Carreira, arte feminista e mecenato: uma abordagem à dimensão económica do
circuito artístico principal sob uma perspetiva de género
1. Custos de produção e o investimento
Os custos de produção de obras de arte podem variar entre o investimento de
montantes pouco exigentes (eg.:como a compra de papel, carvão, barro, gesso,
etc.) ou podem implicar gastos bem mais volumosos que requeiram materiais mais
caros ou que exijam a contratação de colaboradores/executantes ou o recurso a
processos técnicos e equipas especializadas (Cf. Melo, 1994: 35). Ora, um/
a artista que não tenha bolsas ou fontes de rendimento dificilmente poderá
materializar um projeto cujos custos de produção excedam as suas
possibilidades.
A luta de um/a artista para conseguir materializar a sua ideia implica, por
vezes, o investimento de montantes tão elevados que o autofinanciamento
derivado de venda de obras pode não ser suficiente para adquirir materiais
demasiado custosos, equipamentos, colaboradores/as e/ou espaços. Há quem
consiga patrocínios, outros/as vão vendendo as suas peças, outros/as adquirem
empregos dentro ou fora do campo da arte, outros/as formam associações ou
grupos para, na maior parte dos casos, obterem uma necessária visibilidade para
efeitos de consagração, etc.. Independentemente das estratégias utilizadas, os/
as artistas permanecem suficientemente orientados/as em relação às exigências
do campo da arte para tentarem, dentro das suas possibilidades, viver do seu
sistema de distribuição e expor a sua obra ao público. Contudo, assiste-se a
uma notória discrepância entre as credenciais e as recompensas ' alta
qualificação entre artistas, e salários baixos ou muito díspares e
desregulamentados em várias áreas. (Conde, 2009: 7)
Ser artista é ser investidor/a e titular de recompensas económicas e
simbólicas, o que implica ostentar um capital social específico e aceder a
diferentes formas de poder legitimador: salários, instituições, credenciais
educacionais, conhecimentos, consciência dos meios para almejar determinados
fins, etc. No entanto, há que mencionar que são poucos/as os/as artistas que
atingem o cume de uma carreira. A profissão de artista acarreta vulnerabilidade
resultante, por exemplo: dos pagamentos ininterruptos (quando existem) e que
muitas vezes são baixos3; da falta de contratos de trabalho; da submissão a
formas de poder simbólico; da recusa dos gatekeepersem permitir a participação
em exposições coletivas ou individuais; da recusa em expor em concursos de
arte, galerias, bienais, etc.
2. O culto do individualismo como condição para a integração de um/a artista no
mercado concorrencial
O sistema da arte é altamente hierarquizado, logo a partir da extensa e
variável valorização das obras, de algumas que simplesmente não o são, a outras
que são cotadas com montantes meramente simbólicos, ou outras que atingem
cifras de centenas de milhões. Quando mais elitista é o mercado da arte, mais
potencia a cotização de determinado/a artista, e que os valores económicos das
obras tenham um impacto substancialmente maior que o seu valor estético ou
simbólico (Crane, 1992: 144).
O estabelecimento e a ascensão de uma carreira de artista implicam, em regra, a
existência de relações pessoais e a obtenção dos conhecimentos necessários
dentro do sistema da arte ' marcadamente hierarquizado. No topo da hierarquia
encontram-se os/as artistas que atingem o estrelato, cuja ascensão normalmente
não tem retorno ' são estes/as que, normalmente, ostentam maior capital
cultural/social, assim como os/as que obtêm as remunerações mais elevadas. Nas
zonas intermédias da pirâmide, alinham-se estratos sucessivamente mais
reduzidos e permanentemente atravessados por deslocações ascendentes e
descendentes, com recaídas, recuperações e estabilizações provisórias ou
definitivas (Cf. Melo, 1994: 105). Em qualquer dos estratos da hierarquia, as
lutas pelas posições têm lugar entre os pares, quer sejam artistas ou outros
agentes culturais.
De acordo com o estudo clássico do mercado da arte de Moulin (1967), os
negociantes integram um/a artista na economia social transformando os valores
estéticos em valores económicos, o que implica, em termos práticos, a
mobilização de outros agentes, instituições e a formação de complexas redes de
circulação de capital económico, mas também simbólico, em torno da produção
artística. Considerando casos de artistas que atingem o auge de uma carreira de
sucesso, cujas obras são distribuídas e referenciadas por museus de arte ou
coleções particulares, o mercado da arte significa, para estes casos, um
potencial e aliciante lugar de rentabilização económica. Todavia, o mercado de
arte não se restringe apenas às obras dos/as consagrados/as, já que também
permite a entrada a novos/as artistas que pretendem criar novas dinâmicas
comerciais e construir carreira. Aos/às novos/as artistas é-lhes atribuída uma
determinada cota, ou seja, um determinado valor por cada obra a ser
comercializada, valor que é variável ao longo do percurso artístico do/a autor/
a e que normalmente corresponde à cristalização da sua legitimação (Cf.
Nóbrega, 2009: s/p).
A possibilidade de qualquer artista integrar o seu trabalho nos mais
conceituados museus de arte implica uma tarefa muito árdua e um percurso
consistente que incondicionalmente, necessita do acompanhamento de agentes
culturais legitimadores (críticos, comissários e/ou galeristas) que estejam já
incluídos no circuito e que tenham alcançado reconhecimento suficiente para
sugerir a inclusão de trabalho artístico em instituições de prestígio (idem).
Em termos gerais, os/as artistas compreendem a necessidade de utilizar o
sistema de mercado da arte para que a sua obra aceda às audiências, o que
permite a criação de condições de visibilidade para fins comerciais e/ou a
aquisição de capital simbólicoque varia de intensidade de acordo com o espaço
acolhedor e com os agentes com quem trabalham. Compreendem, desde logo, que a
consagração da sua carreira está dependente de uma rede de agentes culturais
que detêm poder de influência e de consagração.
