito clericalismo/
anticlericalismo afigurou-se como uma expressão da cisão existente nas classes
dominantes entre uma burguesia industrial republicana e uma aristocracia
latifundiária conservadora e tradicionalista. Só o fascismo conseguiu amortecer
as contendas e criar um certo consenso entre as várias frações de classe.
Por seu turno, o alçar da grande burguesia industrial e financeira à hegemonia
política no país foi uma das consequências mais fortes do fascismo português,
sem com isso quebrar a unidade do bloco no poder fascista. Vejamos, então, como
o Estado Novo foi um ator privilegiado na escalada daquelas ' sem nunca
comprometer o futuro do latifúndio ' e na expansão das relações económicas
capitalistas, condições básicas e indispensáveis para o revigoramento da
acumulação de capital, peça-chave do metabolismo económico contemporâneo.
2. O Estado Novo e o grande capital monopolista
Sobre a relação do regime do Estado Novo com as classes dominantes da época
importa reter a ideia que na maioria dos países em que triunfou, o fascismo
representou, de facto, um desenvolvimento das relações capitalistas de produção
( ), promovendo a reprodução alargada das condições da produção capitalista, ou
seja, reforçando a exploração e a dominação de classe (Poulantzas, 1970: 98).
A fusão do capital bancário com o capital industrial (formação do capital
financeiro), a concentração da produção e de capitais e a maturação e
crescimento de grandes capitães da indústria são três exemplificações de como o
fascismo português promoveu o desenvolvimento das relações económicas
capitalistas e o grau de acumulação de capital das classes dominantes. Antes de
nos debruçarmos mais detidamente no caso português apresentemos, de forma
breve, o que se passou na Alemanha e na Itália. Por motivos de espaço e de
circunscrição do nosso objeto de estudo iremos focar a análise no eixo da
concentração da produção e de capitais. Assim, naqueles países,
a recuperação industrial depois da crise de 1929 foi mais vincada na
Alemanha do que em qualquer outra parte do mundo. Em 1939, a produção
industrial cresceu 26% acima do que o anterior ponto alto de 1929, e
mais do que dobrou desde 1933 (um dos anos de maior impacto da Grande
Depressão na Alemanha, nota nossa). Em 1938, a Alemanha produziu 22,5
milhões de toneladas de aço, contra as 16 milhões de 1929; a
extracção de ferro multiplicou-se por mais de 2,5 vezes. Referente a
Itália, a recuperação industrial entre 1922 e 1929 foi a mais forte
na Europa capitalista: o índice da produção industrial total, tomando
o ano de 1938 a referência 100, mostra que em 1922 essa produção era
menos de 60, atingindo os 90 em 1929. Caiu para 70 em 1932 por efeito
da crise (da Grande Depressão, nota nossa). A recuperação deu-se
novamente com grande fôlego depois da crise. Não igualou o ritmo da
Alemanha, mas superou claramente o ritmo francês: 86 em 1935, 100 em
1938, 109 em 1939. Entre 1922 e 1929, a produção de ferro cresceu
seis vezes, a de aço 2,2 vezes e de energia eléctrica cresceu cinco
vezes (Poulantzas, 1970: 99).
Por aqui se pode observar o impacto do fascismo italiano e alemão no
crescimento económico vigoroso em setores de ponta da época, nomeadamente a
indústria siderúrgica. Este crescimento foi acompanhado por um processo de
clara concentração de capitais e de inequívoco reforço do poder económico das
classes dominantes.
