A inovação social como utopia renovada: o caso da Associação Humanitária
Habitat
1. Enquadramento e dimensões da inovação social
A inovação social é a proposta de uma via efetiva e criativa para a resolução
de problemas sociais, no sentido de melhorar o bem-estar social e promover o
desenvolvimento. A inovação social antevê-se como ativação dinâmica da relação
entre estrutura e agência, através da afirmação do papel do indivíduo na
sociedade, do poder de agência de indivíduos e organizações, e da incessante
capacidade humana para a reinvenção. Como nos diz Westley, como seres humanos,
quando cessamos de mudar, morremos, e da mesma forma, quando os sistemas
sociais param de mudar, tornam-se rígidos, e, mais vulneráveis a choques
externos (Westley, 2008: 1-2). As crescentes dimensões da exclusão social são,
justamente, um sintoma da rigidez do atual sistema socioeconómico.
A mudança social processa-se em ciclos de longa duração, de acordo com as
dinâmicas de resiliência dos sistemas socioecológicos, no constante
(re)equilíbrio das suas forças. Atualmente, assistimos a fortes desiquilíbrios,
na qualidade ambiental, na estabilidade das economias e dos sistemas políticos
e na justiça social, que comprovam a necessidade de mudança. Ora, a inovação
social vem propor uma mudança que restaura a capacidade de resiliência dos
sistemas, a partir da capacitação das populações, potenciando o seu capital
humano e social.
Nesse processo de capacitação, as organizações do Terceiro Setor assumem um
papel central, porém as suas iniciativas só serão efetivas na promoção de
desenvolvimento, se, em primeiro lugar, se centrarem nas pessoas com quem
trabalham ' ou seja, a adoção da máxima ' trabalhar com e não para ' e, em
segundo lugar, cooperarem ativa e produtivamente entre si e com as entidades do
setor público e do setor privado ' praticar o trabalho em rede.
Segundo Nilsson, a significância de um processo de inovação social mede-se não
só pela escala que atinge ' número de pessoas, área geográfica, como pelo seu
alcance ' capacidade de agitar diversas dimensões sociais, e, ainda pela
ressonância que provoca ' a intensidade com que capta a imaginação das pessoas
(Nilsson, 2003: 3). O alcance implica uma abordagem integrada dos problemas
sociais, percebendo que as suas causas são tão complexas como as formas que
assumem, estando frequentemente interligadas diferentes dimensões da exclusão
(ex: habitação degradada/insucesso escolar). A ressonância situa-se na
capacidade de uma iniciativa social captar a imaginação dos indivíduos, de
forma a integrar-se nas suas estruturas mentais, nas suas práticas sociais,
promovendo uma reinterpretação e uma apropriação da mensagem que favoreça a sua
reprodução. Estes três critérios são fundamentais na análise de qualquer
dinâmica de inovação social, visto que abrangem o seu potencial de difusão.
Embora a ação social ou serviços sociais sejam o domínio mais difundido, as
práticas de inovação social abrangem vários domínios da sociedade, desde a
economia à política, da tecnologia à ética, destacando-se as políticas sociais,
o desenvolvimento local e o planeamento urbano. A inovação social tem um
caráter fortemente abrangente, na medida em que são numerosos os fenómenos
socioecológicos que requerem a sua abordagem, a saber: o aumento da esperança
média de vida; o aquecimento global; a crescente diversidade cultural dos
países e das cidades; a agudização e o alargamento das desigualdades sociais; o
aumento de problemas de saúde de longo prazo; os problemas resultantes de
estilos de vida marcados pela abundância; as dificuldades na passagem à idade
adulta; a discrepância entre o crescimento económico dos países e a felicidade
das populações (Mulgan et al., 2007a). Todos estes fenómenos se demarcam pela
sua inerente complexidade que só pode ser abordada pelas conexões
interdimensionais dos problemas em análise, aliando a ação deliberada de
indivíduos e grupos com a emergência da oportunidade (Born et al., 2009) num
contexto de modernidade complexa.
O caso dos serviços públicos arreiga-se, em grande medida, com a capacidade de
interação efetiva entre a entidade estatal que os gere e as dinâmicas da
sociedade civil nas comunidades que deles usufruem. Segundo Charles Leadbeater,
a chave para a melhoria da qualidade de serviços públicos está na capacidade de
desenvolver soluções locais e baseadas em relações sociais funcionais. Grande
parte dos atuais problemas sociais resultam da disfuncionalidade das relações
que sustentam as comunidades, da qual o envelhecimento e a solidão a ele
associados são paradigmáticos. As soluções de peer-to-peertêm-se demonstrado
valiosas, justamente, porque um dos motivos que leva as pessoas a mudarem os
seus hábitos e comportamentos, seja deixar de fumar, ter uma alimentação mais
saudável ou fazer reciclagem, é o facto de respeitarem pessoas que conseguiram
fazer o mesmo (Leadbeater, 2009:5). A aposta neste tipo de solução impõe uma
flexibilização dos sistemas públicos, atualmente marcados por uma forte
centralização, racionalização e burocratização. Para tal, é necessário encarar
os serviços públicos, ao mesmo tempo, como prolongamento e como alicerce, das
relações sociais que sustêm o dia a dia das populações.
2. Modalidades de operacionalização da inovação social
Segundo Mulgan, o desenvolvimento de um processo de inovação social assenta em
três pilares estruturantes do sistema socioeconómico em que este se insira '
procura efetiva, oferta efetiva e estratégias efetivas. A procura efetiva é o
reconhecimento da necessidade social abordada por promotores diretos '
consumidores de produtos, de serviços ou voluntários ' e promotores indiretos '
patrocinadores, fundações. A oferta efetiva é a nova ideia gerada para
responder a essa (s) necessidade(s), e as formas de a operacionalizar e
expandir que lhe são associadas. As estratégias efetivas correspondem aos
financiamentos, aos agentes envolvidos e às metodologias de aplicação que
favorecem a absorção da inovação social pelos mercados. Este é, habitualmente,
o pilar menos estável, dado o número limitado de organizações e redes, assim
como de profissionais de gestão na área, que permita estabelecer comunidades de
prática, o que provoca a escassez de métodos e técnicas apropriados, levando os
promotores a sentirem-se amadores (Mulgan et al., 2007b: 5).
