Mulheres ciganas, criminalidade e adaptação ao meio prisional
Introdução
Neste texto pretende-se identificar o tipo de criminalidade praticada pelas
mulheres ciganas reclusas, compreender o impacto da sua permanência numa
instituição total e como se adaptam ao meio prisional. Ao longo dos anos as
alterações legais do sistema penal e do sistema prisional têm transformado os
estabelecimentos prisionais, que procuram ir ao encontro de novas formas de
pensar a punição do crime e a reinserção social. Atualmente estes
estabelecimentos têm várias configurações e promovem ocupações laborais,
desportivas e recreativas no sentido da reabilitação e preparação para o
regresso à liberdade.
1. Instituições prisionais como instituições totais
Na passagem de uma vida em liberdade para uma vida controlada e limitada,
espacial e socialmente, o indivíduo vive vários processos de modificação do eu
(Goffman, 2005 (1961). São várias as formas de humilhação, como a perda do
nome, a separação dos seus bens pessoais, a perda da liberdade de circulação e
de tomada decisões e a utilização de uniforme (Foucault, 1977).
A transformação do euocorre gradualmente e a capacidade de se adaptar ao novo
espaço permite-lhe permanecer na instituição de forma subordinada, fazer o
corte com o passado e perceber quais os limites em função do controle social
que é exercido pelos vigilantes. Mais do que cumprir normas, o indivíduo deixa,
durante certo período de tempo, de ter liberdade, torna-se uma figura anónima
dentro de um grupo subordinado (Haynes, 1949). Ou seja, a reclusão implica a
mudança de hábitos e costumes que interferem com a personalidade, os modos de
vida, a forma de viver o dia a dia e a ausência de bens pessoais e o passar a
ser conhecido por um número.
A instituição total é um local de residência e trabalho onde um grande número
de indivíduos com condições semelhantes e afastados da sociedade geral por um
período de tempo apreciável leva a uma vivência imposta e formalmente gerida
(Goffman, 2005 (1961): 11). Esses universos fechados estão separados por
barreiras nas várias esferas de vida do indivíduo (de residência, de trabalho,
lúdica), estando estas submetidas a uma gestão e a uma autoridade comuns
(Cunha, 2008) sendo que o contacto com o exterior é reduzido e tem sempre por
perto um vigilante, havendo um contraste entre a vida familiar e a vida nas
instituições totais (Goffman, 2005 (1961)).
Todos os aspetos da vida são realizados no mesmo local e sob uma única
autoridade, cada fase da atividade diária é realizada na companhia de um grupo
relativamente grande de outras pessoas, todas elas tratadas da mesma forma e
obrigadas a fazer as mesmas coisas em conjunto, e as atividades diárias
obedecem a horários rigorosos, pois uma atividade leva, em tempo
predeterminado, à seguinte e toda a sequência de atividade é imposta de cima,
por um sistema de regras, formais e explícitas, e por um grupo de funcionários
(Goffman, 2005 (1961)).
O sistema prisional procura gerir a vida dos reclusos, controlar as suas ações
para que seja possível e viável a sua potencialização, de acordo com um sistema
de aperfeiçoamento constante e progressivo, o despojamento daquilo que afinal
constituíra até aí a sua identidade gera uma crise que o leva a elaborar planos
e estratégias comportamentais de adaptação (Goffman, 2005 (1961)): 158). O
controlo social exercido assume várias vertentes, nomeadamente o facto de terem
de solicitar permissão para se deslocarem ao WC (Cunha, 1994), mas também se
substancia no olhar permanente do vigilante sobre os reclusos, o qual fiscaliza
todos os movimentos e está sempre pronto para punir. Segundo Foucault (1977), a
relação dos indivíduos com o controle social pode assumir três vertentes: auto
vigilante, vigilante e vigiado. Este processo é conhecido por vigilância
hierárquica, o que permite um controle interior, articulado e detalhado.