Referindo-se à Alemanha nacional-socialista, Charles Bettelheim apresenta um
conjunto de dados que ajudam a corroborar a tese de que o Estado fascista
permitiu, naquele contexto, elevar os níveis de acumulação do capital e
reforçar a dominação de classe do grande capital. Em primeiro lugar, o número
absoluto de empresas no período de 1933 a 1937, portanto, no momento em que a
recuperação económica da Grande Depressão já se tinha iniciado, diminuiu na
ordem dos 9%. Ou seja, das 361866 empresas existentes em 1932, cinco anos
depois sobrevivem apenas 31598 unidades produtivas (Bettelheim, 1971: 76). Ao
mesmo tempo, entre 1936 e 1939 vê-se as sociedades com um capital social
superior a 20 milhões de marcos passarem de 18 a 25 e as que tinham entre 5 a
20 milhões de marcos subirem de 92 a 104. Por seu turno, inúmeras sociedades
com um capital social com menos de 5 milhões de marcos fecharam, com particular
destaque para as pequenas sociedades até 500 marcos, de 500 a 5000 marcos e de
5000 a 20000 marcos que viram falir, respetivamente, 57%, 54% e 55% do seu
contingente inicial (idem, 1971: 79). Para Bettelheim, o Estado nazi contribuiu
decisivamente para o processo de entrega de inúmeras empresas e bancos com
participação do Estado ao grande capital germânico. Mesmo as empresas
municipais foram vendidas ao capital privado, o que permitiu ao capital
monopolista reforçar as suas posições, notadamente nas indústrias da
eletricidade e do gás (idem, 1971: 129).
Em Portugal, o fenómeno foi, em termos estruturais, muito semelhante.
Aproveitaremos os dados fornecidos por autores de distintas balizas teóricas
para dar conta do caráter intrinsecamente capitalista do Estado Novo. Para
Fátima Patriarca, a relação do grande patronato com o regime foi sempre de
concertação e da busca de consensos.
"Os patrões falam alto e com segurança ao Estado. Se reconhecem ' e
pedem ' que este intervenha numa série de domínios, se aceitam até a
sua superior orientação, se se mostram dispostos a com ele
colaborar no sentido de encontrar soluções para a depressão
económica, não deixam também de marcar bem as distâncias, as
fronteiras e os limites. Ao Estado cabe tomar medidas que protejam,
favoreçam e fomentem a indústria nacional, proceder aos estudos base,
criar as infra-estruturas que esta precisa. Mas a intervenção do
Estado deve terminar aqui. A actividade produtiva cabe, por inteiro e
em exclusivo, assim o desejavam os grandes industriais, à
iniciativa privada (Patriarca, 1995: 137).
A ligação e a intimidade do grande capital com o fascismo português é, aliás,
anterior à própria Constituição que institucionaliza o regime do Estado Novo. A
4 de março de 1932, a Associação Industrial Portuguesa (AIP) endereça uma
exposição ao então Ministro das Finanças, Oliveira Salazar, dando nota das
posições da confederação patronal sobre a globalidade das medidas
governamentais anunciadas pelo Conselho de Ministros em 24 de fevereiro do
mesmo ano. Nessa exposição, o patronato informa que
a protecção aduaneira; a possibilidade de estabelecimento de
contingentes de importação; a denúncia dos tratados ou convenções de
comércio existentes e a celebração de novos quando a protecção pautal
se mostre deficiente; o barateamento do crédito; as medidas de
incremento a trabalhos públicos para combater o desemprego; a
protecção dispensada à cultura do algodão em Angola são tudo medidas
que os industriais da AIP aplaudem e qualificam de grande estímulo
(AIP in Patriarca, 1995: 174-175).
O interesse destas citações relaciona-se com o facto de que evidenciam a
concertação global de interesses entre o regime fascista do Estado Novo e o
grande capital, mesmo durante os primeiros anos do regime, período a que se
refere o estudo de Patriarca. A autora que temos vindo a citar tira a seguinte
conclusão sobre esta questão:
é indubitável que os patrões foram vendo satisfeitas muitas das suas
reclamações. Tinham conseguido o saneamento financeiro, com a
inerente diminuição das despesas públicas e o rigor orçamental nas
contas do Estado. Haviam reivindicado e obtido o condicionamento que
limitasse e regulasse a concorrência interna e vão conseguir, depois,
a sua melhoria. Tinham reclamado e conseguido as pautas que os
protegiam da concorrência externa. Haviam reclamado e obtido dinheiro
mais barato, uma tributação mais gravosa ( ) e vão conseguir acordos
de comércio com países estrangeiros que lhes são mais favoráveis.
