Política e administração: em que medida a atividade política conta para o
exercício de um cargo administrativo
Introdução
A questão da separação entre eleitos e nomeados foi, pela primeira vez
apresentada, em 1887, por Woodrow Wilson quando, nos seus escritos sobre
administração pública, afirma que os políticos eleitos não devem interferir com
a administração enquanto representada por profissionais designados para os
cargos e funções, nem esta com aqueles. Os gestores, isto é, os dirigentes,
trabalhadores da administração, funcionários e servidores cumprem as
orientações e respondem perante os políticos eleitos.
Woodrow Wilson assentou a sua construção da ciência da administração pública em
princípios científicos e na dicotomia entre Política (os eleitos) e
Administração (os nomeados para ocupar cargos não eleitos). No caso de
Portugal, essa dicotomia centrase entre os membros do governo ou o presidente
de um município e respetivamente os diretores gerais, os gestores públicos ou o
diretor municipal. Para o autor e mais tarde presidente dos Estados Unidos da
América, esta afastaria o domínio do sistema dos despojos, o qual era a origem
da corrupção e discricionariedade (Rocha, 2001).
Nesta perspetiva, prevalece uma imagem platónica do gestor, executor de
políticas que constituiria uma espécie de homem máquina que executa o que lhe
mandam. É a retórica do gestor organizador e controlador do trabalho produtivo
sob grande diversidade de condições e situações, nomeadamente políticas, cuja
atuação estaria pautada pela racionalidade, otimização, eficiência, eficácia e
economia. Este gestor tal como foi idealizado por Wilson centra a sua
atividade, essencialmente, no controlo exercido diretamente sobre pessoas e
objetos e na informação destinada à monitorização do comportamento dos
indivíduos.
Esta separação reforça ainda o poder dos gestores públicos, como grupo
profissional face aos políticos. Por um lado, a profissionalização permite o
controlo legítimo de um certo tipo de trabalho que, desde logo, significa
afirmação do direito do profissional desempenhar o trabalho da forma que
considerar mais adequada. Por outro, através de conhecimentos especializados,
princípios ou regras extraídas da experiência que são institucionalizados
através de estratégias de controlo cognitivas ou organizacionais, afirma a sua
autoridade profissional.
Importa igualmente salientar que esta questão da separação entre Política e
Administração prende-se com uma outra que a antecede, que anda à volta das
áreas científicas onde assenta a ciência da administração pública.
Metaforicamente, a ciência da administração pública pode ser representada por
uma espécie de tripé apoiado em três teorias diferentes, mas complementares
para este efeito: na teoria da democracia/ ciência política/ direito; na teoria
da decisão/ ciência da gestão; e na teoria das organizações/ sociologia.
Ora, apesar de a administração pública possuir um campo de estudo definido
com alguma clareza desde os escritos de Bonnin (1809), tendo prosseguido com o
labor científico de uma plêiade de pensadores americanos, ingleses, franceses,
alemães, portugueses e espanhóis e italianos, estas três teorias que sustentam
o tripé ainda fazem sentir fortemente a sua presença. Estas três teorias que
constituem as pernas deste tripé prevalecerem ativas no interior da ciência da
administração não tendo dado espaço para um novo corpo teórico emergir.
Acresce que nos escritos destes autores, um corpo teórico foi ganhando
maturidade e conquistando autonomia científica através da urdidura de um saber
que, se no início se assemelhava ao enunciado de boas práticas administrativas,
com o tempo foi obtendo precisão e capacidade de compreensão e previsibilidade
da realidade. Acresce que as instituições administrativas alcançaram um elevado
grau de complexidade, especialização e diferenciação e os trabalhadores e
dirigentes do setor público profissionalizaram-se com base nos conhecimentos
recebidos. Todavia, a dimensão prática destinada a treinar profissionais e
técnicos capazes de responder ao desafio que os cidadãos iam colocando à
Administração sobrepôs-se à dimensão teórica, especulativa e abstrata da
ciência.
Esta preocupação pela formação de gestores marca desde o verdadeiro início a
ciência da administração com os trabalhos pioneiros de Bonnin (1809), em que ao
autor deu vida à ciência da administração com os seus célebres quatro
princípios da administração pública: a administração nasce com a comunidade; a
sua conservação encontra-se no princípio da administração; a administração é o
governo da comunidade; a ação social é o seu caráter e a sua atribuição é a
execução das leis de interesse geral.
A consequência desta preocupação pela formação de gestores expressa-se na
própria literatura onde se destaca a presença de trabalhos mais descritivos do
que interpretativos, onde a dimensão aplicada se sobrepõe à especulativa ou
teórica. Por isso, a ciência da administração ainda hoje enfrenta uma crise
epistemológica (Candler, 2008), com os contextos nacionais a sobreporem-se ao
crescimento internacional de um corpo teórico comum. Há uma perspetiva
paroquial que se impõe a uma outra transversal às diversas culturas e Estados-
nação.
