Recensão crítica do livro
RECENSÃO
Recensão crítica do livro
Portugal nas Transições ' O Calendário Português desde 1950
Miguel Quaresma Brandão1
Universidade do Porto
Trata-se do penúltimo livro de Mário Murteira: um ensaio económico e
sociológico de 167 páginas, publicado pelo Sítio do Livro, numa edição da CESO
CI Portugal, que adicionou mais um título bibliográfico à vasta obra publicada
deste conceituado economista, Professor Emérito e Professor Catedrático
Jubilado do ISCTE- IUL, recentemente falecido, que foi agraciado, no ano de
2009, com o "Prémio Carreira" da Ordem dos Economistas e
condecorado, em agosto de 2010, com a Primeira Classe da Medalha de Mérito,
pela Presidência da República de Cabo Verde, para referirmos duas das últimas
distinções que foram atribuídas a um dos founding fathersda investigação e do
ensino das Ciências Sociais em Portugal, na década de 50 do século XX, com
Adérito Sedas Nunes, e que se podem considerar o corolário do reconhecimento
contínuo do seu longo percurso académico e científico, realizado quer em
Portugal, quer no estrangeiro.
Com uma pequena introdução, denominada "Notas Prévias" (MURTEIRA,
2011: 7-9), de Américo Ramos dos Santos (ISEG-UTL e Presidente do Grupo CESO
CI) e com um prefácio poetizado (idem: 17-18) de José Manuel Rolo (ICS-UL),
este livro de Mário Murteira pretende fazer uma leitura aprofundada, embora
sintética, do trajecto da economia e sociedade portuguesas desde 1950 (idem:
13), ao aplicar, em termos estruturais, o conceito económico e sociológico de
transição' para dar inteligibilidade científica aos processos socioeconómicos
de mudança, dando conta, neste caso específico, do fluir espontâneo e endógeno
da trajetória do Estado-nação português durante as últimas seis décadas,
enquadrado nos processos substanciais de transição que costumam ocorrer à
escala mundial. O autor defende que esses processos correspondem, na realidade,
a modos diferentes de olhar, ou interpretar, o fluir genérico de um único
processo de transição, que é afinal a própria corrente da História (idem:19),
pelo que a procura interpretar retrospetivamente, pondo em prática o princípio
metodológico, enunciado na "Apresentação" (idem: 13-15), que
consiste em comparar o presente' com múltiplos passados' (idem: 13),
tentando conhecer com a objectividade possível, o donde vimos' e onde
estamos' (idem: 14), de tal modo que, na sua opinião, embora não se possa
conhecer o sentido da corrente histórica, o olhar pela História é entendido
como um dos melhores fundamentos para descortinar os possíveis futuros que nos
aguardam (idem: 20), nesta época caracterizada por transições,
indeterminações e, afinal, perplexidades, sobre os caminhos do Homem do século
XXI (idem: 19-20).
O livro é organizado em quatro capítulos que se complementam com um
"Post- Scriptum: 2011, Em Plena Crise" (idem: 153-157) e com um
"Anexo Estatístico" (idem:158-167), composto por nove gráficos e
seis quadros estatísticos, agrupados em cinco grandes temas e com comentários
de elucidação científica, que ilustram, com dados económicos e demográficos,
provenientes de várias fontes, a essência daquilo que é descrito e defendido ao
longo do corpo do texto.
O capítulo 1, "Transições em Contexto de Crise", começa por
descrever os três processos substanciais de transição que costumam ocorrer nas
sociedades contemporâneas e que se inter-relacionam: a transição para o
mercado global' (a denominada globalização económica') (idem: 20-22), a
transição para a economia de mercado' (idem: 22-23) e a transição para a
economia baseada no conhecimento' (idem: 23-24), com a referência consequente a
algumas das tendências a eles associadas (idem: 24-31). Segue-se uma abordagem
detalhada da recente crise económica e financeira (idem: 31-34), realçando a
sua especificidade em relação às do passado, visto que é gerada por um novo
tipo de capitalismo, ávido de dinheiro e desregulado, que contamina a chamada
economia real de fragilidade e incerteza (...) fortemente condicionado por
movimentos especulativos do capital, alegando que surge um aparente consenso
sobre a necessidade de encontrar novas formas de regulação do capitalismo
(idem: 33-34). Considera, no entanto, que a fase crítica destes processos
substanciais de transição tem um lado positivo e prenuncia uma descontinuidade,
com a constituição concomitante do denominado terceiro setor ou economia
solidária, no âmbito da economia de mercado (idem: 35-38).