Tinham batido contra a industrialização das colónias e acabariam por
ver o seu ponto de vista consagrado: estas iriam constituir, antes de
mais, fonte de matérias-primas e um escoadouro para a produção
metropolitana. E, tão importante quanto esta longa lista de
benefícios, haviam conseguido o mais desejado dos bens: ordem nas
ruas e paz nas empresas (Patriarca, 1995: 646).
Por sua vez, Fernando Rosas, estudando a estrutura económica portuguesa dos
anos 30, deteta que, sob uma aparente pulverização global das empresas
industriais, a estrutura industrial dos anos 30 e 40 conhecia, em vários
sectores, um processo de concentração espontânea13 ou de monopolização/
cartelização administrativa que permitia identificar claramente uma elite de
capitães da indústria (Rosas, 1994: 67).
Pela leitura das observações deste autor subentende-se que não se pode falar
numa intromissão do Estado nos assuntos da sociedade civil, ou o mesmo é dizer,
na esfera da iniciativa privada. Na verdade, para lá de todo o discurso liberal
expresso nas palavras das associações representativas e dos intelectuais mais
próximos da grande burguesia, a realidade era que o corporativismo inscrito na
matriz constitucional do Estado Novo não era contrariado pelas classes
dominantes:
o Estado regulava tudo, ou quase tudo: dimensão mínima das empresas,
cotas de produção, normas de produção, cotas de consumo de matérias-
primas, preços desde o produtor ao consumidor, autorizações de
importação, preços de exportação, etc. Pouco ficava para a
autodirecção e para a iniciativa própria dos empresários. No
fundo, nem os empresários contemplados com a organização corporativa
o desejavam: era exactamente nos sectores onde falhara a
autodirecção, o cartel privado, que era reclamada a intervenção
corporativa do Estado, isto é, a cartelização e disciplina
obrigatória. Na conjuntura de crise na primeira metade dos anos 30, a
maioria dos industriais e os grandes agrários reclamavam não por
autonomia, mas pela autoridade do Estado, pela força que impusesse
os remédios e as arbitragens que eles, por si só, não estavam em
medida de aplicar, quer contra o movimento operário, quer contra si
( idem, 1994: 255).
Nesse sentido, a Lei da Reconstituição Económica de 1935, os Dois Planos de
Fomento (1953-58 e 1959-60) e o Condicionamento Industrial, conforme firmado na
Lei nº 1956 de 1937, são pacotes legislativos sem os quais o processo de
desenvolvimento das forças produtivas e os mecanismos de acumulação de capital
seriam uma miragem. Sobre o Condicionamento Industrial vale a pena referir que
este se pautava por ser um estímulo à implementação ou defesa da concentração
e, por outro lado, permitiu às principais empresas auferir uma renda
diferencial que reforçou a sua capacidade hegemónica no ramo, isto é, a
constituição de cartéis solidamente dirigidos por núcleos restritos das
principais empresas em cada sector (Rosas, 1994:257). Paralelamente, todo este
conjunto de medidas ajudou ao processo de concentração de capitais.
