Fundos de conhecimento e egoredes: traduzindo uma abordagem teórico-
metodológica
1. Fundos de conhecimento: movimento, mudança e analogias2
Este artigo visa apresentar as bases de dispositivo teórico-metodológico para o
estudo dos processos de criação de conhecimento, servindo-se para isso de
contributos oriundos de diversas disciplinas, com especial destaque para a
análise das redes sociais. Para isso, nesta secção, aludindo ao conhecimento
científico criado nas universidades, define-se a perspetiva sob a qual se
entende o conceito de conhecimento para depois então apresentar a análise de
redes de conhecimento como ferramenta de estudo dos processos de criação de
conhecimento e seus contextos. Os fundos de conhecimento serão vistos como
movimentos sociais, nos quais predominam fenómenos de tradução dos quais serão
dados exemplos.
O conhecimento muda e move-se. Estas formas verbais são, simultaneamente,
transitivas e intransitivas. O conhecimento académico não se desenvolve ao
longo de uma linha pré-determinada, mas sim num caminho historicamente
contingente, em que cada geração de cientistas herda pressupostos, técnicas e
conceitos da geração anterior, transformando-os e transmitindo-os. Devido a
esse processo, percebemos o conhecimento académico como estruturado de uma
forma particular, com uma certa ontologia e com diferentes fenómenos atribuídos
a domínios distintos. Essa herança flui através de diferentes tipos de
dispositivos (equações, leis, teorias, conceitos), alguns dos quais se tornam
ícones na medida que crescem como formas de pensamento que tendem a tornar-se
mais autoritários, precisos e eternos. O tipo de dispositivos analisado aqui é
as redes pessoais de conhecimento como componentes e canais para os fundos de
conhecimento dos investigadores e professores universitários.
A questão do desenvolvimento do conhecimento utiliza a ideia de problematizar
o existencial da sociedade, a fim de refletir sobre o seu significado (Young,
2008). O conceito de problematizar o existencial (problem posing) significa
que professores e alunos usam o diálogo para construir a compreensão de como a
vida, a realidade e o mundo funcionam através da intencionalidade para indagar
sobre a existência humana (por exemplo, identidade, língua e discurso, ciclos
de poder, género, raça, colonização, imperialismo, justiça social, democracia,
emancipação, desigualdade e equidade, entre outros).
Urge, então, uma compreensão mais profunda de como essa diversidade de conexões
permite que professores e alunos desenvolvam um ciclo de questionamento que
começa a construir o pensamento crítico sobre as suas próprias experiências
pessoais como conexões. Isso gera novos desafios e efeitos sobre o processo de
criação de conhecimento.
Neste artigo argumenta-se que o conceito de fundos de conhecimento permite
vislumbrar as estruturas mais profundas sobre a criação de conhecimento, de uma
forma que revela uma profunda ligação entre a forma como o mundo é e como os
investigadores o experimentam. Isso anda de mãos dadas com a imagem de caça ao
tesouro de aquisição de conhecimento, pois simplifica e condensa as emoções, os
valores e as crenças abaixo dela.
Os fundos de conhecimento são um conceito, derivado dos estudos socioculturais
e antropológicos, sobre ensino e aprendizagem que remete para o conhecimento
intelectual e social aquirido por um indivíduo ou comunidade (González, Moll e
Amanti, 2005). Outros autores realçaram outras dimensões deste conceito
(Bensimon e Neuman, 1993; Argyris e Schon, 1996; Cole, 1985; Gallimore e
Goldenberg, 2001), mas o importante a reter é que o conceito inclui quer a
atividade comportamental quer as componentes cognitiva e afetiva. Assim, os
fundos de conhecimento refletem como os investigadores e professores definem
problemas, situações e criam sentido dos fenómenos. São o know-howe o
know'whyque os indivíduos mobilizam (muitas vezes inconscientemente) para
realizar o seu trabalho. Sabemos que os investigadores e professores
universitários desenvolvem os seus fundos de conhecimento por meios formais e
não formais, tais como experiências diárias de conversa com colegas, observação
dos estudantes, leitura de revistas científicas e de relatórios, educação
formal ou outras atividades profissionais de socialização nas normas da prática
científica e docente na cultura da instituição a que pertencem (Bensimon,
2007), mas sabe-se muito pouco sobre os fundos de conhecimento que moldam as
práticas de investigação e de ensino nas universidades porque não se analisa em
profundidade o envolvimentos dos investigadores e professores que refletem o
seu compromisso, esforço e empenho. Em termos operacionais, o conceito de
fundos de conhecimento é inerentemente dinâmico. Contudo, o fenómeno
correspondente continua a ser mal compreendido e as abordagens existentes para
a sua modelagem e descrição (por exemplo, textos de linguagem natural e
figuras) são fundamentalmente estáticas e, em grande parte, ambíguas. A análise
de redes sociais e pessoais permitem esta análise contemplando as mudanças que
esses fundos e relações sofrem ao longo do tempo.
O conhecimento, neste artigo, é entendido como uma construção social, o que
significa que é construído e reconstruído por grupos sociais que estão, eles
próprios, situados num contexto marcado pelo seu próprio passado e por fortes
traços pessoais (Polanyi, 1958). Já o conceito de fundos de conhecimento traduz
a noção de contextualidade do conhecimento; o conhecimento não é apenas sobre
o que se sabe, é também sobre quem é que sabe e as representações entre um
e outro. Não é possível conhecer à distância da reprovação, permanecendo na
superficialidade da aparência. Para conhecer é preciso fazer um esforço para
nos colocarmos no lugar do outro, calçarmos as suas sandálias gastas de
viajante dos tempos. É um trabalho difícil, mas necessário para entender o
movimento e a mudança, as características mais perenes do conhecimento enquanto
objeto.