Reconhece-se, porém, que estas limitações e constrangimentos da ciência da
administração, no seio da qual tem lugar esta discussão da dicotomia Política/
Administração, têm reforçado a racionalidade técnica da intervenção da
Administração. Com efeito, nesta dicotomia subjaz a ideia de um certo tipo de
racionalidade prosseguido pela Administração que é de natureza diferente da
Política. A racionalidade técnica faculta uma base segura objetiva e forte, em
termos cognitivos, para certas formas de ação administrativa, mesmo se
atualmente desafiada por modos alternativos de cálculo e comportamento. Ao
contrário dos clássicos hoje incorpora-se uma gama vasta de modos não
racionais de pensar e agir que se misturam e alternam com sistemas mais
formais e racionais de controlo da Administração.
1. Contexto
Uma das perceções mais fortes dos portugueses, patente em todos os inquéritos
realizados com maior ou menor exigência científica, era a de que os dirigentes
da Administração e os gestores públicos eram nomeados por escolha política,
independentemente dos motivos, sem que o mérito constituísse um critério de
exclusão. Nos quarenta anos de vida democrática em Portugal esta constitui uma
caraterística da Administração. Assim, os jornais recorrentemente, em vésperas
de eleições legislativas, denunciavam uma série de casos de nomeações de última
hora.
Até ao XVII Governo Constitucional, que tomou posse a 12 de março de 2005,
havia uma assimetria de perceções sociais acerca do caráter político dos
dirigentes superiores da administração. Estes, quando questionados, assumiam-se
como não políticos, mas a sociedade em geral encarava-os como tal. Assim, o
XVII Governo Constitucional tentou resolver esta situação assumindo que todos
eram políticos e, consequentemente, cairiam com o Governo, sem direito a
indemnização. Apenas as secretarias e as inspeções gerais em cada ministério
constituíam exceção a esta regra. Se é verdade que com esta opção o governo
esclarecia e resolvia a dúvida sobre o caráter político destas nomeações, não
menos verdade é que a solução passava pela assunção da sua politização.
Neste ponto, em artigo recente, as administrações públicas de Portugal e
Espanha são vistas desta forma:
En los Países latinos España e Portugal desde luego, la
administración pública ha sido en medida no desdeñable y sobre todo
en los últimos tiempos, botín de la clase política y sindical, amén
de restos de apropiación corporativa (un tanto menguante frente a la
invasión política y sindical. (Soriano e Bilhim, 2013: 36)
O XIX Governo Constitucional assumiu uma opção diametralmente oposta:
profissionalizar a direção superior da Administração. Assim, pela Lei 64/2011
de 22 de dezembro, cria uma entidade administrativa independente, denominada
Comissão de recrutamento e seleção para a Administração Pública (CReSAP), com a
missão de recrutar e selecionar os candidatos para cargos de direção superior
na Administração Pública.
Para salvaguardar a autonomia dos membros da Comissão o legislador estipula que
os membros da Comissão e da bolsa de peritos atuam de forma independente no
exercício das competências que lhes estão cometidas por lei e pelos Estatutos,
não podendo solicitar nem receber instruções do Governo ou de quaisquer outras
entidades públicas ou privadas (art.º 19º da Lei n.º 2/2004, de 15 de janeiro,
alterada e republicada pela Lei n.º 64/2011, de 22 de dezembro).
Às atribuições e competências que esta lei atribuiu à CReSAP outras se lhe
juntaram com a alteração do Estatuto do Gestor Público, aprovado pelo Decreto-
Lei n.º 71/2007, de 27 de março, e alterado pelo Decreto-Lei n.º 8/2012. Com
efeito, a seleção dos gestores públicos passou a assegurar a observância de
critérios de transparência, isenção e mérito. Para tanto, foi cometido à
Comissão de Recrutamento e Seleção para a Administração Pública a avaliação
curricular e o parecer sobre a adequação de perfil da personalidade a propor
para exercer o cargo de gestor público.
Com a alteração no estatuto das empresas municipais cujos dirigentes passaram a
estar abrangidos pelo Estatuto do Gestor público, os membros dos respetivos
conselhos de administração que até recentemente se encontravam fora desta
avaliação da CReSAP passaram igualmente a necessitar desta avaliação de perfil
bem como todos os gestores públicos que integrem sociedades anónimas de capital
total ou parcialmente público. Foi, assim, fechado o perímetro dos gestores
públicos, permanecendo por fechar os dirigentes superiores das administrações
municipais e regionais que ainda não se encontra obrigados a concurso público.
Acresce que o legislador atribuiu à CReSAP a competência para definir, por
regulamento, os critérios aplicáveis na avaliação de candidatos a cargos de
gestor público ou de dirigente superior da Administração, designadamente, as
competências de liderança, colaboração, motivação, orientação estratégica,
orientação para resultados, orientação para o cidadão e serviço de interesse
público, gestão da mudança e inovação, sensibilidade social, experiência
profissional, formação académica e formação profissional. A densificação destes
doze critérios ficou a cargo da CReSAP que possui por defeito uma determinada
definição de cada critério que justificadamente pode ser adaptado e
endogeneizado a contextos específicos de gestão (por exemplo, o perfil do
presidente do Conselho de Administração da RTP não é precisamente o mesmo do
presidente do Conselho de Administração de um centro hospitalar e vice-versa).