Em 1972, 16,5% de todas as empresas industriais asseguravam 73% da
produção industrial ( ). Em 1973, as sociedades anónimas ' que
representavam somente 5,7% de todas as sociedades ' concentravam 75%
de todo o capital societário e 40% do pessoal e obtinham 46% do total
das receitas das sociedades ( idem, 1994:468). Por conseguinte, em
Abril de 1974, a economia portuguesa era dominada por quarenta e
quatro famílias, na sua maioria controlando os sete grandes grupos
financeiros. Estes grupos controlavam: quase totalmente, quatro dos
mais importantes sectores industriais quanto os níveis de
produtividade, taxa de lucro e capacidade tecnológica (cerveja,
tabacos, papel e cimento); maioritariamente, os sectores industriais
básicos (siderurgia, indústrias químicas, construção e reparação
naval e metalomecânica pesada); o sector bancário e segurador; a
maioria dos transportes marítimos (grupo CUF). Os sete magníficos,
para além das trezentas empresas que detinham, dominavam as oito
maiores empresas industriais e cinco das principais empresas
exportadoras (idem, 1994: 470-471).
Para terminar, vejamos o que uma das investigações historiográficas mais
recentes nos apresenta sobre o mesmo assunto. O artigo Inflação e contratação
colectiva (1968-1974) de Ricardo Noronha representa um bom exercício de
utilização de um objeto de estudo específico para, por um lado, retratar o
vértice de poder económico no fascismo português e, por outro, evidenciar as
danças ritmicamente distintas dos diversos agentes sociais nas contendas e
conflitos então decorrentes, nomeadamente num contexto de crise do regime.
Contendas sociais e conflitos políticos necessariamente dotados de distintas
forças e impactos no tecido social e económico do país, de acordo com a sua
proveniência de classe. A escalada inflacionária ( ) foi então abordada como a
expressão de uma crise mais geral e profunda, que não se limitava a uma
dimensão estritamente monetária (Noronha, 2010: 233).
Com efeito, Noronha vai articular um fenómeno específico ' a escalada
inflacionária no período final do Estado Novo ' com características
estruturantes do regime, a saber, a relação do regime com as classes
dominantes. Na relação determinante da conexão do regime com a grande burguesia
de então,
destacavam-se claramente, no conjunto da economia portuguesa, sete
grandes grupos empresariais: Banco Nacional Ultramarino, Banco
Fonsecas & Burnay, Champalimaud, CUF, Banco Espírito Santo e
Comercial de Lisboa, Banco Português do Atlântico e Banco Borges
& Irmão. Em 1973, das 411 empresas com volumes de vendas
superiores a 30 000 contos, 300 pertenciam a este núcleo
monopolista que, para além do controlo sobre matérias-primas
fundamentais e indústrias de base, passara a dominar os principais
meios de transporte e o sector financeiro (80% da banca e 55% dos
seguros). Controlava ainda: 8 das 10 maiores empresas industriais e
metade das empresas com capital superior a 500 000 contos; as cinco
principais empresas exportadoras; os quatro sectores industriais com
maior produtividade, taxas de lucro e capacidade tecnológica
(cerveja, tabacos, papel e cimentos); as indústrias de base
fundamentais (energia, química, construção e reparação naval,
siderurgia e metalomecânica pesada). A articulação entre o sector
financeiro e a indústria assumiu um papel decisivo para a
configuração destes conglomerados, formados a partir da expansão de
grupos de base industrial que procuravam estender o seu controlo ao
sector bancário, ou de grandes bancos comerciais que multiplicavam e
diversificavam os seus investimentos industriais (idem:236-237).
Como corolário lógico, a banca comercial era o ponto de encontro de vários
problemas e tensões acumulados pela formação social portuguesa no seu processo
de industrialização (idem: 238), evidenciando-se a orientação do regime em
prol dos processos contemporâneos e capitalistas de concentração e
centralização de capital. Em sintonia, o argumento de Noronha contribui,
igualmente, para rejeitar a noção de Salazar como um ditador meramente ligado
ao meio rural e sem pontes com os setores mais modernos e dinâmicos da
burguesia portuguesa de então.