As práticas culturais em sociedades avançadas estão instituídas em arenas
relativamente autónomas que possuem hierarquias institucionalizadas onde
artistas plásticos/as lutam por recursos valorizados, cujas conquistas de
lugares geram classificações simbólicas (Cf. Swartz, 1997: 43). Grupos e
indivíduos que beneficiem da consecução dos seus interesses, embora na forma
desinteressada, obtêm o que Bourdieu designa como capital simbólico. Capital
simbólico é capital negado; é a reformulação da autoridade carismática que
legitima relações de poder ao acentuar as qualidades pessoais das elites como
supostamente superiores e naturais (idem). Não só o trabalho artístico, mas o
nome do/a autor/a funciona como uma marca comercial, como signo distintivo
( idem), tendo, independentemente da sua vontade, o seu trabalho inserido numa
lógica que é a da produção corrente da mercadoria ( ). (Melo, 1994:16, 17)
Bourdieu conseguiu demonstrar que existe uma política económica da cultura, que
toda a produção cultural é orientada para a recompensa, e que as preferências
estilísticas são selecionadas e rejeitadas a partir de normas que são análogas
às noções gerais de investimento económico (Cf. Swartz, 1997: 67). As
recompensas e as conquistas de várias ordens, de qualquer artista ou agente
cultural no âmbito do campo artístico, melhoram determinada posição, pois são
conferidoras de várias formas de poder, seja material, cultural, social ou
simbólico. Ser artista com sucesso profissional acarreta um contínuo trabalho
em torno da construção da reputação, do status, requer conhecimentos e
envolvimentos com determinadas personalidades que confiram legitimação/
reputação no âmbito do campo ' desde os pares, com os quais concorrem, mas
sobretudo os agentes culturais.
As carreiras dos/as artistas requerem uma alta dependência das relações
interpessoais com estes agentes culturais, relações que usualmente misturam
funcionalidade, afeto e poder, sob a liderança carismática (Conde, 2009: 18).
Para o crítico de arte Alexandre Melo, a projeção de um/a artista depende,
sobretudo, das suas próprias capacidades de relacionamento e de integração:
A divulgação internacional da obra dum artista depende antes de mais
do próprio artista, da capacidade que ele tem de se inserir numa rede
de relações, de diálogos, de colaborações, de intercâmbios, que torna
a sua obra possível no plano internacional (Melo, 2007: s/p).
O sistema de distribuição da produção artística é gerido por intermediários
especializados que criam ordem e asseguraram a acessibilidade do seu próprio
negócio através da criação de relações de ordem interpessoal e institucional
que possibilitam a criação de condições estáveis de circulação das obras. Para
que determinado/a artista alcance uma posição privilegiada dentro do campo, é
necessária uma gradual promoção que se dá através do reconhecimento de agentes
culturais ' comentadores, galeristas, pessoas da classe política e/ou
económica, da comunicação social especializada, entre outros. São estes agentes
que impulsionam a intervenção mediática e que permitem que a obra obtenha uma
mais intensa velocidade de difusão de informações.
O reconhecimento de qualquer artista numa rede de relações institucionais
implica a distinção da sua obra artística, o que requer um trabalho pela
singularização, muitas vezes pelo recurso à sublimação, ie.: o/a artista X que
tem vocação e talento natural; aquele/a que nasceu para ser artista, o/
a carismático/a artista , etc..4 O individualismo resultante da alta
competitividade, que tem lugar na generalidade dos setores laborais, é também
um fenómeno que inere ao campo artístico, por vezes ainda de forma mais
exacerbada. O cultivo do individualismo gira em torno da autoria e da
necessária autenticidade conferida pela assinatura ou pelo imperativo de
produzir arte que se distinga pela sua unicidade.
O/A artista carismático/a, que possui o especial dom em ser criador/a,
proporciona um duplo reforço: de si e, por acréscimo, do seu trabalho. A sua
valorização pessoal é, assim, intrínseca à valorização da obra, ao seu valor
estético, intelectual, sobretudo mercantil. A multiplicação dos
mediunsartísticos, as milionárias valorizações económicas que muitas vezes são
anexas a determinadas obras, a sua reprodutibilidade, mas também o prestígio da
figura de um/a artista jogam, em conjunto, um papel importante conferidor ao
que Walter Benjamim viria a denominar de arte aurática que é realizada apenas
por artistas reconhecidos/as, que muitas das vezes adquirem estatuto e fama.
Artistas famosos/as são aqueles/as cujas obras, compradores, exibidores,
intermediários e comentadores atuam necessariamente num quadro internacional
(Cf. Melo, 1994: 47). Estes/as artistas, para além de manterem prestígio dentro
do campo, particularmente entre investidores e outros especialistas, são muitas
vezes reconhecidos entre grandes audiências. São artistas que gozam de uma
situação privilegiada devido ao facto de o seu trabalho ser apoiado, promovido
e comentado com alguma intensidade por agentes culturais que também ocupam
posições privilegiadas.
A luta por produzir uma obra de arte, uma criação definitiva que possa
encontrar um local único no mercado, implica sempre circunstâncias competitivas
e envolve um esforço individual que gira em torno da sua produção e
legitimação. A distribuição da produção e o consumo da arte estão dependentes
de um circuito cuja lógica implica o investimento de dinheiro e a necessidade
de obtenção de lucros dentro de um mercado que requer a inovação, a
diversificação e a originalidade, por vezes, alguma egolatria e subjetivismo
como armas numa competição entre artistas, agentes e instituições que possuem
um sentimento de luta pela existência material, pelo sucesso, pela influência e
pelo poder. Ser artista implica a sujeição a um mercado concorrencial onde a
competição com os pares é assaz feroz5, onde qualquer um/a fica sujeito/a à
obrigatoriedade de produzir arte que surpreenda e que surja como novidade
dentro do circuito, num tempo e contextos que, de acordo com Pierre Bourdieu,
assentaram num processo de institucionalização da anomia.
Por convenção, o efeito novidade surge no campo da arte como uma estratégia
contra a saturação do mercado; sendo que, como refere Maria de Lourdes Lima dos
Santos, a novidade torna-se numa repetição, numa moda que precisa de combinar
a série com a novidade (Lima dos Santos, 1994: 131, 132).
Embora alguma da arte avant-garde,em si inovadora, num período demarcado como
modernismo, inclua alguma produção feminista e outros tipos que se definam como
socialmente críticos, o termo em si engloba toda a arte que foi/é
essencialmente desafiadora das convenções artísticas estabelecidas e
legitimadas pelas instituições artísticas (estilos, formas, suportes,
técnicas),6 incluindo escolas e museus. Contudo, correntemente, a novidade
absoluta não deixa de ser uma improbabilidade face à saturação dos paradigmas
da criatividade que, em si, encerra um caráter demasiadamente banal, ainda que
seja demasiadamente valorizada.