A contextualidade do conhecimento e noções como comunidade de conhecimento ou
cultura do conhecimento local devem ser consideradas simultaneamente, visando
uma pluralidade de níveis, contextos, espaços ou comunidades, quer
sejam de âmbito nacional, um setor, uma comunidade de agentes ou espaços
investidos e criados pelas comunidades de conhecimento, como é o caso das
universidades. O estudo de fundos de conhecimento facilita a compreensão da sua
complexidade e resiliência, porque: 1) analisa em conjunto o conhecimento em si
e os atores que conhecem; 2) possibilita a análise das representações,
racionalidades e contextos sociais do conhecimento; 3) promove o reconhecimento
ou negação da diversidade de conhecimentos.
1) Fundos de conhecimento e seus atores
O desenvolvimento da teoria de redes sociais trouxe evidências de que as
relações que formam um sistema influem na mudança, nos fluxos e nas estratégias
de difusão pelas redes formais e informais de relações sociais que criam redes
de entendimentos, influência e conhecimento antes, durante e após qualquer
implementação de estratégias de mudança ou inovação (Daly, 2010). Rawlings e
McFarland (2011), por exemplo, abordaram um problema semelhante quando
analisaram os fluxos de influência nas universidades, analisando os diferentes
tipos de impacto de afiliações em mudanças na produtividade e atribuição de
financiamento. Usando dados já disponíveis sobre redes de afiliação, os autores
tentaram identificar os padrões de influência de características individuais e
diádica influenciam os investigadores. Já em trabalhos anteriores (Johri,
Ramage, McFarland e Jurafsky, 2011), os autores tinham determinado os
diferentes tipos de colaborações dentro de campos e subcampos científicos,
usando a análise linguística, de forma a modelarem computacionalmente essas
diferenças. Foi um passo importante para compreender as contribuições dos
autores individuais, com base nas suas redes de colaborações. Já Ribeiro e
Lubbers (2013) estudaram os mecanismos interpessoais que afetam a criação de
conhecimento, nomeadamente a similitude em termos de posição académica e de
disciplina e a força de laço entre investigadores. Através da análise das redes
pessoais de conhecimento de 32 investigadores e professores de universidades e
institutos de investigação na Catalunha, os resultados sugerem que a similitude
não é um fator determinante para a criação de conhecimento e que a força de
laço é determinada por valores pessoais, interpessoais e académicos, afinidade
entre os indivíduos, frequência de contacto e presença em mais do que uma rede
(colaboração, influência, social, discussão, etc.). Verificou-se ainda que
apenas 32% dos colaboradores dos entrevistados eram considerados importantes
para a criação de conhecimento individual. Assim, as redes de colaboração não
explicam por si só a criação e motivação de conhecimento.
Redes de conhecimento são geralmente definidas como um conjunto de atores que
são repositórios de conhecimento que criam, transferem e adotam o conhecimento
(Phelps, Heidl e Wadhwa, 2012). As conexões sociais entre esses atores são
vistas como canais de informação e conhecimento. Estamos de acordo com esta
definição, mas acrescentamos que, particularmente no que diz respeito a
processos de criação de conhecimento, as redes de conhecimento configuram-se
também como canais epistémicos. Esta definição implica que o valor associado à
formação de laços é não só exógeno e exogenamente determinado e conhecido de
todos os agentes. Em vez disso, para investigar redes de conhecimento é
importante a ênfase na sua dimensão epistémica, ou seja, nos estados
epistémicos individuais, coletivos e interpessoais dos atores envolvidos na
rede. Dessa forma é possível ver a real importância e a função de práticas
epistémicas como as redes de colaboração ou de influência. A principal vantagem
de ver uma rede como um canal epistémico, onde ocorrem processos de tradução
dos estados epistémicos e de conhecimento é que permite um avanço significativo
na análise não só estrutural, mas também do conteúdo das relações que formam
essa rede. Os processos de tradução de conhecimento que ocorrem nesses canais
são também um processo de coprodução e evocam as formas em que cada tipo de
conhecimento é convertido noutro, e como ele ganha a fiabilidade. Entendidas
desta forma, as redes sociais podem passar a considerar e a contemplar o
significado social e o contexto pessoal, oferecer as lentes teóricas e
metodológicas, através das quais a teoria de redes e a Sociologia tentam
responder a perguntas relacionadas com a criação e a autoridade epistemológica
do conhecimento, no nosso caso específico do ensino superior. Ao mesmo tempo
oferecem uma rota para um compromisso com as questões que, apesar de antigas,
ainda são importantes e certamente adquiriram uma renovada proeminência nas
universidades contemporâneas.
O mapa de redes de colaboração entre os membros das equipas de investigação da
Universidade Autónoma de Barcelona (UAB) (Martinez et al., 2007), com enfoque
nos diferentes atributos dos atores: género, campo científico e o papel
mediador de cada elemento mostra que, entre 2004 e 2006, houve um aumento
significativo de colaborações dentro da UAB. Esse aumento, que tem sido
continuado, deve-se principalmente a uma rede mais ampla dentro do campus. Mas
não sabemos se esse aumento das redes de colaboração significou mais criação de
conhecimento em termos de diversidade (por exemplo, interdisciplinaridade) e
produção científica. Também não se conhecem os fatores que levaram a este
aumento da colaboração. Uma análise mais fina das redes de conhecimento de
investigadores de 4 instituições de ensino superior da Catalunha, entre as
quais a UAB, destaca dois fatores de rede como propícios à
interdisciplinaridade: centralidade e laços fortes. Esses dois mecanismos são
mais fortes que os atributos pessoais dos investigadores (por exemplo, estilos
de trabalho e criatividade) e o seu peso é maior em redes com mais
investigadores afiliados em departamentos da faculdade do que em investigadores
afiliados em institutos de investigação (Ribeiro, no prelo).