O agrupamento dos dados recolhidos adquire semelhanças e, em todos os autores,
denotam-se duas grandes tendências similares e constitutivas de uma
modernização capitalista da época: a) reforço do poder dos grandes grupos
económicos na esfera da produção e circulação de bens e de capitais; b)
concentração de capital e polarização da riqueza. Por outras palavras, a base
material de sustentação do regime fascista situava-se, precisamente, nas
relações capitalistas de produção, pré-existentes a 1933, mas desenvolvidas e
expandidas com o Estado Novo. Naquele contexto histórico, um não vive sem o
outro. O estado de desenvolvimento da organização social, política e económica
capitalista, bem como a crise sistémica que a atravessou, criaram condições
ótimas para o surgimento e amadurecimento do fascismo. Por sua vez, esta forma
de Estado e de regime político desenvolveu, notoriamente, dinâmicas
intrinsecamente capitalistas como a expansão das relações de produção (trabalho
assalariado) na agricultura e na indústria, ou a concentração e centralização
de capitais. Assim, em termos substantivos, os dados disponíveis evidenciam que
não havia apenas uma relação de mútuo relacionamento benéfico entre duas
instâncias distintas e independentes, mas se constituiu uma unidade social
entre as instâncias política e económica, onde cada uma delas era dotada de
especificidades próprias e de uma autonomia relativa. Contudo, essa autonomia
relativa existia no seio de um macro mundo social mais vasto, tornando a
manifestação histórica de cada uma das duas instâncias (o regime político
fascista e a economia capitalista de então14) como duas componentes essenciais
e recíprocas de um único tabuleiro sócio-histórico. Por conseguinte, cada uma
das instituições foi indispensável e necessária à outra naquele período
histórico específico da vida nacional e europeia.
Considerações finais
O Estado Novo português (se se incluir o breve período da ditadura militar de
1926 a 1933) foi a ditadura com maior duração histórica da Europa do século XX.
E se esse facto foi, em boa parte, conseguido por via da repressão física e da
desorganização política e ideológica de boa parte das classes populares
portuguesas, não pode deixar de assumir relevo o papel do regime para a coesão
interna entre as elites políticas e as classes (economicamente) dominantes do
país. Na Primeira República, as disputas entre as frações agrária/latifundiária
e industrial resultavam em constantes conflitos, derrubes de governos ou mesmo
golpes de Estado (lembre-se o caso de Sidónio Pais, precursor do fascismo em
Portugal, que ascendeu ao poder em 1917 por via violenta e foi derrubado no ano
seguinte), pelo que o Estado Novo português surgiu como uma solução radical,
violenta, mas consensual entre os grupos situados no topo da sociedade
portuguesa de final dos anos 20. Em simultâneo, essa coesão política, por via
da pacificação dos conflitos e por via da ascensão paulatina e gradual da
burguesia industrial a fração hegemónica na estrutura económica do país,
permitiu o próprio desenvolvimento económico sob bases capitalistas sem
demasiadas contrariedades ou sobressaltos. Pelo menos até ao final da Segunda
Guerra Mundial, onde o regime fazia parte de uma constelação europeia de
ditaduras e enquanto as lutas operárias (a partir dos anos 40) e estudantis
(dos anos 60 em diante) não iam abrindo fissuras nos processos de legitimidade
política do poder instituído.
Por conseguinte, um conjunto de fenómenos políticos complexos como a
instauração e edificação do fascismo em Portugal, corporizado na figura
política do regime do Estado Novo, não decorreram tão-somente no plano
propriamente dito da política. Com efeito, o impacto na estrutura
socioeconómica foi, indubitavelmente, relevante como se buscou demonstrar acima
nas duas secções centrais deste trabalho. De facto, como a secção II procurou
evidenciar com particular ênfase, o fascismo mais do que uma necessidade do
capitalismo em geral, foi em simultâneo: a) uma necessidade (ou, se se
preferir, a via mais provável) decorrente da evolução dos processos de difícil
institucionalização da Primeira República e do capitalismo português de então
e; b) o catalisador do aprofundamento estrutural de dinâmicas capitalistas na
formação socioeconómica portuguesa.