Ora, neste contexto, não se pode deixar de colocar a questão de avaliar a
experiência obtida por um candidato no exercício de cargo político como seja
presidente de município, membro de Governo ou deputado.
Para alguns, será sempre difícil estabelecer uma linha divisora de águas entre
o político e o técnico. Para justificar a sua posição não deixarão de recorrer
ao caso de certos municípios de menor dimensão, sem escala para disporem de
diretores municipais onde no quotidiano o exercício de funções dos eleitos
integram um pouco da dimensão política e da dimensão técnica (decisão sobre o
que fazer e a quem agradar ou desagradar), com a técnica preocupada com a
racionalidade do uso dos meios. Num município maior esta última dimensão
estaria a cargo de um diretor municipal, o burocrata na expressão de Wilson
(1941 (1887)). Salienta-se que entre os atributos específicos da ciência da
Administração, encontra-se a submissão da Administração ao poder político
(Pollit, 1993). A consequência óbvia desta submissão seria a transformação da
administração pública, enquanto atividade, num conjunto de meios destinados à
satisfação de fins políticos.
Para outros, fará todo o sentido estabelecer esta divisão de águas por
corresponder a duas racionalidades diferentes ' a técnica e a política. Neste
ponto importa esclarecer desde logo que um sistema democrático se compõe,
primeiro, de uma nação ou povo portador da formação de vontade política; em
segundo lugar, de uma comunidade de cidadão legalmente constituída, enquanto
associação voluntária de sujeitos livres; e, por último, do Estado enquanto
organização que permite que os cidadãos ajam coletivamente. É por esta ação
coletiva que o Estado assegura as liberdades, direitos e garantias e em
particular procede à provisão de bens e serviços de cariz tendencialmente
público, com o objetivo de servir a coletividade, e que têm como principal
fonte de financiamento os impostos.
Ora, é sobre o Estado, enquanto organização, quer no sentido amplo, quer no
restrito que recai a nossa reflexão neste trabalho. Nele os dois elementos '
político e técnico ' encontram-se presentes. A racionalidade política é
marcadamente ambígua (Carvalho, 2013). É um modelo fundamentalmente
comportamental cujo critério de decisão é serem aceitáveis os resultados,
independentemente do custo, isto é, saber a quem se agrada ou desagrada com tal
decisão. Nessa perspetiva, trata-se de um modelo incremental (Lindblom, 1991)
baseado na racionalidade limitada de Simon.
A racionalidade técnica ou organizacional (Simon, 1960) encontra-se ligada a
resultados que beneficiam a organização ou a instituição em si mesma, onde
sobressai o fator custo, ou seja, a preocupação com a obtenção do melhor
rácio entre meios e resultados. Em suma, os políticos preocupam-se na tomada de
decisão com a estratégia, isto é, com o que fazer e a quem agradar; a área de
competência dos técnicos, pelo contrário, é a eficiência e o como fazer.
2. A Racionalidade das reformas da Administração Pública
As ciências sociais, desde os anos setenta do século passado, salientam o facto
de as formas organizacionais que dominaram as sociedades modernas, desde a
segunda metade do século XIX, não se adequarem às condições económicas,
políticas, tecnológicas do tempo atual (Giddens, 1992). A burocracia racional,
com ênfase na disciplina, no controlo centralizado e na divisão do trabalho
parece pouco adequada às necessidades da globalização e de uma sociedade aberta
e de risco. Muitos autores têm abordado este tema de formas organizacionais
pós-modernas de maneiras muito diferentes. Todavia, concordam que a trajetória
do desenvolvimento institucional, nas sociedades industriais ou capitalistas
está a empurrar na direção de um mundo organizacional pós-moderno.
Para Fernandes (2006: 145):
A globalização cria a descoincidência entre a sociedade e a
atividade política. Ao lado dos Estados nacionais, passa a existir
uma sociedade mundial não estatal, que se compõe de atores
transnacionais muito diversos, com as suas próprias modalidades de
legitimação política. A sociedade mundial está a ser sujeita a um
processo de crescente politização, em simultâneo com a
despolitização dos Estados'.
Estas novas exigências conduzem à necessidade de reformar o que existe,
desenvolvendo formas organizacionais que cortam em certa medida com a
racionalidade burocrática clássica e reforçam a tendência para a transformação
das pirâmides estruturais em redes de relações. Nestas redes alteram-se as
relações entre centro e periferia; procede-se à descentralização de certos
processos e a centralização de outros; muda-se a amplitude de controlo;
reforma-se o tipo de especialização.
Este movimento, comum à sociologia das organizações, não deixa de fora as
organizações públicas. A reforma da Administração é um instrumento com muitos e
diferentes fins: equilíbrio orçamental e diminuição da despesa pública;
qualidade do serviço público oferecido aos cidadãos; eficiência e eficácia; e
responsabilização e prestação de contas de todos. Para atingir estes objetivos
finais pode ter necessidade de alcançar objetivos intermédios, tais como:
reforma do estatuto dos trabalhadores e dos dirigentes; do sistema de
remunerações de carreiras e avaliação do mérito; da gestão financeira e
operacional com a centralização ou partilha de serviços entre outros.