2) Análise das representações, racionalidades e contextos sociais do
conhecimento
Ao contrário de uma forte tendência nas ciências sociais, é importante
compreender que na base de qualquer conhecimento está uma qualquer
representação entendida não como um espelho do mundo externo nem como
construções mentais, mas antes como formas de construção de significado e de
criação de realidades interrelacionadas entre sujeitos e entre estes e o mundo.
Por isso é importante perceber essas representações como processos
inerentemente sociais. Ambos ' significado e contexto social ' facultam lentes
teóricas através das quais podemos olhar a transformação do conhecimento, as
suas relações com os contextos sociais e culturais e a diversidade de formas
que assume nas esferas contemporâneas. Um exemplo deste tipo de trabalho é o de
Gervais (1997), em que o autor estudou as representações sobre o ambiente por
altura de um desastre ambiental que teve lugar numa comunidade remota da
Escócia. No confronto com o estranho e o diferente que se seguiram ao
derrame de petróleo, a comunidade reformulou as suas representações sobre o
ambiente e a natureza por forma a acomodar as novas pessoas e hábitos que
chegavam à localidade.
Tome-se ainda o exemplo dos trabalhos de Hernández-Serrano e Stefanou (2009)
sobre a transferência de expertiseatravés do ato de contar histórias, no qual
os autores desenvolveram um modelo de resolução de problemas baseado
precisamente na prática de contar histórias. Os autores propuseram um modelo
para a resolução de problemas por meio de histórias como um enquadramento geral
que explica o fenómeno da construção de significado alcançado por quem tenta
resolver esses problemas. O modelo identifica como condição causal um desafio à
nossa compreensão do problema que é enaltecido pelas histórias contadas. Este
modelo é hoje aproveitado, por exemplo, na área da estratégia e comunicação de
conteúdos nos mais variados tipos de empresas e negócios.
3) Reconhecimento ou negação da diversidade de conhecimentos
Sendo o conhecimento um fenómeno dinâmico, plástico, plural e derivado quer das
esferas objetivas como subjetivas, o conhecimento é diverso. A questão é como é
que essa diversidade se faz representar em arenas específicas, como as
universidades, por exemplo. O que acontece quando os cientistas falam entre si?
Ou quando um filósofo dá uma aula a sociólogos? Ou quando sociólogos europeus
ouvem sociólogos asiáticos? Ou quando um investigador não pode ensinar o que
investiga na sua universidade? O que está em jogo quando decisores políticos
decidem o que se ensinar a crianças que vivem em aldeias rurais? Todas estas
situações envolvem pontos de contacto entre o conhecimento de si e o
conhecimento do outro, entre formas de representação em competição, entre
práticas que privilegiam determinadas representações dominantes.
A investigação educacional mostra que currículo e ensino sempre terminam num
ato de conhecimento pessoal. Podemos argumentar que uma compreensão crítica das
relações pessoais de investigadores e de professores onde o conhecimento
acontece também abrange as relações de dominação e subordinação de saberes,
onde cada ator tem um papel. A investigação sobre redes pessoais é um subcampo
de análise de redes egocêntricas, que, por sua vez, é um subconjunto de análise
de redes sociais, disciplina que estuda os padrões de relações entre atores
sociais. Como Pablo de Grande (2013) define, uma rede pessoal é o conjunto de
relações de um indivíduo com as pessoas que ele conhece mais o conjunto de
relações entre estas pessoas. A diferença entre análise de redes pessoais e
outros tipos de redes egocêntricas é que não há limites na delimitação dos
membros dessas redes (McCarty e Molina, no prelo).
Pelo que ficou dito até aqui fica claro que os fundos de conhecimento são
também movimentos sociais. Mas o que pensamos quando pensamos em movimentos
sociais? Parte da resposta remete para palavras, documentos, textos e ideias
que esses movimentos representam. Um movimento existe apenas em virtude das
comunicações que lhe conferem algum grau mínimo de coesão e coerência. Outra
parte da resposta remete para a noção de espaços abertos (Kimble, 1939).
Atente-se, a este propósito, em duas analogias distintas.
A primeira analogia: as equações. Estas têm uma influência subtil sobre o
tecido da nossa linguagem e do nosso pensamento que vai muito além dos limites
do campo científico em que foram produzidas, o que se traduz, por exemplo, nas
seguintes expressões: Poder = conhecimento; Guerra = matar pessoas. Com
efeito, as equações podem seduzir-nos a considerar que esta é a maneira de
pensar e que outras formas são inferiores ou até mesmo defeituosas. Já
Heisenberg (1974) afirma que quase todo o progresso em ciência tem sido pago
por um sacrifício, pois para quase cada nova conquista intelectual foi preciso
desistir de conceções e de posições anteriores. Assim, de certa forma, o
aumento de conhecimento e de perceção diminui continuamente a reivindicação do
cientista sobre o conhecimento da natureza. No entanto, a ciência de hoje tem
pouco em comum com a ciência do tempo de Heisenberg.