Desse modo, podemos perspetivar o regime ditatorial do Estado Novo não como um
mero epifenómeno da economia, mas como uma demonstração de como o campo
político detém um grau considerável de autonomia relativa, comunicando e
ajudando na própria configuração da estrutura económica. No caso concreto do
Estado Novo português, dinâmicas como a formação de uma burguesia financeira
detentora de participações na área bancária, financeira, comercial e industrial
e que concentrava uma significativa parte do PIB nacional só foi possível no
contexto desse regime político.
A perspetivação destes processos políticos e socioeconómicos revela tanto, no
plano da realidade social então vigente, para as condições e desafios
económicos colocados às classes dominantes portuguesas da época, como, no plano
teórico, para a superação de noções de senso comum assentes na atribuição de um
exclusivo e linear ruralismo ao regime de Salazar e Marcelo Caetano ou de que o
Estado Novo pouco ou nada se relacionaria com as classes sociais e com a
própria configuração e evolução do capitalismo português no século XX.
Notas
1 Investigador do Instituto de Sociologia da Faculdade de Letras da
Universidade do Porto (FLUP) (Porto, Portugal). E-mail:
joaovalenteaguiar@gmail.com
2 Em português, esquadrões de ação. Milícias fascistas italianas que cometiam
atos de vandalismo e violência gratuita contra operários e dirigentes políticos
de esquerda nas ruas e nas fábricas.
3 Numa recente investigação, Nuno Domingos e Victor Pereira defendem a
necessidade de se ultrapassar as questões que se tornaram hegemónicas em
Portugal, como saber se o salazarismo era ou não fascista (Domingos e Pereira,
2010: 22).
4 De facto, não existe Estado sem uma dimensão funcional e sem uma dimensão
institucional. Sobre esta última, Codato chama a atenção que o Estado é,
igualmente, e em complementaridade, entendido como uma instituição subdividida
em um sem-número de aparelhos, capaz de tomar decisões e de alocar recursos
(Codato, 2001: 25). Para um estudo da dimensão institucional propriamente dita
do Estado Novo vd. (Aguiar, 2008).
5 A classe surge-nos como uma referência central para a compreensão dos vários
regimes fascistas. Apesar de central, tal não pode levar a um qualquer
exclusivismo teórico na avaliação desses regimes políticos.
6 Para o melhor e para o pior, os verdadeiros pontos fortes do fascismo
estarão sempre nas classes médias (De Felice, 1975: 279).
7 O historiador português João Bernardo tem sido um dos raros autores que tem
relacionado criativa mente o fenómeno político fascista com a dinâmica das
classes sociais, nomeadamente em torno da dialética operada entre os princípios
de auto-organização (das classes dominantes) e de hetero-organização (da classe
trabalhadora por intermédio das primeiras): o fascismo define-se como a mais
ambígua das formas políticas, e portanto a mais artística de todas elas. O
fascismo não se limitou a desnaturar instituições criadas pelas lutas coletivas
e ativas e a transferi-las para a esfera do Estado, mas transportou para o
quadro genérico da opressão o próprio tema da revolução. A revolta no interior
da coesão social pressupunha que se tivesse levado a um ponto extremo a
dissolução de quaisquer formas de auto- organização, para em seguida hetero-
organizar os trabalhadores, obrigando-os a subordinarem-se sem falhas à
hierarquia do capital. Se os meios clássicos da política burguesa se revelavam
incapazes de levar a cabo a recuperação das instituições que os trabalhadores
haviam criado no seu âmbito próprio, então surgiam os fascistas (Bernardo,
2003: 32).
8 Nada do que aqui se expõe corrobora qualquer tipo de afirmação que prime pela
ausência de mobilização das classes populares contra o regime. A contestação ao
regime ancorou-se de sobremaneira no operariado fabril da cintura industrial de
Lisboa (Ferreira 2012; Marques 2007) e no operariado agrícola alentejano
(Aguiar, 2010: 169-229; Pereira, 1976). Todavia, o regime do Estado Novo foi
amplamente eficaz na desorganização política do pequeno campesinato nortenho.