É recorrente a utilização das redes de cooperação como meio de difusão de
inovação social. Contudo, não basta apostar na sua função de transmissão de
informação e de plataforma de interação de capital social. A estrutura de
determinada rede é fundamental, na medida em que uma rede com demasiados elos
fortes poderá diminuir a diversidade de ideias e padrões, enquanto uma rede com
demasiados elos fracos poderá cair na dispersão e na perda de informação, é
assim crucial ter a mistura certa de bees and trees(abelhas e árvores: pequenas
e grandes organizações) (Moore e Westley, 2009: 21).
Para que uma inovação se consiga expandir nas redes sociais, há certas
condições que dependem das características da mesma. Podemos elencar as
seguintes: vantagem relativa; reduzida competição; capacidade de ser testada e
resultados comprovados; compatibilidade e complementaridade; simplicidade;
baixo preço e valorização de investimentos (Mulgan et al., 2007b: 14-15). Ora,
uma iniciativa que inclui, em si, criatividade e valor adicional relativamente
às alternativas existentes, estará seguramente em vantagem. Um projeto será
também melhor sucedido se operar num campo onde tem reduzida competição por
parte de outras ideias. Uma ideia que possa facilmente ser testada e comprovar
a sua eficácia atrairá mais facilmente promotores. Também uma ideia adaptável
ao contexto social e à tecnologia existente será mais rapidamente aplicada, por
implicar menores investimentos e ser articulável com projetos já em curso. Por
último, quanto mais simples, menos dispendiosa e financeiramente arriscada, for
uma ideia nova, maior será a sua capacidade de ser desenvolvida e de se adaptar
a diferentes contextos (Mulgan et al., 2007a).
Contudo, não podemos descurar a influência determinante de certos fatores
externos na efetivação das estratégias de crescimento de um projeto inovador,
como a disponibilidade de fontes estáveis de financiamento, incluindo para
situações que requerem maior nível de risco; o desenvolvimento dos níveis
intermédios das redes; a solidez do conhecimento e experiência na área da
inovação social, e o grau de incentivo à adoção de melhores performances em
modelos inovadores na gestão dos setores público e privado. As dificuldades que
os processos de inovação, geralmente, enfrentam são a falta de procura para
adoção de novos modelos de intervenção, por parte de entidades públicas ou de
outras organizações, a ausência de agentes intermediários que aproximem a
procura da oferta, a relativa ausência de recursos para investigação e
desenvolvimento na área social, a escassez de capital para gerar crescimento em
organizações sociais e a debilidade dos mercados de trabalho na área de gestão
(Mulgan et al., 2007b: 24).
A articulação daqueles pilares estruturantes pode processar-se num continuumde
possibilidades de desenvolvimento que vai do crescimento organizacional
(extremo de máximo controlo) à inovação sistémica (extremo de difusão não
controlada). O crescimento organizacional baseia-se na difusão de um processo
inovador pela transformação interna de uma organização que se expande como
órgão único ou através da criação de filiais. Já a inovação sistémica extravasa
os limites das organizações e difunde-se enquanto modelo ou comportamento
imbuído de princípios inerentes ao projeto social que lhe subjaz, como a
reciclagem, a formação contínua, a democracia parlamentar, etc. (Mulgan et al.,
2007b: 17).
Embora o crescimento organizacional seja das formas mais visíveis de promover
inovação, o caminho contrário, ainda que menos evidente, obtém resultados mais
frutíferos. Uma inovação social bem sucedida depende de várias
reinterpretações, por parte dos seus promotores diretos, dos beneficiários, dos
patrocinadores e do público em geral. Quando todo este processo de
reinterpretação é bem sucedido, o impacto da inovação atinge proporções que uma
inovação garantida por uma só organização nunca poderá atingir. Sendo o
objetivo último da inovação social mudar a forma como as sociedades pensam, é
necessário, em primeiro lugar, inserir a nova ideia nos valores, padrões
socioculturais e normas, nas estruturas mentais tipo e nas práticas sociais de
uma dada sociedade, de forma a que esta seja apropriada e reproduzida. Não se
conhecem casos de uma só organização ter produzido inovação sistémica, no
sentido em que é aqui compreendida (Mulgan et al., 2007b: 22-23).
3. A inovação social no Trilho da justiça espacial
Antes de mais, uma palavra sobre o conceito de justiça: interpretamo-lo aqui à
luz da perspetiva de John Rawls (2003). Sustenta Rawls que o princípio básico
da justiça é a garantia da maximização dos padrões mínimos de Bem-Estar ' o
princípio de maximin' a maximização dos mínimos sociais. Portanto, a existência
de desigualdade de oportunidades deve levar à ampliação das oportunidades
daqueles que tenham menos (Rawls, 2003). Este princípio baseia-se nos critérios
de diferença ' o reconhecimento de desigualdades sociais e económicas deve
resultar na atribuição de benefícios aos mais desfavorecidos e de liberdade '
cada um tem direito ao mesmo grau de liberdade que termina onde começa a
liberdade do outro, resultando que os graus de liberdade de cada um são
interdependentes.
Assim, a visão de Rawls afasta-se claramente das interpretações da justiça como
igualdade, assumindo declaradamente a existência inevitável de desigualdades
sociais. Contudo, as desigualdades só podem ser admitidas como consequência do
exercício de cargos e funções acessíveis a todos em condições de justa
igualdade de oportunidades. Podemos aqui fazer uma ponte para o ideal de
justiça afirmado no Manifesto do Partido Comunista, por Marx e Engels, tratar
igual o que é igual, tratar diferente o que é diferente, que, em curtas
palavras, expõe a necessidade de atribuição de benefícios àqueles cujas
oportunidades são mais limitadas (Marx e Engels, 1998 '21 de fevereiro de
1848).