A segunda analogia: Our bodies, ourselvesteve a sua primeira publicação em
1973. Tratou-se da primeira publicação comercial do que tinha sido uma série de
artigos produzidos por um grupo de discussão sobre saúde das mulheres em
Boston, Massachusetts. Desde então, o texto tem evoluído através de cinco
edições e várias traduções para outras línguas. A primeira grande revisão ' The
new our bodies, ourselves' foi produzida em 1984 e continuou em 1996; uma
segunda revisão de Our Bodies, Ourselves for the New Centurysurgiu em 1998. Uma
série de trabalhos paralelos inclui Ourselves and Our Children(1978), Changing
Bodies, Changing Lives(1980) e Ourselves Growing Older(1987, revisto em 1994).
O livro foi traduzido primeiro para italiano (1974), depois para japonês,
espanhol, francês, grego, sueco, alemão e hebreu, holandês, árabe e para
bengali, havendo ainda versões em russo, arménio, sérvio e búlgaro, em 20013.
Posto isto, a identidade autoral de Our bodies,ourselves é coletiva, mas não é
sempre específica. A primeira pessoa do plural é usada com um deslocamento
referente, que evoca, por vezes, todas as mulheres nos Estados Unidos e,
noutras vezes, quem colaborou na produção de uma parte específica do texto. Os
processos de tradução e adaptação complicam (enriquecem) ainda mais a
identidade autoral. Na introdução à primeira edição britânica, em 1978,
Phillips e Rakusen (1978) escrevem que decidimos continuar a usar o pronome,
mas, como as mulheres de Boston explicam o seu prefácio, isso não significa que
estamos todos de acordo com tudo o que foi escrito (Philips e Rakusen, 1978:
10). O pronome nós refere-se, portanto, à experiência coletiva de todas as
mulheres que trabalharam sobre este livro.
Shapiro (n.d.) descreve o processo de tradução de Our Bodies, Ourselvespara um
público latino-americano, que resultou na publicação de Nuestros Cuerpos,
Nuestras Vidas, em 2000. No início de 1990, reconheceu-se que a primeira
tradução em espanhol (1976) ficou datada e surgiu uma nova tradução direta da
edição em inglês (americano) de 1992. Diferentes capítulos foram, então,
reescritos por 20 grupos de saúde feminina em 11 países do Norte, do Sul e da
América Central e Caribe. Isto representou uma tentativa de desenvolver uma
versão em espanhol para sul-americanas e latinas nos Estados Unidos, o que
significou, por sua vez, a apresentação destas duas comunidades uma à outra.
Posteriormente foram editadas novas versões em Boston, apoiadas por um médico
tradutor experiente. Nesta fase foram introduzidas as alterações feitas para a
nova edição de 1998, nos Estados Unidos da América. A produção de Nuestros
cuerpos, nuestras vidasteve um enquadramento, com alterações na ordem e
conceção de seções e capítulos. Por exemplo, foram introduzidas alterações
substantivas em vários capítulos, como aquela sobre o aborto, tornando a
temática mais adequada para diferentes condições sócio-económicas e políticas.
Incluíram-se novos recursos materiais, nomeadamente os títulos de livros e
algumas capas foram alteradas, e alguns dos termos principais também foram
reformulados. Os selves em inglês passam a vidas em espanhol e self-help
tornou-se ayuda mutua, porque se acredita que ninguém cuida de si por si.
Isso é o mais significativo, porque a tradução espanhola torna-se uma fonte
para novas versões de Our Bodies, Ourselves. A principal fonte para a edição
búlgara foi uma tradução para o inglês da versão espanhola Nuestros Cuerpos,
Nuestras Vidas. Traduções geram traduções e o que os tradutores denominariam
como texto de destino é reconstruído como uma fonte. No entanto, parece difícil
pensar em traduções em série ou em paralelo; em vez disso, as traduções
acumulam-se num corpo de conhecimento, numa forma de pensar e numa forma de
expressão característica de um conjunto de textos sem estarem totalmente ou
definitivamente concretizados em nenhum deles. A origem ou centro é cada vez
mais evasivo e obscurecido. Our Bodies, Ourselvesé reproduzido, reconstruído,
reescrito na medida em que é traduzido. Normalmente, o trabalho de tradução é
frequentemente escondido, tratado como um aspeto técnico da produção de um
livro, tal como a formatação de texto. Neste caso, porém, é um processo aberto,
deliberado, visível, informado por uma ética política que, segundo Shapiro
(n.d.), se inspira no ideal de educação participativa de Freire: a educação
participativa enfatiza um processo relacional, dialógico entre professor e
aluno. No entanto, o processo de adaptação que deu origem a Nuestros Cuerpos,
Nuestras Vidas resultou muito mais parecido com a representação textual de uma
teia de relacionamentos e a criação de uma comunidade virtual. A teoria
educacional de Paulo Freire tem um corolário em teoria literária, ao entender o
leitor como autor ou coprodutor de um texto e a leitura como um processo em que
o leitor completa o texto. Da mesma forma, e claramente relevante para Our
Bodies, Ourselves, são os trabalhos feministas recentes em estudos da tradução
que afirmam a agência do tradutor, bem como as possibilidades de participação
entre escritor e tradutor. A tradução feminista implica alargar e desenvolver
a intenção do texto original (Simon, 2000: 32). Baseado no trabalho de Barbara
Godard, argumenta-se que traduzir é um processo transferencial, no qual o
assunto da leitura torna-se um assunto de escrita. Prática de escrita e
tradução feminista reúnem-se para transformar tudo o que é escrito e reescrito
(Simon, 2000). As sucessivas traduções de Our Bodies, Ourselves formam um
sistema cujo significado é emergente e reproduzido continuamente. A tradução
pode ser considerada de três formas: construtiva, na medida em que inventa o
objeto que traduz; constitutiva, na medida em que cria comunidades de
escritores e leitores; e contingente, na medida em que é determinada pela sua
inteligibilidade e utilidade para o leitor e pelo contexto para o qual ele é
feito. A reprodução de significado é inevitável e imperfeita. A tradução
compromete-se, pois, entre a verdade do original e as exigências da nova
situação a que se destina. Para ser lida e recebida no novo contexto, a
tradução deve operar segundo uma lógica de adequação e de eficiência. Assim, a
tradução é simultaneamente um reconhecimento e uma forma de traição.