3. A produção artística (feminista) sob a tutela do mecenato. Uma abordagem à
dimensão económica
Previamente resultantes de avaliações e revalorizações, a história da arte
tende a focar como objeto de estudo as tendências artísticas, os/as artistas e
os acontecimentos que vão de encontro ou, no limite, que não chocam com os
interesses das camadas sociais mais influentes. Os seus processos de
interpretação e de avaliação tendem a refletir o desenvolvimento das escolas e
a consagrar o gosto do patronato sublinhando a sua influência na configuração
do legado de produção cultural. Consequentemente, esta valorização contínua do
gosto, previamente estabelecido pela história da arte, suporta os interesses
dos investidores, na medida em que consolida a sua posição/statusno próprio
campo, perante outros agentes económicos e perante os próprios públicos.
Para além do culto sagrado que as consignam, as obras de arte representam um
atrativo para determinadas empresas e alguns negociantes que investem,
normalmente sob a orientação de especialistas em arte, somas valiosas que
geralmente viabilizam ativos financeiros, para além dos simbólicos. São
investimentos que podem ser subjetivos, mas efetivamente lucrativos, estando
sujeitos à valorização especulativa que é feita, por exemplo, em leilões, em
torno de obras artísticas. Eg.:no leilão de arte moderna e impressionista da
Christie's(em 2008) vendia-se então o Monet mais caro de sempre por 51,6
milhões de euros. Nessa mesma sessão o valor total do leilão elevara-se para
212,3 milhões de euros. Mais recentemente, um outro leilão de arte
contemporânea ascendeu a 228 milhões de euros, com a venda do Three Studies
for a Self-Portrait, de Francis Bacon (Cf. Marques, 2008: s/p). Mesmo em plena
crise económica e financeira, o mercado artístico não cessa de crescer porque,
de acordo com Pedro Mesquita da Cunha, diretor e fundador da leiloeira
portuguesa Sala Branca, é um bom refúgio para quem tem liquidez e quer
investir, além de que revela que as classes mais altas estão efetivamente mais
ricas. No que respeita aos gostos, Pedro Mesquita Cunha refere que o mercado
está mais educado porque aos poucos vai-se colocando a hipótese de que pode
leiloar uma instalação (idem). Eis um critério de gosto que subjaz que a
forma/mediumé mais valorizada que o conteúdo.
A arte começou a ser considerada como investimento no início da década de 1980.
Durante grande parte do século XX eram apreciados os seus méritos estéticos,
havendo poucos indivíduos (na maioria corretores e leiloeiras) que olhavam
para a arte como uma oportunidade de investimento ' recorda Iain Robertson.
Dividendo estético era o termo usado para descrever o prazer de possuir uma
obra de arte (idem).
Ter a capacidade de investir em arte consagrada implica pertencer a uma classe
social economicamente elevada e ser capaz de adquirir conhecimentos
substanciais das convenções que estruturam a produção da arte erudita, de
acordo com os parâmetros oficiais. É uma aquisição de conhecimentos que não
implica necessariamente um competente sistema de referências, ou seja ' de
saberes ligados à história da arte, tendências estilísticas7, ou aos discursos
artísticos. Este tipo de conhecimentos é normalmente assegurado por críticos,
curadores, ou por outros mediadores culturais que, algumas das vezes,
assessoram os investidores. Só os/as artistas mais consagrados/as conseguem que
a sua obra ascenda a uma valorização económica que atinge cifras por vezes
milionárias, o que torna alguns/mas deles/as em marcos cuja referência
histórica se torna, normalmente, irreversível. É limitado o número de artistas
que entram neste circuito restrito, e quando o alcançam convertem-se em
indicadores sobre as procuras das principais tendências, estilos, e nomes que
atraem colecionadores e outros tipos de investidores. As boas informações que
estes agentes adquirem sobre o objeto artístico traduzem-se em perceber se
determinada obra pode garantir vantagens comerciais, o que implica o que
comumente se designa de olho para o negócio. O olho ou o faro são
fatores sistematicamente evocados por galeristas ou colecionadores famosos
quando tentam explicar o que os levou a apostar em nomes desconhecidos e que,
entretanto, se tornam famosos (Cf. Melo, 1994: 18). A aposta em determinados
artistas não se trata de uma ciência exata, mas pode ter propósitos
específicos. As escolhas artísticas podem ser feitas e justificadas como
exercícios que sustentam a construção de imagens corporativistas que são
usualmente conservadoras e feitas para produzirem um efeito positivo num grande
número de pessoas. Atualmente, empresas multinacionais, bancos, seguradoras,
entre outras, assumem o papel de serem as grandes contribuidoras financeiras
para as artes, apresentando uma particular tendência em apoiar programas que
reflitam os interesses e gostos de uma comunidade local que a própria
multinacional tenta influenciar (Cf. Crane, 1992: 151). Note-se, a título
exemplificativo, o contexto norte-americano onde algumas dessas empresas, como
aExxonou a Mobil, que não só apoiam extensivamente as artes, como publicitam os
seus serviços de amparo em jornais como, por exemplo, o New York Times(idem:
152).
São empresas que abarcam uma missão de criar boas relações com os públicos ou,
no limite, de procurar que não existam choques ideológicos derivados de obras
que exibem. Em alguns casos, o inanciamento pode ainda ser usado como uma forma
de marketing, ainda que indireto, de determinadas ideias (estilo de vida,
produtos, serviços) que sirvam os interesses da empresa. Consequentemente, a
arte pode ter a utilidade de ostentar um caráter publicitário ao representar
tendencialmente determinadas visões do mundo, de reconhecer determinados
padrões sociais de valor e critérios de gosto. Nesta política cultural, a arte
surge como produto que serve sobretudo funções de decorativismo institucional
(Seabra, 2008: s/p), o que subjaz que este tipo de apoios empresariais servem
os próprios interesses corporativos, não os interesses de determinada minoria,
como os direitos de mulheres patentes numa qualquer obra feminista.