As reformas não valem por si mesmo, elas são normalmente consideradas meios
destinados a obter uma determinada finalidade. Kurt Lewin (1951) definiu o
processo de mudança organizacional com base em três diferentes fases:
descongelamento, mudança, recongelamento. Seguindo idêntica linha de
pensamento, Pollit e Bouckaert (2004), ao refletir sobre os processos de
reforma administrativa, concebem um modelo de cenários onde existem três fases
' o ponto de partida alfa, o ponto de chegada ómega e a trajetória ou cadeia de
passos/ eventos entre os dois pontos.
Na perspetiva de Lewin, todo o processo de mudança requere que se atribua nova
forma ao formato inicial, quer se trate de processos de gestão ou de
configurações organizacionais. Assim, se a formatação anterior não passar pelo
estado líquido, para voltar a congelar numa nova forma não haverá processo de
mudança nem reforma. O autor está concentrado no objeto ou conteúdo da mudança
o que mudar e no processo, ou seja, no como mudar (Bilhim, 2008). Pelo
contrário, Pollit e Bouckaert estão centrados no processo, ou seja, a sua
preocupação é antes a de rastrear os processos de reforma anunciados,
identificando o ponto de partida alfa e descrevendo a cadeia de eventos
necessários para atingir o ponto ómega.
Tanto Lewin quanto Pollit e Bouckaert estão preocupados com a gestão do
processo de mudança ou de reforma e, nesta medida, procuram descrever o
processo ou cenário que desejavelmente deveria ser seguido pelos reformadores.
Para Pollit e Bouckaert, os cenários podem ser um pouco mais do que um conjunto
de ideias e orientações. Podem estar expressos num plano estratégico, com ações
específicas, tempos e objetivos definidos. Os cenários não são sempre
completos, na medida em que um ou mais dos três elementos podem estar ausentes.
Por exemplo, se apenas existe um ómega ' visão de um futuro desejado ' sem uma
especificação de alfa ou da trajetória, então falamos de utopia. Pode também
acontecer existir um diagnóstico bem feito do ponto de partida e uma certa
ideia da trajetória, mas não haver ideia alguma sobre o resultado de tudo isso,
ou seja, um ir na onda e prosseguir uma trajetória por mimetismo externo do que
está na moda.
Ao contrário de Lewin, estes autores alertam para a falta de racionalidade
frequente com que este tema é tratado (Pollit e Bouckaert, 2004: 66):
scenarios, with each of the three main elements clearly analysed and described,
are definitely the exception rather than the rule in public management reform
. Todavia, na perspetiva dos autores seria desejável que nos processos de
reforma fosse seguido este modelo dos cenários.
Refletindo sobre os processos de reforma da Administração Pública Portuguesa
nos últimos quarenta anos chega-se à conclusão que, após o processo de
instauração da democracia representativa, período em que em certos pontos se
andou na direção contrária à dos países da OCDE (Portugal cometia os erros que
as velhas democracias já tinham cometido), só a partir de meados dos anos
noventa do século passado, o movimento conhecido na literatura anglófona por
New Public Management(NPM) chegava ao País. Portugal entra no comboio da nova
gestão pública com o XIII Governo, entre outras medidas, com a introdução dos
concursos para o exercício de cargos de direção intermédia até então eram
objeto de escolhas de confiança política.
Mas será este movimento de reforma um processo do tipo nova gestão pública?
Para Pollit e Bouckaert, (2004: 99): in the Continental European states is a
distinctive reform model, one which we have decided to call the Neo-Weberian
State (NWS). Na perspetiva dos autores, os processos de reforma ocorridos fora
do perímetro dos países de língua e expressão cultural do ponto de vista
administrativo anglófono não foram atingidos propriamente pela nova gestão
pública, mas antes sofreram uma reforma neo- weberiana. Esta linha de
pensamento é corroborada em reflexões anteriores sobre o conceito de
modernização administrativa, profissionalização dos gestores públicos,
avaliação e promoção com base no mérito (Bilhim, 2000b).
Os elementos weberianos mais destacados nestes processos de reforma ocorridos
em Portugal dizem respeito à reafirmação do papel do Estado como o principal
ator para os novos problemas da globalização, mudança tecnológica, diminuição
demográfica e damos ambientais; da democracia representativa ao nível central,
regional e local; do papel do direito administrativo pela redução do peso do
Juris imperium, reforçando a igualdade das partes contratantes (veja o caso da
aprovação do código do processo administrativo); do serviço público, com
distintivo caráter, cultura, termos e condições.
Entre os elementos novos destacam-se a criação de uma cultura de serviço ao
cidadão, fruto de uma nova orientação estratégica voltada para o exterior/
envolvente, destinada a satisfazer os cidadãos, que substitui a orientação
anterior de caráter mecanicista concentrada no cumprimento de regras,
regulamentos e lei; o reforço da democracia representativa baseado na premissa
de que a mesma não é falsa, mas é fraca e, consequentemente, necessita de ser
apoiada por uma maior atividade cívica, como é o orçamento participativo; a
mudança do foco de controlo de ex antepara ex post, com reforço da gestão por
resultados; a descentração da atenção dos funcionários da interpretação e
aplicação da lei, para a ideia que gerir é medir, medir é comparar e comparar é
melhorar permanentemente.