2. Teoria e método: tradução, fundos de conhecimento e redes
Nesta secção faz-se a exploração teórica dos constructos teóricos que são
objeto de reunião teórica e metodológica neste artigo: fundos de conhecimento e
egoredes em que estas são sistemas complexos (canais epistémicos, como definido
na secção anterior), onde se processa a tradução de conhecimento(s) em e pelos
fundos de conhecimento de professores universitários e investigadores.
2.1. Sistemas complexos
Há uma distinção importante entre o que é complexo e o que é simplesmente
complicado. Um sistema complicado é um intrincado de muitas partes, embora as
relações entre as partes sejam mensuráveis e o comportamento do sistema como um
todo seja previsível. Um sistema complexo, por outro lado, é aquele em que as
relações entre as partes são flexíveis ou não especificadas e o seu
comportamento global incerto. Um sistema pode ser um organismo ou uma espécie,
um corpo humano, uma família, uma organização ou um estado. Pode ser definido
como um conjunto de relações entre as partes ou unidades. É definido pela
natureza dessas relações e não pelo caráter dos seus componentes; dito de outra
forma, os seus elementos são relações e não entidades.
Os elementos do sistema (as relações que o compõem) são delimitados de alguma
forma até que seja feita uma distinção entre o sistema e seu ambiente.
Geralmente, este ambiente compõe-se de outros sistemas. O sistema é aberto,
dependente do intercâmbio com o seu ambiente e essencialmente preocupado com a
manutenção e reprodução de si mesmo. Os sistemas coevoluem com outros sistemas.
Tensão, contradição e paradoxo dentro e entre eles são normais e podem ser
produtivos. A interação entre os sistemas e elementos dentro de sistemas leva a
um comportamento emergente, a algo novo. Um sistema adaptativo complexo é uma
coleção de agentes individuais com liberdade para agir de maneiras que não são
sempre totalmente previsíveis, e cujas ações estão interconectadas para que as
ações de atores alterem o contexto para outros atores (Plsek e Greenhalgh,
2001: 625).
As relações dentro e entre os sistemas consistem em fluxos de pessoas,
artefactos, dinheiro, informações, regulamentos, emoções e ideias, entre outras
coisas. Estas podem ser compreendidas de maneiras diferentes como tipos de
comunicação e o sistema pode ser considerado como sendo regulado pela sua
interação no seu ambiente (geralmente expresso em termos de feedbackpositivo e
negativo). Desta forma, o problema da complexidade pode ser interpretado, em
grande parte, como um problema de comunicação. Comunicações que atravessam as
fronteiras entre um sistema e o seu ambiente podem ser pensadas como traduções.
Um sistema mantém e reproduz-se na medida em que decreta ou realiza traduções.
As traduções, em si mesmas, formam um sistema, bem como os documentos, textos e
aqueles que escrevem, leem e interagem. O significado é produzido na interação
e está em constante evolução. Isso é o que se entende por intertextualidade.
2.2. Tradução
A tradução começa e baseia-se num ato inicial de confiar (Steiner amplifica
este ato com o conceito francês de élancement). O tradutor assume, em boa fé,
que um texto faz sentido ou que o sentido pode ser reproduzido de forma
diferente. O sentido procede por meio de incursão e extração. O tradutor invade
o sentido original e traz de volta o que é possível encontrar. Em seguida,
tenta dar forma e corpo ao significado apropriado. Os recursos para isso são
fornecidos pelo idioma nativo (receção). Fundamentalmente a língua nativa ou
conjunto simbólico local corre o risco de ser transformada ligeiramente no ato
de apropriação. O movimento final da tradução é um ato de reciprocidade ou
restituição, no qual um efeito reforça o original através da tradução: a
atenção dos tradutores dignifica e engrandece o texto de origem. Curiosamente,
Steiner postula um sistema que é colocado fora de equilíbrio pelos três
primeiros movimentos das traduções. O seu equilíbrio dinâmico deve ser mantido
por um processo de troca. Houve uma saída de energia a partir da fonte e um
ingresso para o recetor, alterando a harmonia de todo o sistema. O tradutor, o
exegeta ou o leitor são fieisao seu texto e tornam a sua resposta responsável,
somente quando se esforçam para restabelecer o equilíbrio de forças que a sua
compreensão disruptiva desestruturou. Assim, a tradução pode ser retratada como
a negação da entropia; a ordem é preservada em ambas as extremidades do ciclo:
fonte e recetor (Steiner, 1998, itálicos no original).