A perspetiva de Rawls é analisada por Bret (2009), no sentido de compreender as
potencialidades do seu caráter universal na análise de realidades diversas.
Bret defende que a recusa do universal em favor de particularismos culturais
pode correr o risco de cair no relativismo ou no comunitarismo, a ponto que as
práticas sociais específicas ganhariam autoridade normativa, legitimando os
factos com a sua mera existência e, assim, negando a liberdade dos indivíduos
para lá do espaço-tempo em que vivem. Tendo em conta que, apesar das suas
diferenças, os seres humanos partilham uma mesma condição enquanto pessoas
morais e, portanto, o seu valor é universal. O caráter racional e o nível de
abstração inerente às propostas de Rawls são, para Bret, elementos
catalisadores da sua capacidade de alcançar validade universal. Bret aconselha,
pois, o discernimento entre ideias que contribuem para a ocidentalização do
mundo e a teoria de Rawls, que pretende avaliar o cumprimento dos princípios de
justiça como equidade em todo o mundo, incluindo no mundo ocidental (Bret,
2009: 41, 45).
O caráter racional das premissas rawlsianas permite-nos não só refletir sobre o
mundo, como agir sobre ele e transformá-lo, pois a ação é o objetivo último de
todo o pensamento. Ora, se observarmos a realidade da grande maioria dos
países, vemos facilmente que a maximização dos mínimos sociais não é eficiente,
as desigualdades sociais estão longe de aumentar as possibilidades dos mais
desfavorecidos. É sobre esta realidade, nomeadamente sobre as desigualdades em
níveis de desenvolvimento, que importa agir no sentido da mudança, respeitando
princípios universais de justiça. O conceito de justiça incorpora, assim, uma
dimensão de agência, uma componente prática de projeto em construção (Bret,
2009; Brawley, 2009: 27).
A noção de justiça espacial é entendida como a perspetiva integrada da justiça
social e política numa determinada área geográfica. A aceção espacial permite-
nos avaliar, tanto os resultados dos sistemas de redistribuição, como os graus
de acesso e participação nos processos de tomada de decisão, quer a nível
quantitativo, quer qualitativo. Permite-nos, ainda, transpor barreiras
disciplinares e propor metodologias de promoção da justiça e da democracia.
Analisando as realidades multiescalares a que vivemos, percebe-se claramente a
causalidade espacial da justiça, nomeadamente na face do desenvolvimento e do
subdesenvolvimento (Soja, 2009: 32-33).
Assim, se as principais questões a respeito do desenvolvimento concernem a
distribuição dos recursos e a organização das atividades socioeconómicas de
acordo com critérios de eficácia (capacidade de atingir objetivos) e eficiência
(capacidade de rentabilizar meios na prossecução de fins), a articulação entre
estes critérios deve adequar-se ao ideal de justiça como equidade (maximização
das oportunidades de todos, privilegiando os mais desfavorecidos, no sentido de
garantir a igualdade de oportunidades). A justiça assume-se como condição e, ao
mesmo tempo, como objetivo central do desenvolvimento, dando propósito aos
processos de decisão e planeamento público. Como aliás, o enuncia Marcuse, a
respeito do planeamento urbano: a justiça (a cidade justa) é o objetivo último
do planeamento, não um objetivo entre objetivos, e não apenas de vários planos,
mas do planeamento em geral (Marcuse, 2009: 49).
O conceito de desenvolvimento espacial é muito útil para estruturar uma
perspetiva integrada, dada a alocação geográfica das populações, dos serviços e
dos recursos. A dimensão espacial do desenvolvimento é inerente à constituição
das próprias sociedades, as geografias do desenvolvimento e do
subdesenvolvimento são espelho dessa realidade. É importante compreender a
amplitude de escalas de análise da espacialização do desenvolvimento ' local,
regional, inter-regional e global ' escalas que não são estanques, mas porosas,
inter-relacionando-se e sobrepondo-se em diversas dimensões (Figueiredo, 2010).
Enfim, é também no espaço que são mais visíveis as exclusões e as inclusões
(Guerra, 2002).
Para compreender o conceito de desenvolvimento espacial deve observar-se, antes
de mais, a dialética entre espaço e sociedade, space is place, ou seja, o
espaço é socialmente construído, assim como as sociedades são construídas no
espaço de tal forma que, como um espelho, o próprio espaço ganha identidade
social, reproduzindo as condições sociais que o moldaram (Soja, 2009). Citando
Castells, o espaço não é um reflexo da sociedade, é a sociedade (Marques,
2004: 9). Esta constante evolui mediante dois pilares estruturantes da própria
condição humana: a dualidade espaço-tempo e o binómio indivíduo-sociedade.
Quanto ao binómio indivíduo-sociedade, a condição de indivíduo implica ser
portador de determinados padrões sociais, inculcados através do contínuo
processo de socialização em que a consciência e a própria personalidade se
formam, integrando os valores, as normas e os comportamentos próprios a
determinada cultura, com determinada historicidade. Em processo recíproco, é
esse indivíduo portador de símbolos e de representações socialmente adquiridas
que tem o poder, não só de reproduzir, como de renovar significações e, com
elas, padrões de conduta. O património simbólico é produzido no domínio
intersubjetivo das relações entre indivíduos e grupos sociais que reproduzem e
modificam símbolos anteriormente construídos, nomeadamente, em torno de
determinados lugares. Assim se constrói socialmente o mesmo espaço, que,
tornado lugar antropológico, molda a interação dos indivíduos em sociedades
determinadas histórica e geograficamente.