Desorganização política que se espelhava tanto no nível propriamente político '
em que a mobilização política do campesinato durante a ditadura foi uma exceção
' como no nível ideológico-cultural ' dado o impacto profundo do repertório
naturalista e conservador da produção ideológica do regime no seio daquela
classe social (Melo, 2001; Alves, 2010; Félix, 2003; Ramos do Ó, 1999). Este
fenómeno de desorganização do campesinato foi particularmente visível no facto
de esta classe social, em primeiro lugar, ter sido a mais numerosa na formação
social portuguesa até ao início dos anos 60, algo que por si só, garantiu
alguma base social de apoio ao regime. Correlativamente, e em segundo lugar, o
duplo facto de o campesinato ter sido politicamente desorganizado e de ser uma
força social quantitativamente relevante, fez com que se tornasse muito difícil
estabelecer uma aliança política entre o operariado (sobretudo do sul do país)
e o conjunto de pequenos e médios proprietários agrícolas nortenhos. Ao mesmo
tempo, o facto de persistir, se bem que de modo variável, um operariado
contestatário ao regime ditatorial, não é de menosprezar a legitimação política
e ideológica do Estado Novo junto de camadas operárias desinseridas dos
mecanismos de mobilização coletiva, tanto ao nível propriamente reivindicativo,
como ao nível político de recusa do regime.
9 Ou seja, fenómenos como a concentração económica de capital em larga escala
ou a formação de uma burguesia financeira moderna, duas dinâmicas nucleares de
qualquer economia contemporânea, só foram possíveis na formação socioeconómica
portuguesa por via da política económica do Estado Novo, nomeadamente as leis
do Condicionamento Industrial, do corporativismo e dos Planos de Fomento.
10 Neste ponto, não podemos deixar de registar as diferenças registadas entre a
nossa perspetiva e a de Braga da Cruz. Quando este autor defende que o regime
de Salazar desejando-se popular', não assentou a sua força em massas
politicamente atuantes ou organizadas, nem delas pretendeu colher a própria
legitimidade (Cruz, 1982: 794) (itálicos nossos), torna-se difícil concordar
com a segunda parte desta afirmação. Se qualquer regime político necessita de
operar e de desenvolver mecanismos de legitimação política, como uma ditadura
poderia fugir a essa dimensão? De facto, como ampla literatura tem demonstrado
(vd. Nota 8), a criação pelo regime de uma mundividência camponesa travejada em
torno de princípios de naturalização e de essencialização de uma condição
humilde, simples e pretensamente desligada de mecanismos classistas, criou uma
colagem simbólica entre o regime e as massas camponesas.
11 De acordo com Hélder Fonseca, o atraso na agricultura portuguesa dos campos
do Sul, desde o século XIX e que se prolongaria pelo século XX, deveu-se, de
sobremaneira, à pouca aplicação de maquinaria na produção agrícola, portanto,
onde os mecanismos relativamente obsoletos da mais-valia absoluta prevaleceram
sobre a modernização tecnológica e de elevação da produtividade laboral que a
mais-valia relativa implica: no plano tecnológico, poder-se-á admitir que o
ritmo de modernização não decorreu a uma grande velocidade ou que o
investimento realizado em capital fixo não foi o mais adequado à escala das
suas explorações (Fonseca, 1998: 530).