Neste ponto vale a pena referir que a atenção para um determinado tipo de
tradução é conseguida através da comparação e da categorização. Comparar algo
com outra coisa implica o reconhecimento logicamente prévio ou suposição de que
eles são comparáveis. Consiste em usar a justaposição de coisas para lhes dar
sentido, separadamente e juntos. Isso é o que James Boyd White se prepara para
fazer em Justiça como Tradução(White, 1990). Este tipo de trabalho, no Direito
e na Literatura e em qualquer área de produção de conhecimento, não é a
transferência de resultados de campo para campo, nem o transporte de método
(considerado como uma espécie de máquina intelectual que pode ir trabalhar
novos temas sem ser modificada), mas antes resulta da esperança de mantê-los na
mente ao mesmo tempo de forma a alterar o nosso sentido de ambos (White, 1990:
19).
Ao desenhar este paralelismo, recorrendo a analogias entre tradução erelações
em sistemas complexos, consubstancio a sugestão de que a criação de
conhecimento e a sua difusão podem ser pensadas como e através de processos de
tradução. Esse processo existe e acontece através de fundos de conhecimento, os
quais podem ser medidos e descritos na sua infraestrutura, através das redes
pessoais dos atores que produzem esse conhecimento.
3. Método de investigação: fases do conhecimento e redes pessoais
Furusten (1999, baseando-se em Latour, 1987) discute as maneiras complementares
de compreender como um texto funciona ou produz significado. Podemos olhar para
o texto propriamente dito ou para o seu contexto. O texto em si é examinado em
três níveis: significado de superfície; argumento implícito ou subjacente;
relações que estabelece com outros textos. O contexto inclui tanto as
circunstâncias (a forma) em que o texto é escrito ou produzido e aquelas em que
é lido. Quando não for possível apreciar esses processos de produção e de
receção participando e observando- os, podemos tentar reconstruí-los estudando
com aqueles que o produziram.
Analogamente é disto que se trata quando analisamos os fundos de conhecimento
recorrendo à análise das redes pessoais de quem o produz. Afinal, no conceito
de fundos de conhecimento está também presente uma das mais populares formas de
conceber a dinâmica de movimento entre as ciências humanas: o conceito de
fluxo, que deriva em parte das pressões e das unidades da dinâmica de fluidos,
na qual as intensidades circulam (Deleuze e Guattari, 1988). Henriques propõe
uma conceção de movimento, onde o que é transmitido não é um objeto, mas sim
uma frequência de repetição ou padrão de energia. Portanto, a ênfase é sobre a
relação de movimento entre processos. Como Henriques sugere: é o padrão
dinâmico que se move, não é uma coisa (Henriques, 2010).
A premissa básica proposta pela abordagem teórico-metodológica da análise de
redes sociais é o estudo de sistemas como sendo redes. Uma das vantagens é usar
a visualização como meio de compreensão.
4. Análise de redes sociais e criação de conhecimento
Neste ponto importa retomar a definição de redes sociais e, dentro destas, as
redes pessoais. Uma rede social é um conjunto de indivíduos (comumente chamado
de atores) e uma enumeração de relações (ou laços) entre esses indivíduos
(Kindermann, 2008). O termo rede social deriva do trabalho de Barnes (1954), em
que era usado para designar as relações sociais encontradas numa comunidade em
Bremmes, na Noruega. Desde então, o termo tem sido associado a diferentes tipos
de relações entre diferentes tipos de indivíduos. Redes contemporâneas, ao
contrário das comunidades locais, não são apenas centradas na filiação local,
mas muito mais em afiliações culturais de nicho e comunidades de conhecimento.
Essas novas maneiras de partilhar cultura e conhecimento têm grandes
implicações nas relações entre produção e consumo e as fontes tradicionais de
autoridade para a cultura e o conhecimento. Os padrões de criação de
conhecimento estão a ser reformatados continuamente, na medida em que as redes
se tornaram a lógica cultural dominante (Varnelis, 2008). Como acontece noutros
domínios, as universidades também se compõem de atores em rede e, assim, as
culturas que emergem são variadas. Nesta sociedade em rede, a criação de
conhecimento e a especialização aumentam a probabilidade de que o conhecimento
atual seja mantido e multiplicado em novos conhecimentos e práticas.
A análise de redes sociais (ARS) cartografa e mede relações e fluxos entre
pessoas, grupos ou organizações. Desde o seu início, a ARS tem sido um método
multidimensional e interdisciplinar. A ARS pressupõe que os atores participam
em sistemas sociais que os conectam a outros atores, cujas relações influenciam
comportamentos uns dos outros. A identificação, a medição e a verificação de
hipóteses sobre o conteúdo substantivo das relações entre atores e formas
estruturais tem sido a característica distintiva da ARS, em comparação com
outras tradições mais individualistas, centradas em variáveis específicas, mais
utilizadas em ciências sociais (Knoke e Yang, 2008). Assim, a ARS visa medir e
representar as relações estruturais, explicando como estas ocorrem e quais as
suas consequências. A utilização da ARS no estudo dos processes emergentes de
criação de conhecimento justifica-se pela formação de fluxos localizados e
localizáveis do conhecimento, uma vez que é através de intercâmbios entre pares
e não pares que estes corpos de conhecimento crescem e se transformam. O
conhecimento é sempre um processo emergente, modificado e descartado consoante
as circunstâncias. Em suma, compreender se e como as redes sociais modelam os
fluxos de conhecimento nas universidades e nos processos de criação de
conhecimento é de fundamental importância.