O capítulo 2, "Anomalias do Calendário Português", caracteriza, em
sete fases, qualificadas com um título identitário que revela os acontecimentos
essenciais que ocorreram em cada uma delas, a trajetória socioeconómica de
Portugal, desde a década de 50 do século XX até à contemporaneidade,
reportando-a aos processos de transição descritos no capítulo anterior. Mário
Murteira, ao debruçar-se sobre o assunto principal do livro, defende a ideia de
que a ditadura corporativa, personificada por António de Oliveira Salazar,
devido ao seu forte fechamento em relação a influências exógenas, funcionou
como armadura protectora do contágio da dinâmica histórica desse tempo, tendo
provocado um penoso e tardio acerto de calendário' no tempo global ( idem,
p.40), marcado por uma resistência obstinada ao que o regime de Salazar
apelidava de ventos da História', acompanhada da preservação dum sistema
colonial obsoleto (idem, p.41), até àquela que, na sua opinião, foi a grande
rutura de 1974/75, que originou a transição para a democracia parlamentar, o
fim do império colonial português e, passado pouco mais de uma década, o começo
da integração de Portugal no projeto europeu. Essas fases ( idem: 41-60) são
perspetivadas a partir de vários indicadores, desde o tempo da sociedade pré-
moderna do Estado Novo até à fase atual em que Portugal está integrado no
espaço político e económico da União Europeia.
Sucede-se o capítulo 3, que é o mais longo deste ensaio, "Portugal no
Sistema Mundial", constituído por duas grandes partes homónimas,
separadas, que começa por caracterizar a configuração do sistema económico
português, descrevendo as características e a evolução do capitalismo português
durante o Estado Novo e durante o tempo da democracia parlamentar (idem: 61-
75), entrecortados pelo período curto de transição para uma suposta economia
socialista (idem: 62-64), apesar do autor constatar que nem antes nem depois
de 1974, esse sistema esteve explícita ou implicitamente fundado num modelo de
economia de mercado de pura inspiração liberal (idem: 61), ainda que se
verifique, atualmente, uma tendência geral para a liberalização do sistema
económico, com a redução da participação direta do Estado na atividade
económica, tendo-se acelerado a integração no mercado global e também a
integração para a economia de mercado no quadro europeu, mas em contrapartida
tem sido lento o processo de construção duma economia baseada no
conhecimento' (idem:75).
Para ajudar a compreender o atraso da trajetória portuguesa, faz a
caracterização das grandes tendências demográficas, dos movimentos migratórios
e da estrutura do emprego desde 1950 (idem: 75-78), que são entendidos como
fundo contextual com óbvias implicações no atraso' português (idem: 75) e
que o condicionam. Por essa razão, esses elementos são descritos com algum
pormenor, seguindo-se a apresentação de propostas, em vários domínios ( idem:
79-82), para retomar e acelerar a convergência real da economia no contexto da
integração europeia, assegurando, ao mesmo tempo, maior coesão social (idem:
79), referindo as atuações que são necessárias realizar, através de uma
engenharia de reformas, procedente do poder político (idem: 82). Segundo Mário
Murteira, o atraso de Portugal deve-se a fundamentos culturais e surge daquilo
que designa por ideologia portuguesa' ( idem:83-88), uma noção de cunho
schumpeterianoque se refere à visão do mundo (incluindo, nessa visão, o
próprio sujeito do conhecimento, condicionado pela sua ideologia, com
consciência ou não do facto) que os portugueses têm de si mesmo e do seu
posicionamento no mundo em que vivem ( idem: 83) e que é causa e efeito do
atraso português, consistindo num complexo nacional de inferioridade que os
conduz a hipervalorizar e a imitar o que se faz lá fora e a desprezar o que
se faz cá dentro. Este fenómeno costuma estar associado àquilo que o autor
denomina de indecisão', que é a incapacidade frequente dos portugueses, quer a
nível individual, quer ao nível das organizações, de tomar decisões em tempo
útil, ignorando a sua base empírica e o tempo histórico.
Um exemplo extremo da indecisão' dos portugueses é a sua experiência tardia da
descolonização. Devido a esse facto, é feita a descrição daquilo que mudou na
ideologia e na visão do desenvolvimento das antigas colónias portuguesas, desde
a primeira vaga de independências em África até ao presente (idem : 88-104).