A realidade que experienciamos, enquanto seres pensantes e produtores de
conhecimento, tem um caráter inevitavelmente espácio-temporal. A este respeito,
Massey fala-nos do caráter integrado da dualidade espaço-tempo, questão central
para os desafios atuais das ciências sociais (Massey, 1999: 7-8). Para o
compreender devemos percecionar as múltiplas temporalidades, as múltiplas
histórias que, interagindo entre si, na sua relação com a espacialidade, dão
forma ao futuro, um futuro que é construído, antes de ser predizível. Isto
implica pôr de parte o determinismo histórico e as conceções simplistas,
unitárias e/ou etnocêntricas da História, abrindo-nos horizontes para a
realidade multifacetada e o caráter aberto da própria história (Massey, 1999:
7-8). Após um século de tradição historicista, na última década tem-se
reconhecido o papel ativo do espaço na sua relação com as sociedades, enquanto
gerador de efeitos positivos e negativos sobre as populações (Soja, 2009).
Esta visão da justiça como o garante da liberdade económica, social e política
dos cidadãos enquanto esfera de realização plena do objetivo último do
desenvolvimento ' o Bem-Estar social é fundamental para o processo de mudança
sistémica que a inovação social preconiza.
4. A Associação Humanitária Habitat como referencial analítico
4.1. Enquadramento e descrição
A Associação Humanitária Habitat (AHH) é uma Associação sem fins lucrativos
centrada na temática da habitação e filial da Habitat for Humanity
International, (HFHI), uma ONG internacional cujo objetivo último é a
erradicação da pobreza habitacional. A HFHI foi fundada em Americus, na
Georgia, por Millard e Linda Fuller, um casal que trocou uma vida de luxo por
uma vida de serviço à comunidade, com o apoio de diversas congregações cristãs.
Com inspiração cristã e ecuménica, a Habitat professa a Teologia do Martelo n
pondo de parte as nossas divergências, podemos encontrar um território comum,
trabalhando em conjunto na construção de casas simples, dignas e acessíveis.
Porém, a Habitat não está vinculada a qualquer igreja em particular e inclui
nos seus princípios a não descriminação por raça, género ou religião (Fuller e
Scott, 1980).
Foi, justamente, o exemplo inspirador do casal Fuller, lido num artigo de
revista, que levou o seu gerador, empresário e antigo piloto, a reunir um grupo
de amigos para fundar a filial portuguesa a ' Associação Humanitária Habitat'
em 1996. As casas Habitat são, tanto quanto possível, construídas nas
localidades de residência das famílias, pois é tida em conta a importância das
redes locais de solidariedade social. O terreno é, na maior parte das vezes,
propriedade das famílias ou é doado por amigos, por familiares, pelos
municípios ou por outras instituições.
Hoje, a Habitat Portugal já realizou 25 construções de raiz, 9 reconstruções e
14 reparações que criaram alojamento digno para 174 pessoas no distrito de
Braga. Tendo obtido o título de Instituição de Utilidade Pública, em 2007, o
trabalho da AHH é reconhecido, mantém estreitas parcerias com o poder local,
empresas e instituições de ensino ' como veremos a seguir ' e tem sido alvo de
cobertura mediática por diferentes meios de comunicação social nacionais. Em
2010, iniciou-se o primeiro projeto no concelho de Amarante, em parceria com a
empresa de construção civil Mota Engil. Este passo poderá levar ao crescimento
daquela estrutura organizacional que atualmente se limita a um corpo
profissional de quatro pessoas, incluindo um estagiário e órgãos sociais
voluntários.
A pobreza habitacional é um problema global, mas com importantes
especificidades locais e dimensões socioculturais que apenas podem ser tratadas
com o envolvimento de todos os atores locais. Em todo o mundo, apenas nas áreas
urbanas cerca de 1 bilião de pessoas vive em pobreza habitacional. Em Portugal,
estima-se que 65% da população vive em habitação degradada (Habitat for
Humanity International, 2010). Nos Estados Unidos da América, a HFHI trabalha,
sobretudo, com comunidades urbanas marginalizadas. No nosso país, a AHH lida
com a pobreza escondida nas áreas semirrurais e peri-urbanas. Assim, a Habitat
apoia e encaminha as famílias que não cumpram os critérios de seleção, no
sentido de encontrarem apoio da Segurança Social ou outra solução habitacional.
Os critérios de seleção consistem na efetiva necessidade habitacional, no
compromisso de participar na construção e na capacidade de pagar uma prestação
mensal.
Estes critérios baseiam-se no primeiro pilar estrutural da metodologiada
Habitat que é trabalhar em parceria com as famílias, estabelecendo um
compromisso. A Habitat auxilia as famílias a construírem as suas próprias
casas, um pouco à imagem da autoconstrução apoiada, embora a quantidade de
trabalho das famílias seja reduzida, em comparação com o trabalho voluntário.
As famílias são também incentivadas a realizar voluntariado nas restantes obras
da Habitat4.
O segundo pilar estruturalda Habitat é o voluntariado. Todos os órgãos
diretivos5 são constituídos inteiramente por voluntários. Também 90% do
trabalho de construção é feito por voluntários locais e internacionais, ao
abrigo do programa Global Village (GV). Os voluntários GV, de uma forma geral,
perspetivam estas experiências como a sua contribuição para a equidade social e
como uma forma de conhecer realidades alheias e de criar ligações importantes
com as comunidades locais. O voluntariado local é, principalmente, estruturado
por dois programas ' o voluntariado escolar ' e o team building' programa de
voluntariado empresarial. Os voluntários a título individual são integrados nos
dias de construção de outras equipas e, noutras situações, formam pequenas
equipas para reparações que exijam menor número de pessoas. O voluntariado
local a título individual carece de estabilidade. Contudo, existe um grupo
significativo de membros regulares.