Os mecenas de primeira linha, que comummente atuam no topo da estrutura do
campo da arte, encarnam com muita frequência esse papel de utilizar a arte como
suporte decorativo dos próprios edifícios e como estratégia de autopromoção
dentro do mundo empresarial. A entrada no mercado da arte por parte de um
mecenas equivale a um acesso ao statusem que Rockefellers e Guggenheims usam
os seus recursos económicos e sociais para erguerem monumentos a eles próprios,
em forma de grandes museus de arte contemporânea (Becker, 1994: 82). As
motivações de um mecenas em apoiar e rodear-se de arte podem ser ilustradas a
partir destas citações recolhidas por Hans Haacke:
A minha apreciação e prazer da arte são estéticos em vez de
intelectuais. Não estou mesmo preocupado com o que o artista diz; não
é uma operação intelectual ' é aquilo que sinto. ' Nelson
Rockefeller
O apoio da EXXON serve as artes como um lubrificante social. E se o
negócio continua nas grandes cidades, precisa de um ambiente
lubrificante. ' Department of Public Affairs, EXXON Corporation
Mas o mais significante é que permite aumentar reconhecimento no
mundo dos negócios, a arte não é uma coisa à parte, ela tem a ver com
todos os aspetos da vida, incluindo o negócio ' porque ela é, de
facto, essencial para o negócio. ' Frank Stanton (idem, 81-82)
Tais conceções e objetivos em relação às artes plásticas colocam
(aparentemente) os mecenas numa posição de indiferença em relação aos
conteúdos, desde que estes não afetem a imagem das suas instituições
empresariais. São comentários que também revelam o interesse pela aquisição de
arte como prova de marca do cultivo e do gosto adequados ao statussocial que
pretendem vincar. Legitima, tendencialmente, a prerrogativa do ócio ostensivo,
representando os interesses de uma minoria privilegiada da sociedade, de uma
elite que dispõe dos meios necessários para a sua aquisição e gozo. Ao
investirem num/a artista consagrado/a, os negociantes vão justificando os seus
gostos numa base de critérios previamente estipulados por conceções partilhadas
sobre como devem ser as produções culturais ' são premissas fundamentais para
as avaliações e apreciações dos produtos culturais (Cf. Crane, 1992:112). As
artes plásticas jogam, assim, um papel em que são vistas como uma prática
destinada apenas aos eleitos, que colecionam pelo deleite individual, apenas
como um hobby. DiMaggio e Useem argumentam que os investidores beneficiam com o
financiamento das artes até porque lhes permite manter e prolongar as suas
posições na respetiva classe hierárquica. Eles referem que os
eventos artísticos têm proporcionado à elite ocasiões convenientes
para a reafirmação da partilhada e distintiva alta cultura. As
famílias da elite passam a apreciação artística' para os seus filhos
como uma forma de capital cultural que mais tarde se torna numa
vantagem valiosa na perseguição de carreiras profissionais e
administrativas (DiMaggio & Useem, 1978a cit. Crane, 1992: 147)
Os investidores, nomeadamente aqueles que se sujeitam à filantropia, fascinam
pela acumulação e por se circundarem de obras de arte, enaltecem-se e assumem
uma imagem pública de valorizarem a vida cultural de uma dada comunidade. Mesmo
a filantropia, que por princípio não é lucrativa, funciona para legitimar
interesses económicos particulares, convertendo-os em forma de reconhecimento
simbólico e para o bem de outrem (Cf. Swartz, 1997: 91). De acordo com
Bourdieu, a filantropia, enquanto setor não lucrativo, permite a conversão de
capital económico em capital simbólico assegurando aos grupos dominantes a
estima da sua boa imagem e das suas atividades em relação à opinião pública
(idem: 91, 92). O prestígio social surge, então, como motivação para a
aquisição de obras de arte raras, de um/a artista conceituado/a, vinca uma
imagem de marca conferidora de estatuto social: um Andy Warhol pode,
efetivamente, ser consumido tal como um Jaguar, ou seja, como um objeto de
prestígio, mas sem funções utilitárias.
O apoio financeiro à atividade artística é uma ocorrência banal. Seja um
projeto artístico independente, de uma galeria, de um museu ou do próprio
Estado, o mecenato está sempre implícito. Por outras palavras, a carreira de
qualquer artista depende de um financiador, de um legitimador a quem são
depositadas ambições e esperanças. O facto de um/a artista não ser independente
dos condicionalismos económicos e sociais implica que, por vezes, os seus
interesses, alguns deles enraizados pelo desejo de poder e/ou prestígio, ou
mesmo por uma necessidade básica de subsistência, se sobreponham a outros como,
por exemplo, os relacionados com a contestação ou a desconstrução social. Mesmo
que qualquer artista permaneça consciente do facto de estar condicionado/a às
condições materiais, não pode fugir à condição de que a sua produção cultural
poderá legitimar os interesses de consagração de agentes e entidades
promotoras, em detrimento de uma eventual função educativa e formadora de uma
sua obra que faça menção, por exemplo, a questões alusivas à igualdade de
género. Não se espera que da obra um/a artista surja a contestação social, mas
espera-se que a eventual influência da sua obra resulte de inovações estéticas
e, sobretudo, que essas inovações façam parte dos requisitos de gosto dos
gatekeepers, das organizações que avaliam, que expõem e vendem os seus
trabalhos, e que os usufruam para proveito próprio.
A necessidade de sobrevivência através do mercado da arte tende a conduzir um/
a artista a produzir de modo a que o seu trabalho respeite determinados padrões
morais e estéticos tornando-se, involuntariamente ou inconscientemente, no/
a porta-voz dos seus compradores e protetores, cuja elevada posição não pode
jamais ser afetada. Na sua relação com o patronato, um/a artista não pode
jamais beliscar quem o/a publicita ou consagra: há, portanto, que saber jogar
com os próprios limites da liberdade que estão delimitados pelos agentes e
pelas instituições (Cf. Moulin (1967), apud. Becker, 1994: 86). Entrar no
circuito artístico implica a qualquer artista aceitar tacitamente as regras do
jogo, ou seja, acolher determinadas formas de luta mas sempre dentro de
procedimentos que, normalmente, excluem verdadeiras ações de contestação.