O modelo Neo-Weberiano encontra-se plasmado nos estatutos dos dirigentes da
administração pública portuguesa, aprovado pela Lei n.º 2/2004, de 15 de
janeiro, alterada pela Lei n.º 64/2011, de 22 de dezembro. Este diploma dedica
a seção II aos princípios de atuação dos dirigentes da administração pública e
no seu art.º 3.º estabelece que constitui missão do pessoal dirigente assegurar
um bom desempenho do serviço através da otimização dos recursos humanos,
financeiros e materiais e a satisfação dos destinatários da sua atividade.
Este mesmo diploma dedica o seu art.º 5.º aos princípios de gestão,
estabelecendo no início que os dirigentes devem promover uma gestão orientada
para resultados, tendo em conta a calendarização temporal de objetivos,
definindo os recursos a utilizar e os programas a desenvolver. Ficando ainda os
dirigentes obrigados a aplicar de forma sistemática mecanismos de controlo e
avaliação dos resultados.
Quando à orientação da sua atuação, o dirigente deve pautar-se por critérios de
qualidade, eficácia, eficiência, simplificação de procedimentos, cooperação,
comunicação eficaz e aproximação ao cidadão. O pessoal dirigente deve ainda
liderar, motivar e empenhar os seus trabalhadores para o bom desempenho do
serviço. Acresce que o legislador consciente do papel socializador da formação
profissional estabelece no n.º 4 deste artigo que os dirigentes devem adotar
uma política de formação que contribua para a valorização profissional dos seus
trabalhadores e o reforço da eficiência.
A secção III é dedicada às competências do pessoal dirigente e o art.º 7.º
estabelece um conjunto de doze competências no âmbito da gestão geral; de cinco
no âmbito da gestão de recursos humanos; seis competências no âmbito da gestão
orçamental e realização de despesas; e de quatro no âmbito da gestão de
instalações. Os conteúdos destas competências, que vão da elaboração de planos,
avaliação do mérito, elaboração e execução de orçamentos à conservação de
equipamentos e instalações, visam, no seu conjunto, a eficiência, a eficácia, a
economia, a satisfação dos cidadãos e dos destinatários e a razão de ser das
atividades desenvolvidas.
Os dirigentes superiores da Administração pautam a sua atuação durante o
mandato de cinco anos por uma carta de missão, que consta do aviso de
abertura do procedimento concursal onde são fixados os objetivos que o Estado
lhes estabelece para o mandato, sujeitos a revisão periódica por parte dos
políticos e cuja responsabilidade de designação, em virtude da legislatura ser
de quatro anos, nunca será o mesmo governo e dificilmente o mesmo político.
Moldura idêntica se encontra nos estatutos do gestor público aprovado pelo
Decreto-Lei n.º 71/2007, de 27 de março, alterado pelo Decreto-Lei n.º 8/2012
de 18 de janeiro. No caso vertente, o contrato de gestão previsto equivale à
carta de missão anterior. Neste contrato de gestão, previsto no art.º 18.º do
Decreto-Lei, n.º 71/2007, de 27 de março, alterado pelo Decreto-Lei, n.º 8/
2012, de 18 de janeiro, definem-se metas objetivas, quantificadas e mensuráveis
anualmente durante a vigência do contrato, nomeadamente em matéria de
eficiência financeira e outros objetivos específicos. Acresce que, nos termos
do n.º 5 deste mesmo artigo, o contrato de gestão deve conter a demissão quando
a avaliação do desempenho seja negativa.
Da análise feita aos estatutos quer de dirigente superior da Administração
Pública, quer de gestor público ressaltam os elementos de reforço do modelo
weberiano tradicional e a emergência de valores novos, nomeadamente em matéria
de responsabilização e prestação de contas. Os dirigentes da Administração ou o
gestor público deixam de ser avaliados em termos da interpretação e aplicação
que fazem da lei, passando esta a constituir um meio e emergindo como fim a
satisfação de objetivos quantificáveis de satisfação dos cidadãos e de
eficiência de gestão, ou seja, obtenção do melhor resultado ao menor custo.
Ora, isto é racionalidade técnica; aqui não há ambiguidades, preocupação com a
quem a decisão agrada ou desagrada.
3. Uma Dicotomia Polémica
Na perspetiva da dicotomia entre políticos e burocratas, o campo da
Administração é um campo de atividades apolíticas. A Administração está fora da
esfera própria da política. As questões administrativas não são questões
políticas. Embora a política determine as tarefas para a administração, não se
deve tolerar que ela maneje as suas repartições. A Política é o campo
específico do estadista, a Administração, do funcionário técnico. A elaboração
de diretrizes políticas não prescinde da ajuda da Administração, mas nem por
isso a Administração é Política (Wilson, (1941 (1887): 219). No caso vertente
do gestor público, seria competência dos políticos a definição das políticas e
dos administradores a implementação das mesmas segundo regras de boa gestão.