Para Cusson (2011) a delinquência, nas suas diversas formas de manifestação
(roubos, furtos, fraudes, tráficos ilícitos), constitui uma forma de desviância
porque faz parte dos atos que transgridem as normas e que são sancionados penal
e socialmente. O grau de gravidade do crime foi ordenado a partir de seis
critérios fundamentais: intensidade das ofensas à integridade física, os
perigos a que o ato expõe os outros, a violência dos meios, a importância das
perdas pecuniárias, a vulnerabilidade relativa da vítima e o dolo (Cusson,
2011: 23).
2. Crime e género
Com a industrialização, sobretudo a partir do século XX, as mulheres
conquistaram alguma autonomia social e educacional que se reflete nos direitos
conseguidos, com mudanças na estrutura da família e nas condições económicas e
sociais. Conquistaram direitos políticos, asseguraram o acesso à educação e
ganharam espaço público do trabalho. Para além de esposas e mães passaram
também a ser trabalhadoras assalariadas, enquanto tradicionalmente a mulher era
educada para ser esposa, mãe e ter a seu cargo responsabilidades, desde o
cuidar do lar e dos filhos e ser esposa subserviente em relação ao marido
(Leal, 2007).
Em termos de estudos da criminologia feminina, na segunda metade da década de
70 do século XX o movimento de emancipação feminina permitiu reconhecer que a
questão de género é um elemento importante a ter em conta (Rafter e Heidensohn,
1995:4 cit. por Matos e Machado, 2012). Existem diferenças de género no que se
refere a comportamentos antissociais praticados por homens e mulheres, mas
ainda há ausência de estudos em Portugal sobre a mulher que transgride as
normas sociais e legais (Matos e Machado, 2007).
Castiglione (2010) contribuiu para o desenvolvimento do estudo sobre a
criminalidade feminina. Para ele, a mulher agressora apresentava
características individuais ' biológicas, sexuais e psicológicas ' resultantes
da natureza feminina e que eram afetadas por fatores socioeconómicos, culturais
ou políticos (Castiglione, 2010; Matos, 2008a). Recorrendo a medidas
antropológicas e biológicas, conclui que o criminoso nato era um ser atávico,
ou seja, acreditava que os ofensores nasciam criminosos e que partilhavam
diversas características físicas e traços psicológicos, fazendo estudos com a
população masculina como forma de sustentar a sua teoria (Lombroso e Ferrero,
1895 cit. Matos, 2008a).
Lombroso e Ferrero chegam à conclusão que a criminalidade feminina é mais
ocasional do que natural. Porém, quando é ocasional, ela é potencialmente mais
violenta do que a praticada pelo género masculino, o que faz com que as
mulheres sejam vistas como seres mais primitivos que os homens (Lombroso e
Ferrero, 1895 cit. por Matos, 2008a). Os autores entendiam que o comportamento
desviante das mulheres estava associado a um desvio sexual, sendo desta forma a
mulher comparada a uma mulher prostituta (Lombroso e Ferrero, 1895 cit. por
Matos, 2008a: 33). Numa outra perspetiva, Thomas (cit. por Beça, 2012: 4)
atribui especial importância às questões de classe, indicando que a
criminalidade feminina se verifica essencialmente em raparigas de classes
desfavorecidas, consideradas mais imorais do que as outras.
Também os contributos da psicanálise foram importantes para o estudo da
criminalidade feminina. Surge a ideia de que a delinquência praticada pelas
mulheres era resultado de patologias e perturbações mentais (Matos, 2008a), ou
seja, seriam os problemas emocionais que as levariam a cometer determinados
crimes, sendo a mulher transgressora considerada, em simultâneo, como
perturbada mentalmente (Konopka, 1996, cit. por Matos, 2008a).
O crime e o desvio do género feminino resultariam, desse modo, em certa medida,
de uma socialização masculinizada, onde as mulheres delinquentes se afastam das
expectativas normativas de feminilidade, dos papéis sociais estabelecidos para
as mulheres, como é o caso da maternidade. A mulher é tida como dupla
transgressora, na medida em que, para além de transgredir a lei, ou seja, não
cumprir os papéis sociais que são esperados que siga, transgride os papéis de
género, isto é, o seu papel de mãe e de dona de casa (Matos e Machado, 2012). A
sociedade passa, então, a percecionar tal facto como um abandono do lar por
parte da mulher e uma falha na educação dos seus filhos (Matos, 2008a; Beça,
2012).