4. A inclusão do feminismo artístico no principal mercado da arte
Qualquer artista que ascenda ao mercado primário necessita, obrigatoriamente,
de passar pelo mercado secundário8. Este grande segmento de mercado viabiliza a
circulação de obras em espaços e eventos menos conceituados, ainda assim
importantes porque sustentam agentes culturais e artistas que procuram
sedimentar ou mesmo subir a sua cotação através do reconhecimento do seu
trabalho. Qualquer artista feminista que almeje e logre o mercado primário
necessita, obrigatoriamente, de experiencializar o mercado secundário e
sujeitar-se ao risco de não ver o seu trabalho reconhecido, ou seja, que os
comerciantes não o (re)vendam, o que provoca uma baixa inevitável da sua
cotação. Não obstante as dificuldades e os riscos que a carreira artística
acarreta, se hoje em dia se reconhece que artistas feministas (como Cindy
Sherman, Barbara Kruger, Louise Lawer, Jenny Holzer, entre outras) são
consagradas e reconhecidas em museus e noutras instituições culturais de
prestígio internacional (exemplo do MoMa, de Nova Iorque, ou da Tate Modern, em
Londres), se se reconhece que há uma ascensão destas mulheres na pirâmide
hierárquica, tais melhorias e progressos devem-se ao próprio mercado e aos/às
agentes que o compõem. A transação e a especulação de obras de arte podem
atingir valores astronómicos nos leilões de arte, sobretudo nos principais
centros artísticos sediados em Londres e Nova Iorque.
É nos leilões de arte que o mercado artístico não tem limites, onde os
investimentos, subjetivos, podem ser efetivamente lucrativos. Só os agentes
económicos mais ricos podem disputar pelas obras que são sujeitas a
especulação. No entanto, tal como confirma o rankingdas obras mais até 2012
(tabela_1), o principal mercado da arte ainda subvaloriza as mulheres em
relação aos homens artistas. Ainda há discriminação no que toca aos valores de
vendas praticadas entre mulheres e homens artistas no mercado principal,
particularmente nos grandes leilões de arte que operam ao mais alto nível do
funcionamento da cadeia económica do sistema artístico. A propósito deste
desfasamento de valores entre as obras de mulheres e homens artistas, o
galerista e colecionador Iwan Wirth, que representa Louise Bourgeois, entre
outras mulheres artistas, menciona a
( ) constante desilusão ver a discrepância de preços entre
excelentes mulheres artistas e os seus homens pares. O género de um
artista não deveria ter nada a ver com o seu valor de mercado. Eu
vejo isto a acontecer constantemente com as grandes artistas que
representamos, tais como Bourgeois, Joan Mitchell ou Eva Hesse.Claro
que o mercado artístico, tais como todos os locais, deveria estar
livre de tais preconceitos. Fiquei encantado ver importantes pinturas
vendidas na Sothby por 3.2 milhões. No entanto, esta ocorrência tem
de ser comparada com os trabalhos da mesma venda, que incluíam um
Bacon, vendido por 13.7 milhões; um Basquiat, por 5 milhões e um
Richard Prince por 4.2 milhões. As mulheres artistas são uma
pechincha nos mercados atuais. ( ) O problema é que as mulheres foram
excluídas dos museus de arte. (Cf. Johnson, 2008: s/p)
Sarah Thornton, socióloga e historiadora que tem trabalho publicado sobre o
mercado artístico, refere que apenas 30% dos acervos artísticos dos museus e
galerias contêm obras feitas por mulheres; enquanto os artistas do top 100 nos
leilões de 2007 incluíram apenas 4 mulheres (Cf. Johnson, 2008: s/p).
Mediante uma conjuntura em que o mercado artístico ainda é altamente
discriminatório em relação às obras de mulheres, quer no número, quer na
cotação, o crítico de arte Brian Sewell, procurando negar as evidências, mas
confirmando a conjuntura, mencionara (em julho de 2008) numa declaração algo
discriminatória que:
O mercado artístico não é sexista. Os gostos de uma Bridget Riley ou
Louise Bourgeois equivalem a um segundo ou terceiro ranking. Nunca
existiu uma mulher do primeiro ranking. Apenas os homens são capazes
tal de grandeza estética. As mulheres preenchiam 50% ou mais do
ensino artístico, no entanto desapareceram gradualmente em finais das
décadas de 1920, 1930. Talvez tenha a ver com o facto de que tomavam
conta de crianças. (Johnson,2008: s/p)
Para além da sua dimensão económica, os leilões têm uma densidade emocional e
espetacular que não deve ser subestimada, a que resulta ( ) da acumulação das
dimensões de jogo, despique e exibição ( )(Melo, 1994: 21). Os leilões
certificam períodos de um mercado eufórico com fortes oscilações, em que os
preços das obras gravitam em torno de fatores que não são nem racionais, nem
objetivos, apenas emocionais e especulativos. O despique é a substância de um
jogo onde o exibicionismo corresponde à afirmação de um statussocial, cultural
e económico e à exibição mundana de uma imagem (Cf. Melo, 1994: 22).
A reconhecida Christies, casa de leilões de arte (Nova Iorque), é um dos locais
de referência do mercado principal da arte onde a dominação masculina é deveras
evidente. Sarah Thorton descreve a experiência na Christiespelo seu cariz
sexual, por vezes violento (Cf. Huang, 2011: s/p). Um dos seus entrevistados, o
influente consultor de arte Philippe Ségalot, refere que a a compra de arte é
um ato extremamente gratificante e másculo ( idem).Um outro entrevistado, o
artista Keith Tyson, refere que a venda é contagiante. Sente-se a emoção do
capitalismo e entra-se numa mentalidade de macho-alfa. (idem)
Na dimensão económica da arte, concretamente os compradores, galeristas e
curadores12 de topo são essencialmente homens. Os leilões, como os da
Christies, são principalmente dominados pelos homens (de negócios) pelo simples
facto de a classe empresarial situada no topo da hierarquia ser essencialmente
masculina. Na sua dimensão puramente económica, o objeto artístico (mesmo
feminista) surge como produto, mercadoria que é (re)valorizada consoante os
interesses dos investidores e que muito dificilmente a valorizam pelos seus
conteúdos.