Os princípios e regras de boa gestão não se baseariam tanto na gestão
científica de Taylor (Rocha, 2001), mas antes no resultado do labor científico
que os principais autores, construtores dos fundamentos da ciência da
administração iam obtendo. Para Wilson (1941 (1887): 209): The object of
administrative study is to rescue executive methods from the confusion and
costliness of empirical experiment and set them upon foundations laid deep in
stable principle .
Salienta-se que, nesta época, os cultores da ciência da administração
esforçavam-se por estabelecer princípios que a distinguissem das restantes
ciências, tal como fez Taylor na organização científica do trabalho. Quizá la
administración pública sea la ciencia social que más haya invocado
losprincipios' , como eje axial de sus formulaciones científicas. Incluso, la
segunda edición del libro de Bonnin los muestra con orgullo en su título
(Orozco, 2009: 18).
Na identificação destes princípios fundadores da ciência da Administração e
guias orientadores da ação de dirigentes e gestores públicos salientaram-se na
década de trinta do século passado Luther Gulick e Lyndal Urwick (1937) ao
desenvolver o movimento da administração científica2, que se distingue do
trabalho realizado vinte anos antes por Frederick Taylor conhecido por
scientific management, que se dedica aos fluxos de trabalho procurando a
eficiência económica, através da aplicação da engenharia aos processos de
gestão.
Esta conceção de princípios científicos de caráter geral que superavam as
regras de aplicação local pode estar na base da construção de uma certa
retórica que transmite, com frequência, uma imagem platónica do gestor. Ele
seria executor racional do sistema de planificação e controlo de uma estrutura
organizacional, adaptável à envolvente. Quando encaramos o gestor pelo lado de
dentro, vemos uma imagem muito diferente. A de alguém lutando para chegar a um
acordo com a realidade que enfrenta e que se recusa a ajustar ou a conformar-se
com as categorias e princípios universais que aprendeu.
Estes princípios científicos pautam a profissão dos dirigentes da Administração
e gestores públicos na implementação das políticas decididas pelos eleitos. São
os gestores os responsáveis pela organização e controlo do trabalho sob grande
diversidade de condições e situações, através de um conjunto de mecanismos,
processos e estratégias respeitantes à produção de bens e serviços. As práticas
de gestão consistem numa rede complexa de relações que se estabelece entre as
dimensões técnica, política e ética, característica do desempenho de funções de
gestão (Reed, 1989).
Nesta perspetiva, os gestores são profissionais de uma atividade cujo exercício
exige a posse e a aplicação de saberes que os habilitam a lidar com as
exigências contraditórias e as pressões impostas pela mobilização de recursos e
a pressão dos esforços para manter aqueles profissionais dentro dos limites
prescritos. O gestor é o equilibrista que, por um lado, em tensão negoceia as
pressões do lado da lógica do controlo burocrático e do lado das exigências
operacionais; e, por outro, procura manter o equilíbrio entre as preocupações
da manutenção da integridade e sobrevivência da estrutura organizacional e o
pragmatismo das pressões de curto prazo destinadas a colmatar crises
quotidianas e a encontrar soluções exequíveis. Pode ser grande a dificuldade
dos gestores ao procurar conciliar o conflito entre a racionalidade
instrumental, indispensável à sobrevivência e uma racionalidade ontológica que
exige uma fidelidade aos fins éticos que devem orientar os atos de gestão.
Na perspetiva oposta à da dicotomia, encontra-se a da fusão entre política e
administração. Nos Estados Unidos da América, no final da década de quarenta do
século passado, um conjunto de autores, tendo à cabeça Waldo, contestam
abertamente esta dicotomia (Waldo, 1946; Simon, 1997 (1947)). Waldo bate-se
contra alguns pressupostos da teoria ortodoxa da dicotomia tais como: a
compatibilidade entre democracia e eficiência e a separação clara entre
decisores e executores nas políticas públicas. A primeira compatibilidade teria
levado a criar uma ciência destinada a maximizar a eficiência na administração
pública, tarefas dos administradores designados.
O autor analisa o papel da administração à luz de cinco perspetivas: a visão
sobre o que deve ser uma boa sociedade; quais os critérios a seguir nas
decisões que digam respeito à coletividade; quem deve governar; como devem ser
repartidos os poderes do Estado, por exemplo, como articular o poder
legislativo, judicial e executivo; a centralização e a descentralização ou
centralização regionalização.
Waldo critica fortemente a crença dos estudantes de administração pública na
eficiência administrativa e de que se houver eficiência na administração haverá
uma sociedade melhor, bem como que deva ser este o seu campo específico de
ação. Critica igualmente a crença de administradores e funcionários na
otimização do rácio in put output.
Em seu entender, esta crença e postura levariam a identificar a administração
privada com a pública e argumenta que a equidade, o consenso, a satisfação de
interesses particulares são critérios de ação em democracia e que os mesmos não
são em si critérios de eficiência. Acrescenta que os administradores aceitam
facilmente a eficiência como o seu principal princípio e guia de ação, mas
aceitam igualmente a democracia que é notoriamente uma base pouco eficiente
para a organização de uma sociedade.