Podemos considerar dois discursos distintos ao nível da perspetiva sociológica
sobre a desviância feminina, na primeira abordagem de cariz positivista
centrados na família e na conformidade aos papéis de género (procuram-se no
seio familiar as causas para a transgressão), numa segunda abordagem a
perspetiva sociológica afasta-se dos discursos positivistas e consolida-se em
termos de sociologia de desviância e a emergência da criminologia crítica,
apesar de se centrarem mais nos estudos dos homens do que nas mulheres (Matos,
2008b).
Relativamente ao fenómeno criminal, desde cedo homens e mulheres teciam
relações diferenciadas com o direito penal. Antes da aprovação do Código Penal
de 1852, a Doutrina Penal Portuguesa estipulava frequentemente penas distintas
para cada um dos sexos (Vaz, 1998 cit. por Matos, 2008).
3. Mulheres ciganas e tipos de crimes praticados
Em Portugal os ciganos caracterizam-se por uma elevada taxa de analfabetismo,
absentismo e forte estigma escolar, entrando muito cedo no contexto de economia
informal, têm baixa qualificação profissional, ausência de tradição de trabalho
assalariado e uma atitude de retraimento ao nível da participação política
(Mendes, 2005: 17-18). Com efeito, o grupo étnico cigano, dedicado
tradicionalmente ao artesanato e ao comércio ambulante, perante a concorrência
e a multiplicação, quer de indústrias substitutivas de certos produtos
artesanais, quer das grandes superfícies comerciais, tem sofrido um processo de
crescente instabilidade e precarização socioeconómica (Gomes e Granja, 2012).
Coelho (1995 (1892)) refere que a atividade profissional dos ciganos era a de
tratadores de cavalgaduras. Não havia documento legislativo a atribuir aos
ciganos qualquer atividade relacionada com os metais ou qualquer outra lícita,
mas o autor refere que os roubos e os furtos eram a principal atividade
delituosa dos ciganos. Pensava-se que os ciganos roubavam o que se relacionasse
com a sua alimentação, em atos praticados de forma silenciosa e discreta. Raras
eram as situações em que ocorriam os roubos à mão armada, assim como rara era a
prática de homicídios. Para este autor os crimes mais frequentemente praticados
seriam a burla.
A realidade, hoje em dia, é diferente da reportada por Coelho. São mais
frequentes os crimes contra a propriedade, no caso concreto das reclusas no
Estabelecimento de Tires, em particular, e os crimes de tráfico, de forma
global.
Moreira (1999) salienta que se destacam os crimes relacionados com o tráfico de
estupefacientes, com 64%, os crimes contra a propriedade, com 22% da população
cigana reclusa, e os crimes contra as pessoas, com 8% da mesma população. De
forma residual, cerca de 6% reparte-se por um conjunto de outros crimes.
Mais recentemente, Gomes (2013) aborda a tipologia do crime desta minoria
étnica, procurando encontrar igualmente a motivação para a sua consumação. A
imagem que a sociedade detinha do cigano, como traficante puro, tem vindo a
desmoronar-se. Os crimes de tráfico associados ao consumo têm vindo a crescer e
entre os mais jovens começam a aparecer situações de consumo, consumo este que
é sustentado, muitas vezes, com a prática do crime de tráfico e contra a
propriedade (Gomes, 2013). Por vezes, o tráfico pode ainda assumir uma dimensão
familiar, envolvendo a totalidade ou uma parte da família na prática do crime,
e ser conciliada com a atividade profissional de venda (Gomes e Granja, 2012;
Gomes, 2013). Os crimes relacionados com a droga entre as mulheres ciganas
assumem um papel relevante, na importância que o tráfico de estupefacientes tem
como causa do encarceramento e condenação. Como observa Cunha, todos nós
estamos aqui por drogas (Cunha, 2005: 41). O ato desenvolvido, em termos de
círculos familiares, pode levar à condenação simultaneamente de quatro gerações
' estamos todos no mesmo barco (Cunha, 2005: 42).