É nesta conjuntura de um mercado principal da arte, cujo poder legitimador é
essencialmente dominado por homens, que a arte feminista procura obter
legitimação. Na sua dimensão económica, a arte feita por mulheres (ver tabela
1) obtém cotações muito mais baixas quando comparada com a de autoria
masculina. Enquanto a obra mais cara (até 2008) feita por uma mulher, a
Spider, de Louise Bourgeois, atinge os 10,7 milhões de dólares; o Portrait
of Joseph Roulin, de Vincent van Gogh, posicionado no 10º posto das obras mais
caras (até 2008), atinge os 58 milhões de dólares. O rankingdas 10 obras mais
caras (até 2008), dos períodos moderno e contemporâneo, inclui apenas obras de
artistas homens. Já no rankingde 100 surge uma das quatro mulheres, Louise
Bourgeois, no 49º posto. Por fim, a arte feminista ocupa uma cotação (não
enumerada) muito baixa no mercado, sobretudo quando comparada com as obras que
detêm dígitos que perfazem milhões: tenha-se como referência a obra feminista
mais bem cotada do mercado Untitled (When I hear the world culture, I takeout
my checkbook), de Barbara Kruger, que chega aos 902,500 dólares (Russeth and
Douglas, 2011: s/p).
A valorização de artistas e obras varia consoante o género ' este consiste num
grande fator de desigualdade, portanto de discriminação13, no campo artístico
onde há uma clara assimetria generalizada de consagração entre homens e
mulheres artistas. A baixa visibilidade de mulheres artistas e, sobretudo, a
falta de referências do período clássico, também se deve ao legado de um
passado cujas forças institucionais e estruturais do campo artístico concebiam
as mulheres exclusivamente como modelos nus. Face a este funcionamento do campo
artístico, as mulheres tinham exclusão automática dos estúdios e das escolas de
arte, o que reflete uma história da arte que confirma a baixa visibilidade de
mulheres artistas. As velhas noções de grandeza, a perenidade dos cânones, do
que é engrandecido na arte, assim como as conceções masculinistas do génio
artístico, ainda estão vinculados exclusivamente aos homens e têm excluído
consecutivamente as mulheres artistas. Na história da arte não existe uma
génia mulher. Evelin Stermitz descreve esses cânones como ideologias' ou
sistemas de crenças que falsamente pretendem objetividade quando realmente
refletem relações de poder e dominação. (Stermitz: s/d)
As condições sociais e de produção tiveram de mudar consideravelmente para que
atualmente as mulheres tenham uma maior participação nos contextos artísticos
institucionais, o que tem contribuído para que os seus méritos sejam cada vez
mais reconhecidos. Mas, apesar de tantos progressos, as mulheres artistas ainda
têm mais dificuldades em viver da sua produção artística quando comparadas com
os homens. Oportunidades de exposições, premiações, recordes de vendas, postos
de ensino, representação em instâncias culturais, a aquisição de fama, etc.,
ainda permanecem altamente masculinizadas. Os preços das obras de mulheres
permanecem muito mais baixos comparados com as dos homens, o que significa que
são mais mal pagas e que têm menos oportunidades de desenvolver trabalho
artístico, quando comparadas com os pares do outro sexo. O cerco fica ainda
mais apertado quando se trata de arte feminista. Helena Reckitt, feminista e
curadora de arte contemporânea, salienta a dificuldade das feministas em
exporem e venderem os seus trabalhos num campo artístico que ainda cria
restrições a conteúdos feministas veiculados pela arte (Reckitt, s/d).
5. A luta pelas causas feministas Vs: a luta pela carreira artística
Um/a artista (feminista) que pretenda que o seu percurso profissional rume à
consagração no circuito principal do campo artístico necessita de almejar
objetivos e ultrapassar determinadas barreiras. A construção de uma carreira de
sucesso requer que o trabalho de um/a artista ganhe visibilidade em
instituições artísticas de relevo ' galerias, museus, outros espaços culturais,
coleções privadas ou públicas. A reprodução do seu trabalho em monografias, em
catálogos de exposições individuais e coletivas, em revistas, assim como a
referência escrita realizada por agentes culturais que ocupam posições
privilegiadas dentro do campo (críticos, curadores, jornalistas, etc.); a
conquista de prémios, bolsas, subsídios, não só otimiza melhores condições de
produção como também projeta a carreira de qualquer artista, certificando a sua
consagração.
A dimensão económica da arte condiciona os comportamentos das artistas
feministas que atuam em conformidade face aos constrangimentos e às
oportunidades que o próprio mercado e mecenas impõem ou oferecem. Ser artista
feminista implica, portanto, a internalização, ou incorporação, de regras das
estruturas que compõem e dão ordem ao campo da arte. É um processo, aplicável a
qualquer campo, que Bourdieu denominou de habitus, que contende a reprodução
de ações, perceções e atitudes (Cf. Swartz, 1997: 108) de forma consistente.
Dentro da prática criativa, as artistas feministas são também levadas a
afirmarem-se individualmente e compreendem que não podem ser premiadas se não
deixarem de respeitar a nobreza de espírito e o caráter dos mecenas. Acatar
regras não pressupõe que as artistas feministas partilhem dos compromissos
políticos e simbólicos dos seus mecenas, nem que sejam apologéticas do seu
status quo, ou que ainda se subjuguem como meras serventes do poder. As
artistas feministas, enquanto protagonistas de um campo que as legitima mas que
também as subordina, ocupam uma posição contraditória porque criticam um
sistema no qual pretendem obter legitimação, alcançar capital económico e ter
posse de poder. Buscam, por um lado, reconhecimento do campo e das instituições
que o compõem e, por outro, criticam o próprio funcionamento dessas
instituições não deixando de quererem ser incluídas. Não obstante a aparente
contradição, a posse de poder por parte das feministas faz sentido porque lhes
permite a obtenção de capacidade de remover ou promover legitimação.