A polémica instalada nos Estados Unidos da América no final dos anos quarenta
do século passado conduziu a que entre os anos 1950 e 1970 a sabedoria em uso
fosse a da não existência de qualquer dicotomia. Todavia, a partir dos anos
oitenta do século passado, a dicotomia voltou à agenda de investigação e ensino
e está na base da control bureaucracy theory. Esta perspetiva teórica
estabelece a diferença entre atos e atores administrativos e políticos. Aliás,
numa tentativa de responder a Herbert Simon, mais preocupado com a
fundamentação empírica da ciência da administração, adianta que o político
seria a variável independente e a administração a dependente. Nesta abordagem,
os políticos eleitos devem controlar os administradores (funcionários)
designados, mas não se confundem com eles e respeitam o seu específico campo de
ação.
Atualmente, o encanto teórico da racionalidade técnica esmoreceu, na medida em
que a decisão ' o ato mais nobre da gestão ' passou a ser encarada como um
processo dominado pelas práticas cognitivas, ideológicas e políticas que
destruem a clássica objetividade e neutralidade. Aliás, na perspetiva de Weick
(1969), a racionalidade organizacional pode funcionar como: receita que muda à
medida que as questões mudam; fachada criada para atrair os recursos; processo
usado a posterioripara inventar razões, legitimando as decisões anteriores. Em
qualquer caso, nem esta perspetiva permite que a racionalidade técnica se
confunda com a racionalidade política, embora não deixe de lhe reconhecer uma
maior área de ambiguidade relativamente aos clássicos.
4. A Relação Política/Administração como tipo Ideal
Analisar a relação entre política e administração como tipo ideal pode permitir
trazer alguma nova luz a esta dicotomia. Weber analisara a burocracia como um
modelo ideal (idealtyp). Ora, este tipo puro constitui, fundamentalmente, um
instrumento de análise ou recurso avaliativo do cientista social. A
característica principal do modelo ideal não radica na sua capacidade de
correspondência com a realidade, mas antes na sua potencialidade para ajudar à
sua compreensão. Assim, este dava oportunidade a que, no terreno, pudessem ser
observados diferentes tipos com apenas um ou mais dos traços desse modelo
concetual.
Daí ter realçado a relação entre meios e fins, circunstância que confere à
burocracia um caráter racional. Esta preocupação pela racionalidade técnica
(eficiência) e a ênfase nos valores instrumentais da equidade e economia leva-
o a salientar na burocracia como modelo organizacional o mérito e a
profissionalização de funcionários ao que lhe juntou o seu carater legal, que
permitiria que a autoridade fosse exercida por um sistema de regras e
procedimentos formais (Bilhim, 2008).
O sistema de mérito constituía a imagem de marca da administração
clássica. Os funcionários deveriam ser recrutados com base no mérito
e neutral competência e por isso se desenvolveram os mais
sofisticados testes, de modo a admitir the right people for the
right place', procurando fazer desaparecer qualquer vestígio de
patronage' ou de empenhamento político-partidário dos funcionários
(Rocha, 2001: 4).
Nesta linha de pensamento, a dicotomia entre administração e política
inicialmente afirmada por Wilson pode ser igualmente concebida com um tipo
puro, um conceito teórico abstrato, servindo de orientação na diversidade de
fenómenos que aparecem na realidade; por possuir uma base indutiva, realça a
sistematização de padrões individuais concretos (característica das ciências
humanas) e, desta forma, contrasta com a generalização, nos termos em que esta
é conhecida nas ciências naturais.
Uma vez que, no setor público, a quem compete definir objetivos é aos políticos
e aos administradores o uso eficiente dos meios, poder-se-ia com facilidade
estabelecer a relação seguinte: a política está para os objetivos como a
administração está para os meios. Ora, neste caso o que se verifica é que
durante décadas se concebeu esta relação como uma porta corta-fogo, ou seja,
ausência de relação.
Assim, propõe-se que esta dicotomia entre política e administração, ou seja,
entre objetivos e meios seja antes encarada como um diálogo de racionalidades
(Carvalho, 2013). Todavia, para que este diálogo não se transforme em domínio
de uma dimensão sobre a outra importa, desde logo, assumir a sua diferente
natureza e a sua respetiva complementaridade.
In the reform era and the early decades of public administration, it
was probably assumed that administration entailed a generous range of
discretion that held open the doors for technical expertise and
administrative efficiency. And it was further assumed that the line
between policy/politics and administration was a firewall'
(Frederickson e Smith, 2003: 18).
Esta dicotomia, vista como tipo puro e não como porta corta-fogo, permitirá
identificar no terreno exemplos em que os dirigentes e gestores públicos se
encontram comprometidos com a fixação da agenda política e o desenho de
políticas públicas e que os políticos se encontram igualmente envolvidos no que
se poderia chamar o espaço dos administradores ou gestores públicos.