4.2 Representações de inovação social
Ao procurar perceber como era percecionada a identidade organizacionalpelos
vários atores6 e avaliar a sua associação com os princípios de inovação social,
encontrámos duas categorias, a definição da organização pela sua função social
ou pelo seu impacto na vida pessoal do entrevistado. Da mesma forma, os
entrevistados pronunciaram-se relativamente à mensagem da iniciativa em que
estavam envolvidos, ao motor/fundamento da mesma e à sua importância. Quanto à
mensagem, a AHH associa-a ao seu papel junto das famílias proprietárias, o
motor desta iniciativa é associado aos pilares enunciados pela literatura como
condições operativas para a difusão da inovação social, valorizando-se,
sobretudo, o trabalho em rede (a quase totalidade dos voluntários
internacionais identificou também o trabalho em rede como principal motor da
Habitat). Contudo, na análise dos momentos de observação participante,
perspetivámos a evidência da apropriação do princípio de trabalhar comno ritual
de início de dia de trabalho da equipa Global Villageobservada. Reunidos frente
à obra, após colocar o devido equipamento, os voluntários formam um círculo,
unem as mãos ao centro e logo as atiram ao ar dizendo It's not a hands out,
it's a hands up!(todos os elementos da equipa). O que se associa ao que uma
das voluntárias revela posteriormente, it works because its focused on the
people, I've seen other similar projects and the only ones who work are those
who focus on the people(12)7.
No que diz respeito à importância da intervenção, o nível de resultados diretos
é mais valorizado, devido à natureza material e palpável do seu produto, a
construção de casas, cujos efeitos são imediatamente visíveis. Assim, confirma-
se a reinterpretação da missão da Habitat na erradicação da pobreza
habitacional, concentrando a sua energia nesse objetivo que é, em si, um
processo. Vários membros da organização expressam uma forte consciência da
amplitude do papel social da organização, assim como manifestam partilhar os
princípios segundo os quais o projeto da Habitat se estrutura: trabalhando com
as famílias e não para estas, envolvendo os voluntários nesse trabalho, e
cooperando com empresas e instituições (é trabalhar em parceria com famílias e
instituições (I); deve ser empresas ali que ajudam... e depois têm pessoal
voluntário p'a fazer o trabalho, não é? (XV)).
Em seguida, procurámos perceber a dimensão interaccionalda AHH, isto é, a
efetividade da aplicação do princípio trabalhar com, tendo verificado que este
se expressa, particularmente, na perceção do problema pela população-alvo,
dominada pela defesa de maior cooperação entre o Estado e o Terceiro Setor (eu
acho que o governo devia ajudar estas associações (XI); o Estado podia ajudar
mais estas associações (XIII); o Estado não dar a estas associações, é uma
coisa que anda a fazer mal! Dão ajuda p'a muita coisa que não necessitava e
pr'ali que necessita não dão! (XV)). Esta revelação da forte consciência da
importância das Organizações do Terceiro Setor (OTS) e da cooperação do Estado
e das empresas com estas organizações demonstra que não é apenas a organização
a trabalhar comas pessoas, mas as pessoas beneficiadas a defenderem o papel
daquela no desenvolvimento.
Analisando a tabela_2, vemos como são valorizadas as relações estabelecidas no
seio desta iniciativa. A respeito das variações no grau de interação da
população-alvo com outros membros das organizações e do projeto em análise, as
limitações prendem- se com o contacto mais próximo das famílias, durante a
construção das casas, seguido de um contacto periódico e, sobretudo, realizado
com a comissão de famílias. Os efeitos percecionados por técnicos,
colaboradores e voluntários das relações criadas, nas representações da
população-alvo, de certa forma, são corroborados pela perceção da importância
da cooperação entre OTS, Estado e Empresas manifesta pela mesma, na medida em
que representa uma abertura de mentalidades, uma ampliação da consciência dos
papéis dos diversos agentes de desenvolvimento, que foi potenciada pelo
envolvimento com a AHH.
Relativamente à dimensão cívica, sobressai a valorização do papel de voluntário
, enquanto prática cidadã, sendo a figura mais presente nos discursos a do
voluntário internacional. Os atores entendem uma ordem individual e uma ordem
social de motivações para o voluntariado. Podemos dizer que a prática do
voluntariado as une de forma particularmente frutífera, no sentido em que o
indivíduo se autoajuda, se desenvolve como pessoa, ajudando o próximo. Os
motivos percecionados do voluntariado concentram-se na responsabilidade social
ou dever cívico (E sabem que estão a construir para que finalmente, aquela
família, aquelas crianças vão tar como eles estão, nas suas casas, não é?
(V)), chegando alguns a apontar o puro altruísmo (eu acho que uma pessoa que
tem bom coração que tem aquela vontade de ajudar, faz tudo e mais alguma coisa
em troca de nada! De uma boa amizade e... pronto! (XIII)) e na necessidade
individual (( ) há várias razões, até porque há vários tipos de pessoas a
fazer voluntariado ( ) a grande parte é porque têm ( ) outro tipo de trabalho
( ), então vêm p'ra fazer coisas diferentes ( ) (XVI)). A questão das
possibilidades financeiras é enunciada pelo facto de grande parte dos
voluntários nesta organização, os voluntários internacionais, despenderem uma
quantia considerável, não só na sua deslocação, mas no donativo entregue à
associação. Os principais motivos apresentados para a realização do programa de
voluntariado pelos voluntários internacionais são a ajuda ao próximo (Desire
to help others (E)), o exercício da responsabilidade social (volunteering for
a good cause (D)), a vontade de conhecer outros países (another chance for me
to see a new country (F)) e também a possibilidade de contribuir noutros
países (wanted to help a different part of the world (B)). Portanto, há uma
certa correspondência entre os motivos percecionados pelos voluntários e pelos
seus interactores.
Sendo o papel de voluntário associado à entreajuda, ele é aproximado à conceção
do papel de cidadão, particularmente pelo fundador da Habitat, que nos chama a
atenção para o papel ativo do indivíduo, para o seu poder enquanto agente de
mudança e para a importância da definição de objetivos e do exercício das
capacidades e das liberdades individuais (não conheço a palavra impossível,
nem 'não consigo'! ( ) Detesto ouvir. Proibi os meus filhos de me dizerem,
jamais, 'Não consigo, pai!' Porque a gente consegue... Resta ver que quantidade
de energia se põe para conseguir (VIII)). É justamente esta forte aposta no
poder de agência dos indivíduos que se baseiam as teorias da inovação e do
empreendedorismo social, as primeiras apontando, sobretudo, os atores sociais
alvo das intervenções como membros ativos da própria inovação, e as segundas,
focando o papel crucial de empreendedores que conseguem ver oportunidades onde
as dificuldades toldam a visão. Assim, é feita uma clara associação entre o
significado do voluntariado e a conceção do papel do indivíduo na sociedade,
com ênfase na ideia de entreajuda ou de ajuda ao próximo, associada ao
sentimento de partilha que une os seres humanos.