É da sua produção e do mercado da arte que muitas artistas feministas querem
viver, o que coloca a exigência de terem de entrar no circuito. Dentro do
circuito, as artistas feministas não só concorrem com outros/as artistas,
estando circunscritas a uma pequena minoria, como inclusivamente concorrem
entre si. A luta por ocuparem a sua posição implica às artistas feministas a
autopromoção para obterem visibilidade em prole dos interesses pela carreira,
uma outra luta que vigora para além das causas que o seu trabalho alude. Não
deixam de usar a autobiografia e as autonarrativas como forma de promoção de si
próprias e do seu trabalho: a hiperteorização, o discurso autocentrado, o
portfolioe, o currículo, são recursos imprescindíveis para qualquer artista
(feminista) que queira sobreviver dentro do mercado da arte. Frequentemente,
também acontece que os/as artistas fiquem reféns do seu próprio trabalho ou,
pelo menos, de um tipo de trabalho que os legitimadores culturais esperam que
seja produzido14. Para aquelas que querem entrar e/ou permanecer no mercado
principal têm de equacionar (como imprescindível) os contactos com produtores
culturais especializados que ocupem posições de liderança em determinadas
instituições.
O objetivo de qualquer artista feminista que esteja no mercado artístico
implica a veiculação de questões de género mas, também, passa necessariamente
pela sua integração no circuito e pelo seu sucesso comercial. O mesmo princípio
é aplicado a agentes e instituições artísticas que estejam voltadas para a
igualdade de género e sejam apologéticos do feminismo, que também não deixam de
estar orientados para o lucro e para o aumento do seu capital simbólico. A
autonomia de uma artista feminista dentro do campo artístico depende, portanto,
dos valores e do estilo de vida de quem a legitima.
Ainda que ténue, deve-se ao mercado e a investidores o crescendo da
popularidade do feminismo, quer em volume de trabalho publicado, quer nas
instâncias artísticas, pese embora os eventos promovidos por indústrias de
relações públicas os vendam como pacotes de feminismo. É uma contradição
aparente, que apresenta vantagens e desvantagens para os discursos artísticos
feministas. As vantagens do mercado artístico é que permite que mulheres
feministas que se tornem visíveis perante várias instituições e vários públicos
heterogéneos, e que deem eco a reivindicações sociais de várias ordens. A sua
legitimidade acarreta formas de mediatização, de reprodução visual e
discursiva, a possibilidade de se tornarem como referência da história da arte,
e ainda potencia a veiculação de discursos (valores, denúncias,
problematizações, etc.) sobre questões de género para as vastas audiências. A
reprodutibilidade do discurso da arte feminista consagrada permite que esta não
seja homogeneizada como estilo ou tendência, mas como discurso. Surgem
depois algumas desvantagens no âmbito da legitimação. Quando Charles Labelle
refere que, em relação aos últimos 15 anos, o feminismo parece ter agora mais
a ver com o direito de algumas mulheres em se reafirmarem atuando com
histerismo, vendendo os seus corpos, ou fingindo-se de mortas (Cf. Labelle,
2008: s/p), a sua observação enquadra- se num tempo em que a ideologia cultural
é consumista, lúdica, mediática, generalista e eclética, e onde tudo vale
para que artistas e agentes culturais legitimem as suas produções artísticas.
Face a um poder económico que joga um papel altamente discriminatório, as
(re)conhecidas atitudes de algumas mulheres artistas que se pompeiam como bad
girls que ostentam disposições de rebeldia de forma a garantirem a sua
inserção no circuito, denotam que as relações das artistas feministas, e de
outros/as, se modificaram com as instituições artísticas e agentes culturais
aos/às quais projetam ambições de promoção social. Por conseguinte, por terem o
receio de comprometer a carreira artística, muitas jovens artistas feministas
poderão ser mais impelidas mais à irreverência, à atitude cool , do que serem
propriamente incentivadas à investigação teórico-prática ligada a valores de
género.
Não obstante algumas fórmulas comuns de ascensão da carreira, a produção de
arte feminista rodeia-se cada vez mais de produção teórica altamente
especializada de investigadoras feministas, com estudos graduados em questões
de género, que dão o seu contributo para autonomizar a discursividade das
obras, das/os intervenientes, assim como do próprio movimento que se tem feito
sentir no campo da arte. São discursos críticos especializados, cada vez mais
globalizados, que vêm acompanhando a arte feminista, e que se multiplicam em
revistas, livros, monografias, catálogos ou mesmo noutros contextos académicos
ou urbanos ' o que auspicia um cenário positivo de uma gradual disseminação dos
feminismos através da arte. Também a história da arte feminista, a teoria
feminista e encontros feministas no âmbito académico, as exposições em espaços
comerciais, dão mostras do interesse de várias instituições, o que se traduz em
apoios, financiamentos, e reprodução discursiva.
Nos dias que correm, ainda é evidente que os homens são ainda os guardiães do
sistema de legitimação e de referências artísticas, regularizando todo um
conjunto de práticas e disposições que tendem a favorecer carreiras de
artistas, principalmente de homens. A ordem social do campo da arte não está
assim à parte de outras arenas de trabalho na sociedade, porque são
continuadamente validadas, sobretudo no sistema principal da arte, desde o topo
da hierarquia, todo um conjunto de normativas (impostas) e inquestionáveis, que
asseguram a desigualdade e a primazia do artista génio (homem).
As práticas engendradas ao longo da história, concebidas e partilhadas pelas
estruturas de poder legitimadoras, que asseguram, no presente, experiências de
discriminação de género, têm sido combatidas por agentes (outsiders) que têm
vindo a ascender a determinados postos de decisão. A ascensão de mulheres e
homens feministas (enquanto galeristas, comissárias, críticas, historiadoras,
editoras, etc.) que tencionam veicular arte feminista em instituições
legitimadoras, tem-se revelado uma estratégia eficiente de autoempoderamento,
que tem rompido com mecanismos discriminatórios manifestos através da dominação
masculina.
As desigualdades de género no mundo artístico têm vindo a atenuar-se, o que
envolve mudanças numa tradição que ainda é discriminatória porque sub-
representa as mulheres. Atualmente, embora exista uma maior inclusão de
mulheres artistas nas instituições principais, ainda longe da paridade, essa
visibilidade conquistada não existiria sem reivindicações de mulheres, nem sem
a organização de exposições alternativas, num tempo em que a produção, a
promoção e a diversidade da arte feminista estão em crescendo.
Considerações finais
Só um gatekeepingque permita uma mais equilibrada exposição e consagração de
homens e mulheres, mediante a implementação de políticas focadas na igualdade
de género, aumentará as possibilidades de desenvolver as carreiras artísticas
das mulheres, o que aumentará o ensejo de consagração de artistas feministas.