Diane Crane (1972) desenvolveu um trabalho seminal na tentativa de compreender
de onde vem o conhecimento que se estuda nas universidades. Quem é responsável?
Quem deve exercê-lo? A autora argumenta que o problema da relação entre a
estrutura interna de uma instituição cultural particular e os produtos
culturais nela desenvolvidos tem sido negligenciado pela Sociologia do
Conhecimento. Segundo a autora, esta falha deve-se à tendência para definir os
grupos sociais como entidades abstratas, em vez de coleções de indivíduos cujos
modos de interação podem ser observados de forma precisa. Essa tarefa exige,
segundo Diane Crane, a análise do desenvolvimento dos sistemas de crenças
destes grupos, bem como a análise sociométrica das relações entre os seus
membros, das relações entre esses grupos e as relações de tais grupos na
estrutura social mais abrangente. O desenvolvimento da análise de redes sociais
tem vindo a dar uma contribuição relevante neste domínio.
Com efeito, o desenvolvimento subsequente da teoria das redes representou um
contributo importante para lidar com a questão do conhecimento, pois combinou o
que intuitivamente sabemos com um crescente corpo de investigação sobre redes
sociais, sugerindo que os relacionamentos dentro de um sistema importam ao
influenciarem a mudança, os fluxos, as estratégias de difusão, através de redes
formais e informais de relações sociais (Daly, 2010).
Estudos educacionais mais recentes salientam a importância de redes sociais
fortes entre os professores para a propagação e para a implementação política
de reformas ou de inovações (por exemplo, Coburn e Russel, 2012; Moolenaar e
Sleegers, 2010; Penuel, Frank e Krause, 2009). O papel das redes sociais para a
criação de conhecimento também foi estudado fora do campo educacional,
destacando o papel crucial das redes formais e informais na aprendizagem
organizacional por estimular novos conhecimentos e novas práticas (Ahuja e
Carley, 1999; McGrath e Krackhardt, 2003).
Forman e Markus (2005), Drejer e Jorgensen (2005) e Hlupic,Pouloudi e Rzevski
(2002) estudaram a criação de conhecimento e o papel da colaboração. Os autores
identificaram a necessidade de mais investigação sobre a relação entre as
características das redes sociais e a criação de conhecimento num ambiente de
investigação colaborativa. Também Drejer e Jorgensen (2005) e Hlupic, Pouloudi
e Rzevski (2002) detetaram a necessidade de mais investigação, integrando os
domínios da criação de conhecimento e das redes sociais. Estes investigadores
reconheceram que, embora a colaboração e a investigação interdisciplinar sejam
frequentemente recomendadas, ainda há uma falta de trabalhos empíricos ou
teóricos que validem o papel da sociologia das redes no contexto da criação do
conhecimento.
4.1 Redes pessoais: atractores estranhos
No que respeita à ARS, existem duas opções principais. Na análise de redes
sociais completas, o foco está num conjunto de nós que servem como a população
do estudo. Neste caso, o número de laços mede-se sistematicamente para cada par
de nós na população. Por exemplo, se se fosse analisar todas as relações do
corpo docente de uma universidade inteira, a população de nós corresponderia a
algum tipo de grupo. A outra opção são as egoredes, cuja análise tem como foco
as relações de um ator (ego) e o seu meio social. Por meio desse método, a rede
pessoal do ego é estabelecida a partir do seu ponto de vista subjetivo. As
egoredes representam o padrão global de relacionamentos de um indivíduo. O foco
situa-se na inserção dos atores no seu ambiente social. A análise de egoredes é
usada quando o grupo sob investigação é difícil de delinear ou o tamanho do
conjunto sugere o estudo de casos individuais (Fischer, 2010; McCarty e Molina,
no prelo; Wellman e Berkowitz, 1988). A análise das egoredes combina elementos
da abordagem científica tradicional que é baseada nos atributos dos atores e na
abordagem que é baseada na ciência das relações. A investigação sobre redes
pessoais abrange as seguintes categorias: 1) identificação de padrões e
processos de socialização e integração; 2) previsão da variação interindividual
nesses padrões; 3) deteção da influência das redes pessoais sobre resultados
individuais; 4) uso das redes pessoais como um meio para outros objetivos, tais
como estudar populações de difícil acesso; 5) desenvolvimento do método em si.
A análise das redes de relações permite compreender como a topologia dessas
redes influencia os processos de criação de conhecimento, em que fase os nós
(atores) convergem e a que ritmo, bem como perceber os processos inerentes a
mecanismos de coordenação ou de aprendizagem.
Conforme argumentado neste artigo, a análise de egoredes, pela sua natureza
teórica e operacional, apresenta uma forma diferenciadora na análise de fundos
de conhecimento, entendidos como processos de tradução, como explicitado e
exemplificado nas secções anteriores. Isto acontece porque a análise de
egoredes permite a identificação de padrões que podem ser identificados e
descritos, de forma analógica, como sendo processos de atractor estranho e de
afinidade eletiva. O atractor estranho é um conceito oriundo da teoria do caos.