Na dimensão interorganizacionalanalisámos a perceção do funcionamento da rede
estabelecida pela organização, da importância da mesma e da sua associação à
conceção de desenvolvimento por parte dos atores. A tabela_4 mostra-nos a
perceção dos atores sobre a rede interorganizacional estabelecida; a sua
utilidade percebida centra-se na resolução dos problemas das comunidades.
Mostra-nos, ainda, a conceção de desenvolvimento expressa pelos entrevistados,
ficando clara a aposta na cooperação como via privilegiada para o
desenvolvimento, salientando-se a ponte entre a entreajuda entre indivíduos e a
cooperação interorganizacional.
Assim, se os efeitos percecionados da cooperação são, mormente, associados com
a resolução dos problemas das comunidades (aquela casa já não tá a cair, ou
aquela família já não tá a correr risco de vida, percebes? (V); em Palmeira
havia, em 96, 18 famílias em risco ( ) tamos agora a alojar uma, duma casa que
vagou, lá está, eram as 18 famílias que era preciso apoiar (VIII)), significa
que a importância desta cooperação é reconhecida (é muito importante que a
junta saiba, que o padre saiba, tudo o que sejam atores dentro da comunidade
saibam o que se tá a passar, para não haver a tal força de bloqueio ( ) (I);
(o poder local) qualquer coisa, apesar de saber que nem sempre os podemos
ajudar, já nos consultam( ) para saber ( ) como é que nós ( ) mesmo não estando
lá, como poderíamos ajudar a eles próprios tentarem solucionar alguns casos...
(V)). Sendo ainda identificados, minoritariamente, a continuidade do trabalho,
o aumento de fontes de financiamento e a ampliação da escala de ação e o
impacto desta nas comunidades. Aqui, faz sentido fazer uma ponte para a
perceção da população-alvo de que a melhor forma de solucionar o problema da
habitação seria haver maior cooperação entre o Estado, as OTS e as empresas. O
efeito de abertura das comunidades para o trabalho com associações e com as
próprias entidades de poder local, apontado por este técnico, é, de alguma
forma, confirmado por aquelas representações. Estes proprietários, realmente,
demonstram consciência da importância da participação de todos os atores na
resolução dos problemas (é sinal que as pessoas da freguesia também ajudam
e...a Junta também ter ajudado foi bom (XI); acho que o governo devia ajudar
estas associações (...) p'ra seguir os projetos p'ra frente porque isto é um
projeto rentável. Não de beneficio próprio, mas de benefício de ajudar o
próximo (XI)). Também os voluntários internacionais são quase unânimes em
afirmar a extrema importância da cooperação entre organizações, avaliando,
maioritariamente, a obra em que participaram entre importante a muito
importante para a comunidade. Porém, o seu conhecimento dos parceiros da rede
da AHH é limitado, sendo o conhecimento da rede da HFHI um pouco mais
abrangente.
Em suma, podemos compreender que a cooperação, o trabalho em rede, assume um
papel importante no seio desta associação, sendo reconhecido pela sua
população-alvo.
Na dimensão interescalarpretendíamos avaliar os efeitos da interação com a
dimensão global desta organização, particularmente a partir das experiências de
voluntariado internacional. Da avaliação da importância da interação glocal e
dos efeitos identificados, podemos perceber que as representações da população-
alvo foram afetadas pela interação com os voluntários internacionais, mas não
tanto no sentido introspetivo, e mais no sentido da extroversão, da descoberta
de novas culturas, da abertura a outras classes sociais e de uma maior
confiança na entreajuda entre seres humanos (é como aquele mundo que faz
assim, da Unicef...imaginei o mundo assim...isso quer dizer que há
entreajuda...não é? (XI)).
A perceção dos voluntários internacionais sobre a sua interação com as famílias
assenta no objeto de questionamento por parte das famílias: porque vieram eles
de tão longe para ajudar-nos?. Quanto à sua conceção do voluntariado
internacional, quatro dos onze entrevistados consideram que este implica
solidariedade internacional, apontando um deles que o programa Global
Villagelhes permite exercer a responsabilidade à escala universal da cidadania
(I think GV provides one with the opportunity to contribute first hand help to
others on a worldwide basis. It fulfills a responsibility much broader than
your country of citizenship (E)), ideia que é associada ao papel de cidadão
também por outro voluntário (Ative participant exercising a universal
responsibility to help (A)). O verdadeiro impacto do programa Global Village
nas famílias Habitat não estará, pois, na autorreflexão sobre o seu próprio
papel na comunidade, mas na reflexão sobre as fronteiras éticas, sociais e
geográficas que dividem os grupos humanos (uma pessoa que só tem isto e isto e
às vezes pensa que é mais que qualquer um e afinal não vale a pena ter (...)
porque a gente vê pessoas assim que são humildes e prontos p'ra ajudar quem
precisa! (XIII)). Aqui podemos perscrutar que, de acordo com as definições de
Allardt (1993), esta proprietária expressa que as diferentes oportunidades
quanto ao Ter, não devem impedir os cidadãos de Amar sem fronteiras e, assim,
Ser mais realizados e mais humanos.