Uma outra medida, esta sugerida por Idalina Conde, implicaria a introdução de
incentivos específicos e oportunidades para mulheres artistas ' e.g. prémios e
bolsas de estudo (em particular de estudos no estrangeiro), que muitas citam
como das principais portas (gates) (Cf. Conde, 2003: 323); mas também, poder-
se-ia acrescentar, a promoção de concursos de arte dirigidos a mulheres, mas
com uma mobilização de agentes culturais (curadores, críticos e galeristas) que
ocupem postos de poder no campo da arte, assim como a criação de novas redes
locais, nacionais e internacionais, apelativas para a inclusão de apoios
económicos (quer através do mecenato, quer institucionais, públicos ou
privados). Importa também incluir instituições artísticas (universidades,
galerias, centros culturais ou museus) que possam atuar em rede em torno da
projeção de políticas de igualdade. Uma medida ainda mais estruturante passaria
pela anuência de leis pela igualdade15 aprovadas em parlamento, que
recomendassem às administrações públicas as políticas de paridade na
legitimação e consagração artística. É, ainda, imperativa a adoção de políticas
culturais preconizadoras da variedade de opiniões e ideologias, de diversos
estilos artísticos, de variadas técnicas e suportes, mas também inclusiva de
grupos minoritários (desde artistas mulheres, negros/as, pessoas com
deficiências, movimentos sociais, etc.) que promova a diversidade e a
representatividade de fações sociais ' que evitem a exclusão social.
É também indispensável a mobilização de agentes artísticos que tenham interesse
em aumentar a visibilidade e garantir o devido valor a muitas mulheres
artistas. Importa que os/as teóricos/as (intelectuais, editoras, académicos/as,
críticos/as, comissários/as) que escrevem sobre arte aumentem o número de
referências de obras de arte produzidas por artistas mulheres pelo principio de
que as consagradas na história da arte de hoje, se tornam nas referências e
role-modelsdas gerações vindouras.
Para uma disseminação dos feminismos discursivos na arte é, também, fundamental
preconizar um ativismo consciente que exprima os desígnios e lutas das
mulheres, articulando-o com os núcleos associativos, sobretudo com a própria
teoria feminista. Há também que recuperar os ativismos do passado e as fórmulas
semióticas mais diretas; há que aproveitar os recursos do presente e utilizar
os espaços públicos, aproveitar as novas tecnologias e usar as redes sociais '
nem que tais desígnios impliquem o passar ao lado de uma carreira artística em
prole dos propósitos do movimento feminista.
Notas
1 Artigo realizado para o âmbito da tese de doutoramento (com o apoio da FCT)
intitulada Condições de Produção e Práticas de Receção da Arte Feminista '
Universidad del País Vasco.
2 Instituto de Sociologia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto
(Porto, Portugal). Endereço de correspondência: Instituto de Sociologia -
Faculdade de Letras da Universidade do Porto - Gabinete 251 (Torre B ' Piso 2)
- Via Panorâmica, s/n - 4150-564 Porto - Portugal. E-mail:
fonsecarppd@hotmail.com
3 ( ) Podem surgir problemas de prazos e atrasos nos pagamentos, entre o
comprador e galerista e entre galerista e artista, ou querelas relacionadas com
descontos e reajustamentos de preços e a sua repercussão nas margens de ganho
respetivas destes dois últimos. Genericamente, nestes períodos, tende
naturalmente a verificar-se um afrouxamento das relações económicas entre
galeria e artista. (Melo, 1994: 46)
4 Considere-se, a título de exemplo, a capa da revista Timeem que Damien Hirst
surge como uma rock star,ostentando poder e reforçando a fama que o artista
pompeia no campo da arte.
5 A inclusão das obras de arte num mercado concorrencial terá começado no
século XIX quando os/as artistas, muitos/as sem os seus mecenas, refletiram
sobre o que ocorria dentro da esfera político- económica (e em certos casos se
lhe adiantavam), procurando mudar os fundamentos do juízo estético com a
finalidade de vender o seu produto. No que diz respeito às mulheres artistas,
circunstâncias sociais, familiares, mas também de ordem institucional, eram
impeditivas para que estas acedessem às escolas de arte e se dedicassem à
criação artística.
6A história da arte é reveladora de como determinado estilo, descoberto por
determinado/a artista, consegue depois reunir seguidores/as que se apropriam
desse estilo, ainda que de forma individual, formando posteriormente o que tão
vulgarmente foi designado como corrente artística.
7 As tendências artísticas, os diferentes estilos, as correntes artísticas, as
escolas concorrentes, são essenciais para fundamentarem e estruturarem uma
história da arte com as suas direções e discursos canónicos. As categorizações
contextualizadoras de tendências, estilos ou correntes, não deixam de ser
discursos que têm uma utilidade autolegitimadora.
8 O mercado secundário pode incluir aqueles espaços que, muitas vezes não sendo
instituições reconhecidas pelo mercado primário, legitimam exposições de arte,
eg.:galerias e centros culturais locais, juntas de freguesia, bares,
discotecas, cafés, etc. Estes espaços alternativos, onde o mercado também
funciona, não têm, porém, o prestígio e a movimentação dos grandes agentes
artísticos, o que muitas das vezes pode dificultar a ascensão de uma carreira
artística.
9 Dados relativos aos homens retirados em The Week, 8 Feb 2012.
10 Dados relativos às mulheres retirados em: Johnson, 2008: s/p.
11 Dado relativo à obra de Barbara Kruger, retirado em Russeth & Douglas,
2011: s/p.
12 Curadores e programadores jogam um papel fundamental como legitimadores
porque estabelecem enquadramentos e determinam se os projetos artísticos devem,
ou não, ser incluídos em circuitos institucionais. São estes agentes que
classificam os trabalhos que permitem que estes acedam aos públicos (Cf. Conde,
2003: 312).
13 Ainda no que concerne à discriminação, Idalina Conde revela que os formatos
de obras como instalações ou novos mediaconsistem em fatores de exclusão por
parte de instituições (Cf. Conde, 2003:312), mas sobretudo por parte de agentes
económicos.
14 Considere-se como exemplo o icónico trabalho artístico feminista de Barbara
Kruger
15 Lei que também foi aplicada em Espanha mas que não é respeitada pela maioria
das instituições públicas.