12 Em 1973 a indústria produz quase metade do PIB, contra 11,3% da
agricultura, que representara o triplo em 1950: a produtividade da agricultura
evoluíra a um ritmo de cerca de metade do resto da economia (Amaral, 1994:
898). Todos os dados estatísticos conhecidos, coligidos por autores de
distintas orientações teóricas, demonstram o papel do regime do Estado Novo na
modernização capitalista. Modernização capitalista expressa ao nível da
ultrapassagem do setor agrícola (no caso português, assente nos mecanismos da
mais-valia absoluta) pelo setor industrial que, tendencialmente, incorporou
dinâmicas de elevação da produtividade do trabalho, mesmo que, como
corretamente argumentam alguns autores, constata-se facilmente que a economia
continuou a depender de setores com baixa produtividade e pouco valor
acrescentado. Foram esses setores de produtividade baixa que mais cresceram
(Costa et al., 2011:206). Continuando, mesmo que bastante relativa, a
modernização económica empreendida pelas políticas protecionistas de
condicionamento industrial e de cartelização permitiram uma ascensão da
burguesia industrial e financeira no bloco no poder das classes dominantes
portuguesas. João Martins Pereira deu conta dos traços fundamentais da
modernização capitalista: talvez possa aventar-se a hipótese de que um
capitalismo burocraticamente enquadrado e corporativamente organizado ( )
industrialmente frágil e caseiro', começa aqui, por iniciativa do próprio
Estado, a dar lugar a um outro (capitalismo) em que terão um papel de relevo um
conjunto de grandes grupos financeiro-industriais e as ligações crescentes aos
mercados (e investidores) internacionais (Martins Pereira, 2005: 236). Como
Miriam Halpern Pereira (1979: 31) já defendia no final dos anos 70, o Estado
Novo conseguiu que a industrialização da economia portuguesa fosse possível sem
uma transformação do latifúndio numa propriedade capitalista clássica. Por
conseguinte, as teses em torno de um pretenso arcaísmo ruralizante por parte de
Salazar têm muito mais a ver com a produção ideológica do regime e menos com a
realidade económica efetiva. Em suma, o Estado Novo, no plano económico,
remodelou o capitalismo português, na medida em que, no plano político,
permitiu uma relativa coesão política entre as várias frações das classes
dominantes portuguesas. Portanto, o regime articulou os interesses dos
industriais e dos bancos com os da propriedade fundiária, nunca desmerecendo
uns e outros e mantendo um equilíbrio só possível pelo controlo estatal dos
mecanismos de determinação dos preços e pela distribuição de subsídios
generosos (Costa et al., 2011: 251).
13 Monopolização que se processava tanto espontaneamente como pela intervenção
direta do Estado, isto é, através da concessão do exclusivo da exploração de
certos setores ou serviços essenciais (Rosas, 1994:68). Este último processo
sublinha o papel do Estado fascista na própria formação da grande burguesia
industrial. No que lhes diz respeito, a burguesia industrial e os técnicos e
gestores de topo das grandes empresas da indústria, viam no Estado forte e
esclarecido, isto é, no regime do Estado Novo, a condição primeira de
desenvolvimento económico do país (Rosas, 1994: 89) (itálicos nossos).
14 Com isso não queremos afirmar que só através do fascismo se poderia
implementar e/ou fortalecer dinâmicas económicas de recorte capitalista. Na
verdade, o fascismo foi um caminho excecional para se atingir esses propósitos.
No caso português, tal facto só foi possível com o regime ditatorial, na medida
em que este conseguiu agregar politicamente as várias frações das classes
dominantes em torno de um projeto nacional de simultâneo incremento da
exploração económica das ex-colónias portuguesas em África (Angola, Moçambique,
Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe e Cabo Verde) e de conciliação entre uma
camada social agrária refractária à modernização da estrutura fundiária e uma
burguesia industrial que almejava a se tornar economicamente dominante no
espaço económico português. Relembre-se que a Primeira República portuguesa
(1910-1926) foi atravessada por inúmeros conflitos entre essas duas grandes (e
internamente heterogéneas) frações de classe. Também deste ponto de vista, o
fascismo estadonovista teve um papel relevante na unificação política das
burguesias agrária e industrial, algo que o regime da Primeira República nunca
foi capaz (Rosas e Rollo, 2010).