5. A renovação de uma utopia ' ponto de chegada e pontes para o futuro
Porque desenvolver é planear, todo o ato de planeamento se depara com as
temporalidades e espacialidades que nos condicionam. Assim, pensar o
desenvolvimento implica, antes de mais, uma reflexão espácio-temporal: como
distribuir espacialmente recursos de forma a satisfazer as necessidades
prementes, permitir a prosperidade e corresponder às aspirações de uma dada
comunidade? Ao tentar responder às grandes questões que nos coloca o desafio do
desenvolvimento, devemos, antes de mais, analisar as problemáticas, observar e
consultar os atores em interação no espaço-tempo em que nos movemos. Pois é
nesse espaço-tempo que podemos operacionalizar os três vetores do
desenvolvimento sustentável, o que só pode conseguir-se em pleno com a
participação de todos os atores económicos e sociais que moldam a face dos
lugares e que construirão as futuras formas espaciais e estruturas sociais
(Guerra, 2012).
A construção de um futuro próspero em Bem-Estar, sendo o propósito de todo o
desenvolvimento, depende da possibilidade de participação todos os seres
humanos, porque os indivíduos são atores de mudança e não destinatários
passivos das estruturas. Assim, o desenvolvimento está, incontornavelmente,
afeto à promoção de justiça e reflete-se nas estruturas sócioespaciais, porque
o espaço é a sociedade (Marques, 2004: 9). A inovação social floresce nas
relações que se criam nas comunidades, nas regiões e nos estados, com o
objetivo último de ampliar as liberdades individuais dos indivíduos, quer em
termos de recursos, quer de oportunidades. As duas dimensões essenciais da
justiça espacial que cimentam o exercício da cidadania, sem o qual o indivíduo
não tem ação sobre a sociedade.
A conceção de desenvolvimento dos participantes deste estudo vai neste sentido,
partindo de uma base tão simples quanto idealista, no mundo de hoje, (é
trabalhar todas as pessoas para o mesmo fim, percebes? (V); que houvesse
assim uma união (XI)), que talvez esteja longe de compreender que o
desenvolvimento diz respeito a todos por igual, porque todos temos várias
necessidades, ( ) todos ao mesmo tempo temos alguma coisa p'ra dar. É só fazer
a ligação ( ) do que temos p'ra dar com as necessidades (I). Ou seja,
defendem-se, aqui, os mesmos princípios que defendeu Roque Amaro a nível do
desenvolvimento local (1993), em que assenta o desenvolvimento sustentável a
propósito da análise da qualidade de vida de Sen (1993) ou da conceção de
justiça de Rawls (2003).É, pois, fortemente sentida a necessidade de políticas
que incentivem os processos de desenvolvimento no sentido da melhoria do bem-
estar social e da garantia de justiça espacial. Esta necessidade é detetada com
base na consciência da complexidade social, fortemente apoiada por uma
convicção da necessidade de uma mudança social que promova as relações humanas
e que fortaleça a cooperação intersectorial centrada no reconhecimento do papel
das OTS, por parte do Estado e dos agentes privados.
Há, ainda, o entendimento de que a entreajuda entre seres humanos é a base de
qualquer processo de cooperação, a associação entre indivíduos antecede a
relação entre instituições e, em última análise, são os indivíduos que se
relacionam. Concomitantemente, também está na consciência dos interactores que
as organizações sociais podem funcionar como catalisadores do estabelecimento
de relações funcionais, sendo reconhecidos os vários papéis do Terceiro Setor,
quer como fonte de respostas sociais e apoio de proximidade às populações, quer
como promotor da cidadania e, ainda, como criador de valor económico. Tal vai
de encontro ao posicionamento do government to governance, isto é, a inclusão
da população como executora ativa dos seus destinos e produtores de
conhecimento em inovação social, assinalando uma mudança de discurso da
Comissão Europeia do governamental para o empreendedor (Llie e During, 2012).
Ora, a cidadania, cujo exercício implica o relacionamento entre seres humanos,
a consciência de direitos e deveres, a noção de ajuda ao próximo e a definição
de objetivos e meios de cooperação comunitária, é associada ao voluntariado,
enquanto meio de contribuição, e ao associativismo, enquanto meio de
prossecução de objetivos e de participação ativa na comunidade. Esta
participação ativa é reclamada perante a consciência do poder de agência do
indivíduo na sociedade, consciência que se vê adormecida e cujo ressurgimento é
essencial para potenciar o desenvolvimento. Só uma mentalidade proactiva e uma
forte consciência do poder que representa o exercício da cidadania, de
liberdades como o pensamento, a reunião e a associação, podem efetivar uma
cooperação verdadeiramente promotora de desenvolvimento.
A dimensão educativaé facilmente visível, uma vez que, para promover uma
mentalidade proactiva e ativar o exercício da cidadania, é necessária uma
sensibilização, uma mobilização, sobretudo das populações excluídas, cujas
incapacidades têm vindo a ser colocadas, sistematicamente, antes das suas
capacidades e do seu poder como cidadãos de pleno direito. Mas não apenas entre
as populações excluídas se verificam baixos níveis de cidadania, a larga
maioria da população portuguesa atravessa uma crise de desresponsabilização
social, que se lê na abstenção, na fraca participação em órgãos associativos e
na reduzida adesão a programas de voluntariado. Esta ausência é, sobretudo,
sentida em organizações de proximidade. E o voluntariado, em Portugal, carece,
regra geral, do espírito de compromisso, existindo, portanto, uma necessidade
premente de apostar numa sensibilização a nível do voluntariado, o que poderá
ser colmatado com políticas de incentivo, nomeadamente, partindo da educação e
da inclusão do serviço cívico nos programas extracurriculares das escolas
públicas, à semelhança das escolas internacionais, onde este se integra nos
próprios currículos.
Nesta análise organizacional vimos que os modelos ideais não se aplicam à
realidade observada e detetámos junto dos atores a consciência de que não há
processos perfeitos, e, como tal, perante a imperiosa complexidade dos
problemas sociais, as iniciativas necessitam manter o seu foco de ação de forma
clara e determinada, tentando, sim, melhorar os processos, mas almejando sempre
os resultados.
Então, a nível de processos, percebemos dificuldades na dimensão interaccional.