Nos estudos empíricos feitos por Svara (1994) sobre a realidade desta dicotomia
nos municípios, o autor identificou quatro dimensões ' missão, política,
administração e gestão ', procurando identificar o espaço ocupado pelas
unidades de análise, administração e política; chega à conclusão que existem
quatro diferentes tipos de relação, isto é, há momentos em que o político
invade a esfera do administrativo e vice- versa. Isto significa que apenas
teoricamente no modelo ou tipo puro existe uma linha diagonal perfeita
separando as águas.
A realidade é mais complexa e altera a orientação desta diagonal em estado
puro. Todavia, importa reter que tal não permite concluir-se pela sua
inexistência, total fusão ou impossibilidade, pelo menos teórica, de
estabelecer esta separação. Na expressão de Frederickson e Smith (2003: 40):
Therefore, it is wrongheaded to approach the subject of public administration
on the assumption that politics and administration are more or less the same
thing .
Aliás, as abordagens que estudam o controlo político da burocracia '
indispensáveis para a compreensão da administração pública ' têm ao seu dispor
um conjunto de variáveis políticas e administrativas que lhes permitem discutir
esta dicotomia em termos empíricos, assim como analisar o caráter e a qualidade
do controlo da burocracia pela política. Acresce que a teoria do controle
político da burocracia, que vem de Wilson até à nova teoria da agência, só
existe e faz sentido porque existe uma separação entre Política e Administração
(Selznick, 1949). Só após reconhecer a existência desta separação se poderá
colocar a questão de quem controla, captura ou influencia quem.
Notas conclusivas
Chegados a este ponto importa analisar a questão que nos propusemos no início:
deve ou não contar a atividade desenvolvida por um político quando está a
concorrer para um cargo direção superior da Administração ou a ser avaliado
para o exercício de gestor público?
A tradição teórica da ciência da administração norte-americana, por um lado,
afirmou a existência de uma dicotomia entre políticos e administradores desde a
sua origem até aos anos quarenta do século XX. Por outro lado, a partir do
final dos anos quarenta desse mesmo século, quase em simultâneo, dois autores,
por razões diferentes combateram, esta dicotomia: Dwaldo, para quem todo o ato
administrativo é essencialmente político; e Simon, para quem é impossível
separar cientificamente a dimensão política da administrativa.
Na tradição europeia continental, emerge, desde a revolução francesa, uma
tentativa de, pela via regulamentar (esta dimensão jurídica da administração
pública foi mais forte na Europa Continental que nos países anglófonos),
garantir alguma autonomia e uma certa neutralidade dos funcionários face aos
políticos.
Acabamos de ver que é, teoricamente, possível e, na nossa perspetiva, desejável
estabelecer esta dicotomia não como porta corta-fogo, mas como tipo puro. Com
efeito, no quotidiano, as diferenças entre realidades organizacionais públicas,
o grau de intensidade da luta nas arenas políticas e os tempos e espaços de
produção de serviço público obrigam esta linha a curvar-se, invadindo ora uma
ora outra esfera. No desenho de políticas públicas, os eleitos e os seus
programas eleitorais, posteriormente transformados em programas de governo e
grandes orientações do plano, ocupam a totalidade do mesmo espaço; na
implementação e execução concreta, detalhada e sistemática dessas políticas
será o espaço típico de dirigentes e gestores públicos; na avaliação poderá
haver um espaço mais sobreposto.
Ora, se a diferente natureza da realidade da esfera política policy/politicse
da administrativa é fundamento suficiente para justificar esta dicotomia, assim
também é, em nosso entender, justificação bastante para que as competências
obtidas no exercício de cargos políticos não entre na avaliação de competências
para o exercício de cargos direção na administração pública e de gestor público
no setor empresarial do Estado.
No ordenamento jurídico português, a Lei n.º 64/2011 de 22 de dezembro,
estabeleceu um divisor de águas entre o exercício de cargos políticos e o
exercício de cargos administrativos. A criação de uma entidade administrativa
independente com esta missão de selecionar a direção superior da administração
e avaliar a adequação de perfil das personalidades indicadas pelo Governo para
o exercício do cargo de gestor público reforça este conceito de autonomia de
esferas. Acresce que a independência da CReSAP chega ao ponto de o legislador
ter proibido os membros da Comissão de pedir ou receber orientações do governo.
Por outro lado, os dirigentes superiores da administração são designados para
um mandato de cinco anos, podendo ser automaticamente renovado por igual
período, quando a legislatura tem um horizonte apenas de quatro anos. Assim, o
legislador impediu de haver sobreposição temporal significativa ente a
legislatura política e o mandato de gestão, circunstância que vem reforçar
muito significativamente esta autonomia de esferas.
Notas
1Investigador do Centro de Administração e Políticas Públicas (CAPP) e
professor do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas ' Universidade
de Lisboa (ISCSP-ULISBOA) (Lisboa, Portugal). Endereço de correspondência:
Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, Rua Prof. Almerindo Lessa,
1300-663 Lisboa, Portugal. E-mail: bilhim@iscsp.ulisboa.pt Website : http://
buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4383179T3
2Luther Gulick desenvolveu o célebre acónimo ' PODSCORB (planning, organizing,
directing, staffing, coordinating, reporting and budgeting). Acresce que
Lyndall Urwick foi quem, pela primeira vez, aplicou o conceito span of control.