Um atractor estranho é um princípio matemático segundo o qual um padrão regular
num sistema dinâmico se decompõe e outro emerge: é a matemática de transição
dentro e entre sistemas complexos. Tais atractores são denominados estranhos
porque precipitam a saída de ao invés de conformidade com as normas do
sistema. A frase é atribuída a Ruelle e Takens, que discutem entre si sobre
quem a inventou (Ruelle e Takens, 1971; Gleick, 1998). O conceito de afinidade
eletiva está associado nas ciências sociais a Weber, que se inspirou no romance
de Goethe com o mesmo nome (em alemão, Die Wahlverwandschaften, 1809). A ideia
era corrente na ciência do final do século XVIII e terá sido encontrado por
Goethe no seu trabalho em Física. O anúncio da pré-publicação do romance
explica como o termo é usado em química para compreender a forma como as
substâncias se combinam, separam e recombinam. Como um dos personagens do
romance explica, por exemplo, o que chamamos de calcário é mais ou menos puro
óxido de cálcio bem combinado com um ácido fraco, conhecido para nós no estado
gasoso. Se um pedaço dessa rocha for diluída com ácido sulfúrico diluído, dar-
se-á uma combinação que resultará em gesso; o ácido fraco gasoso, por outro
lado, escapa. Deram-se, portanto, uma separação e uma nova combinação surgiram
e sentimo-nos tentados em usar o termo afinidade eletiva, porque realmente
parece que aconteceu um relacionamento que foi preferido em detrimento do
outro (Goethe, 1994: 33). Este é o processo de tradução exposto neste artigo e
que consubstancia os fundos de conhecimento passíveis de ser analisados pelas
egoredes. Goethe observa também essa afinidade eletiva um conceito
antropomórfico tirado de assuntos humanos usados por cientistas para descrever
e explicar o comportamento da matéria inanimada. Nesta medida, Goethe4
reapropria-se do conceito para o mundo social, usando-o como metáfora. O mesmo
se faz nesta argumentação.
Por último, a análise de egoredes propicia uma representação dos fundos de
conhecimento, mostrando os laços que formam esse ato de mediação entre origem e
destino e estabelece uma relação entre autores em contextos diferentes, a qual
tem efeitos recíprocos. A título ilustrativo, incluo aqui uma amostra de fundos
de conhecimento de um investigador de uma instituição de ensino superior da
Catalunha:
Conclusão
Em suma, mas sem fechar este debate, neste artigo argumenta-se como as
egoredes, pelos seus fundamentos metodológicos e teóricos, são um dispositivo
adequado para estudar os fundos de conhecimento de investigadores e professores
universitários, já que o conhecimento tem uma natureza relacional e acontece
numa série de acumulações e emergências, isto é, numa tradução. As egoredes são
um ponto de partida para perceber as estruturas e os padrões dos processos de
negociação, um ato compartilhado de reconfiguração, explicação e ampliação,
adaptação e transformação.
Neste artigo optou-se por uma abordagem e argumentação interdisciplinar para
justificar a relação entre egoredes e o estudo dos fundos de conhecimento, pois
a criatividade científica é uma conceção estreita do profissionalismo que
conduz insensivelmente a uma especialização forçada e a uma normalização das
pesquisas e dos pesquisadores' (Lopes, 2012: 25). Por outro lado, este
cruzamento de perspetivas oriundas de diferentes campos de estudo contribui
para aumentar o potencial crítico interno e interventivo da sociologia, pois a
sociologia só será sociologia se for um conhecimento crítico (Lopes, 2012:
25).
O propósito deste trabalho não era o de chegar a algum ponto final específico
ou a conclusões empíricas, estas apresentadas noutros trabalhos (por exemplo,
Ribeiro e Lubbers, 2013 e Ribeiro, no prelo). Era antes o de servir como base
para a discussão mais prolongada sobre a natureza dos fundos de conhecimento.
Por isso, estabelecemos o paralelismo entre aqueles e o processo de tradução e
adaptação, no caso, da obra Our bodies, Ourselves. Este paralelismo espoleta
certamente vários pontos de discussão sobre temas relacionados com sistemas
complexos, a tradução e as redes sociais. Neste artigo, fi-lo como se contasse
uma história. A utilidade das egoredes para estudar os fundos de conhecimento
pode ser maior ou menor conforme o tipo de conhecimentos a que nos referimos. O
caso trazido para este artigo é o do conhecimento produzido em instituições de
ensino superior. O que é interessante é que as egoredes são um dispositivo
performativo (McKenzie e Schweitzer, 2001), justificado na maneira como
constitui e representa os movimentos e as mudanças próprias do processo de
criação do conhecimento, sobretudo porque essas egoredes são sistemas
complexos, abertos, adaptativos. Isso comporta um aspeto material, em que a
forma de uma rede surge e o que a une é a produção e distribuição de artefactos
culturais e pessoais. A dimensão ideacional dessas redes traduz-se nas conexões
que perfazem a própria metacultura do conhecimento e da ciência.
Notas
1 Doutoranda na Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da
Universidade do Porto (FPCEUP) (Porto, Portugal) e visiting researcherna
Universidade Autónoma de Barcelona (Barcelona, Espanha). Endereço de
correspondência: Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade
do Porto, Rua Alfredo Allen, 4200-135 Porto, Portugal. E-mail:
filipa.ribeiro@gmail.com
2 Este artigo baseia-se num trabalho realizado no âmbito de uma bolsa de
doutoramento financiada pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia.
3 Sobre a evolução do texto, consulte a referência de Potter (1998). Para uma
breve descrição e discussão de alguns desses projetos de tradução mais
recentes, consulte Whelan e Pincus (2001).
4 É a teoria da tradução de Goethe que baseia grande parte da teoria de Steiner
(1998). Na seleção que Unseld fez dos trabalhos de Benjamin (1977) consta um
ensaio, de 1924, sobre a obra Wahlverwandschaften, de Goethe, que segue a sua
discussão clássica da tarefa do tradutor.