Ainda que o foco do programa seja a construção de habitações e, por esse
motivo, a interação com a população-alvo diminua de intensidade após o período
de construção, detetamos algum mal-estar por parte das famílias Habitat, assim
como de alguns dos seus interactores, face a esta evolução de relações. Uma
possibilidade interessante para alterar esta realidade é investir na integração
das famílias como voluntárias em obras de novos proprietários Habitat, o que,
na organização mãe, faz parte dos critérios de seleção de famílias. E, sendo o
voluntariado um pilar estrutural desta organização, há, aqui, uma disfunção a
nível da ressonância da mensagem da organização para a população-alvo.
Portanto, apostar no cumprimento desta condição é potencializar a
reinterpretação da missão da Habitat pelas famílias e, ao mesmo tempo, dar mais
estabilidade ao grau de interação com as mesmas, no longo prazo. Por outro
lado, encontrámos também pontos muito positivos, como já referido: a
participação ativa da população-alvo no processo, a frutífera inclusão dos
voluntários na vida da organização e a funcional cooperação com órgãos do poder
local e entidades do setor privado.
Assim, a Habitat resolve problemas habitacionais em articulação com o poder
local e desperta empresas e instituições para o voluntariado e para o dever
cívico, mobilizando as estruturas dinâmicas de capital relacional à escala
local (André et al., 2006). O seu contributo para o desenvolvimento e a justiça
espacial manifesta-se, de forma material, nas casas construídas nas comunidades
de pertença dos seus proprietários, garantindo o direito ao local e evitando os
problemas associados à deslocalização de populações. O interconhecimento que a
comunidade local facilita e o sentimento de pertença associado às identidades
locais impulsionam relações geradoras de desenvolvimento e, de um modo geral,
relações funcionais. Neste sentido, a ideia de Leadbeater (2009) de que a
melhor forma de promover atitudes e comportamentos é garantir que os cidadãos
respeitam as pessoas que os manifestam é mais facilmente realizável ao nível
local. A constituição de redes operativas pela AHH evidencia-se na participação
de vários agentes nas suas obras: órgãos do poder local, empresas fornecedoras
e dadoras de materiais de construção, empresas participantes no programa de
voluntariado para empresas, escolas participantes no programa de voluntariado
para escolas, voluntários da comunidade envolvente, incluindo vizinhos e amigos
das famílias, voluntários habituais da AHH, voluntários internacionais
participantes no Programa Global Village. Tais redes constituem, efetivamente,
estruturas dinâmicas, dada a sua inerente complexidade e a variabilidade das
suas formas, e são essas dinâmicas que permitem a atividade da AHH. O produto
final ' as casas Habitat ' são o objetivo último do seu projeto. Assim, esta
organização aposta na dimensão material da justiça espacial, entendendo a
habitação como um elemento potencialmente catalisador da inclusão social.
Notas
1Este artigo retoma e amplia uma investigação levada a cabo no âmbito do
Mestrado em Riscos, Cidades e Ordenamento do Territóriona Faculdade de Letras
da Universidade do Porto e que deu origem a uma Dissertação intitulada
Dinâmicas de Inovação Social e suas Implicações no Desenvolvimento Espacial.
Três Iniciativas do Terceiro Setor no Norte de Portugal, concluída em 2010, na
Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
2Escola Superior de Educação ' Instituto Politécnico do Porto. Assistente
Convidada ' UTC Ciências da Educação. Doutoranda em Sociologia ' Faculdade de
Letras, Universidade do Porto (Porto, Portugal). E-mail: veradiogo@ese.ipp.pt
veralvespdiogo@gmail.com
3Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Socióloga e Professora Auxiliar.
Departamento de Sociologia. Investigadora do Instituto de Sociologia da
Faculdade de Letras da Universidade do Porto (Porto, Portugal). E-mail:
mariadeguerra@gmail.com pguerra@letras.up.pt
4O valor médio de mensalidade ronda os 150 e o prazo máximo para finalizar o
pagamento das prestações é de 20 anos. Os custos incorporados no orçamento
correspondem apenas aos materiais e à (reduzida) mão de obra profissional, sem
juros e sem qualquer margem de lucro.
5A saber: a Direção, Comissão de Construção, Comissão de Famílias, Comissão de
Angariação de Fundos e de Voluntariado.
6Foram entrevistados elementos com vários papéis na intervenção da AHH, a
saber: proprietários de casas Habitat (população-alvo), fundadores, técnicos,
colaboradores e voluntários. Entrevistas que foram completadas por momentos de
observação participante, sendo a metodologia deste estudo de cariz qualitativo
e de enfoque interpretativo.
7Passamos a expor a caracterização dos participantes citados neste artigo, por
ordem de citação: 12 ' Especialista das Ciências Sociais e Humanas, Sexo
feminino, 63 anos, Estados Unidos da América; I ' Especialista das Ciências
Sociais e Humanas, Sexo Masculino, 32 anos, Braga; XV ' Trabalhador da
Construção Civil e Obras Públicas, Sexo Masculino, 41 anos, Braga; XI '
Pensionista, Sexo Masculino, 38 anos, Braga; XIII ' Outro Pessoal dos Serviços
Diretos e Particulares, Sexo Feminino, 34 anos, Braga; XVIII ' Outro Pessoal
dos Serviços Diretos e Particulares, Sexo Feminino, 41 anos, Braga; V '
Especialista das Ciências Sociais e Humanas, Sexo Feminino, 32 anos, Braga; XVI
' Diretor de Produção, Exploração e Similares, Sexo Masculino, 38 anos, Braga;
E ' Reformado, Sexo Masculino, 55 anos, Estados Unidos da América; D '
Secretários e operadores de equipamentos de tratamento de Informação, Sexo
Masculino, 53 anos, Canadá; F ' Advogados, magistrados e outros juristas, Sexo
Masculino, 47 anos, Estados Unidos da América; B ' Reformado, Sexo Masculino,
64 anos, Estados Unidos da América; VIII ' Diretores e gerentes de pequenas
empresas, Sexo Masculino, 64 anos, Braga; A ' Diretores e gerentes de pequenas
empresas, Sexo Masculino, 40 anos, Canadá.