Também é realçada a circunstância de que a descolonização alterou o
posicionamento da economia portuguesa no sistema da economia mundial, com o
declínio das relações económicas entre Portugal e as ex-colónias e a
consequente integração do Estado-nação português no espaço europeu, subordinado
à dominância e às orientações políticas e económicas dos países centrais da
Europa, defendendo a necessidade, no início deste século XXI, de haver uma
estratégia para a reposicionar, apresentando dois cenários alternativos
possíveis, que serão expostos no capítulo seguinte (idem: 104-109).
No capítulo 4, "Os Futuros no Século XXI", o último capítulo, faz-
se uma explicação estrutural do atual atraso português, adotando os fenómenos
de ideologia portuguesa' e de indecisão' como pontos de partida, que originam
um sentimento de desconfiança recíproca entre os indivíduos nas organizações e
retardam o processo decisório, aos quais se acrescenta um duplo
condicionamento: o gapentre as gerações e a repartição desigual de rendimento e
de riqueza na sociedade portuguesa, que o sistema de ensino consolida em vez de
superar, devido ao facto de existir, na sua opinião, uma democracia política,
apenas formal, e não uma democracia económica. Para obter uma panorâmica das
causas do atraso português nas últimas décadas, é apresentado o modelo social
do período democrático, bem como é feita a explicitação de algumas hipóteses
relativas à evolução do sistema do mercado global, por condicionarem o futuro
socioeconómico de Portugal (idem: 111-123). Em consequência, o autor apresenta,
agora com muito mais detalhe, os dois cenários genéricos antes referidos, que
se alicerçam a partir das dimensões desse modelo social e constituem visões
alternativas dos futuros possíveis para o Estado-nação português: o Cenário I,
Integração na Deriva Periférica, que corresponde ao aprofundamento da
integração portuguesa no quadro ibérico, sem questionar o aprofundamento da
integração europeia. Trata-se de perspectivar uma gradual diluição da
identidade portuguesa nesse quadro, com acentuada periferização na Europa
(idem: 107 e 123-126), e o Cenário II, Identidade Própria e Valorização da
Diferença, entendido como o mais desejável mas também como o mais improvável,
no qual são apresentadas medidas concretas e soluções adequadas para a
superação desse atraso, e que consiste na afirmação de identidade própria, ou
valorização da nossa diferença, num processo de globalização, não apenas no
contexto europeu, mas também aberta a outras áreas, designadamente o conjunto
dos países de língua portuguesa e países como a China e a Índia, de crescente
influência na economia mundial, e com os quais Portugal tem laços históricos e
culturais específicos (idem: 107-109 e 126-143).
É a partir do confronto entre esses dois cenários possíveis para o futuro da
economia e da sociedade portuguesas, que este ensaio, muito denso e de âmbito
macroeconómico e macrossociológico, constrói a sua conclusão, descrevendo
aquilo que é possível e provável acontecer a Portugal, no atual contexto de
crise económica e financeira, quase generalizada por todos os países (idem:
145-157). Em face das atuais circunstâncias políticas e económicas, o autor
admite que o primeiro cenário ocorrerá com mais probabilidade, apesar de ser
indesejável, facto que nos remete para a citação da Ode Marítimade Fernando
Pessoa (Álvaro de Campos), que faz a abertura do livro e que parece revelar o
verdadeiro sentimento de Mário Murteira, quer enquanto cidadão, quer enquanto
cientista social, perante a situação de Portugal no presente e perante a sua
evolução no futuro: Dentro de mim há um só vácuo, um deserto, um mar
nocturno.
Referências bibliográficas
MURTEIRA, Mário (2011), Portugal nas Transições ' O Calendário Português desde
1950, Lisboa, Sítio do Livro / CESO CI Portugal, com o apoio do INDEG/ ISCTE
Business School. Colectânea Economia e Sociedade, nº 1.
Notas
1 Investigador Integrado do Instituto de Sociologia da Faculdade de Letras da
Fundação Universidade do Porto. Linha de Investigação Trabalho, Emprego,
Profissões e Organizações. Bolseiro de Investigação Científica da Fundação
para a Ciência e Tecnologia, I.P., do Ministério da Educação e Ciência.
Doutorando em Sociologia (DS-FLUP) (Porto, Portugal) . Endereço de
correspondência: Instituto de Sociologia | Faculdade de Letras da Fundação
Universidade do Porto-Torre B, 2º Piso, Gabinete 251-Via Panorâmica, s/n-4150-
564 Porto - Portugal. E-mail: mbrandao@letras.up.pt