4. Reclusas ciganas no Estabelecimento Prisional de Tires
O Estabelecimento Prisional (E.P.) de Tires foi inaugurado em 1953, construído
numa área de 34 hectares. Situando-se a vinte quilómetros de Lisboa, surgiu
longe do meio urbano, assente numa vertente rural e direcionada para que as
reclusas encontrem no isolamento a capacidade de refletirem sobre o ato
praticado. O trabalho agrícola foi uma aposta pela localização e aspeto
fundamental de readaptação.
Através do Centro Protocolar da Justiça (CPJ) têm-se desenvolvido vários cursos
de formação com vista à valorização pessoal, promovendo a aquisição de
competências durante a permanência no E.P., em áreas tradicionalmente
femininas, como costura, tecelagem, ajudante de cabeleireiro, tapetes de
Arraiolos, hortofloricultura, jardinagem, iniciação à informática, iniciação à
culinária e assistente de manutenção de edifícios.
Este estudo decorreu entre 1 de junho de 2012 e 30 de abril de 2013. Neste
período estavam recluídas 27 reclusas ciganas em cumprimento efetivo de medida
privativa de liberdade. Os dados relativos à caracterização sociodemográfica e
jurídico-penal das reclusas ciganas foram retirados dos seus processos
individuais e pela leitura do acórdão de sentença. Verifica-se que mais de
metade das reclusas tem idade superior a 40 anos e a média de idade das
reclusas situa-se nos 45 anos.
O E.P. visa contribuir para aumentar a escolarização das reclusas e, para isso,
recorre ao ensino assegurado pelas escolas públicas com a deslocação de
professores, desde o Ensino Básico ao 12º ano, e permite exames de acesso ao
Ensino Superior.
Os níveis de escolaridade das reclusas ciganas são baixos: quinze reclusas são
analfabetas e existem duas reclusas cujo nível de escolaridade é desconhecido.
Para dezassete reclusas num universo de 27, o índice de literacia ronda os
62,9%. Apesar de não ser tão significativo como em outros estudos (Moreira,
1999; Mendes, 2005; Magano, 2010), prevalece entre esta comunidade uma elevada
taxa de analfabetismo. Por exemplo, Moreira (1999) refere que por sexo as
taxas de analfabetismo, formal e informal, entre as mulheres sobem até quase
aos 90% (Moreira, 1999: 8). Situação que é similar para com outras pessoas
ciganas não reclusas, entre as quais os níveis de literacia são igualmente
baixos (Mendes, 2005; Magano, 2010).
Entre as restantes mulheres (doze), há oito com o primeiro ciclo completo, uma
com o Ensino Secundário e outra com o Ensino Preparatório (para duas das
reclusas ciganas não há informação). A frequência e a conclusão do nível de
escolaridade podem já ter ocorrido durante a reclusão ao abrigo do Plano
Individual de Readaptação (PIR) ou numa fase pré reclusão ao abrigo do
Rendimento Social de Inserção (RSI).
A reclusão tem um forte impacto na vida das reclusas ciganas. Se, por um lado,
estão em contato com reclusas não ciganas, o que as obriga ao convívio dentro
das normas prisionais e a imposição do cumprimento das regras institucionais,
também existem marcos que se vão refletir e influenciar a vida destas mulheres
durante e após o cumprimento da pena, como é o caso de um desenvolvimento de
novas competências e de uma diversificação das relações sociais.
As razões apuradas para a ocorrência do abandono escolar são diferenciadas
entre homens e mulheres ciganos. Para Mendes (2005), no caso masculino, o
abandono escolar ocorre sobretudo para irem trabalhar e ajudar os pais na feira
e, no caso feminino, fica a dever-se sobretudo a tarefas relacionadas com a
família. As crianças ciganas são socializadas para a realização de casamentos
em idades relativamente precoces (por comparação com a sociedade maioritária),
sendo este também um fator inibidor de uma frequência escolar prolongada
(Casa-Nova, 2006: 169). O abandono escolar é explicado quer pela idade de
casamento, quer pelo facto de serem meninas e, por vezes, terem de ajudar as
mães nas tarefas domésticas. E isto acontece quer com as filhas mais velhas,
que têm que ajudar a mãe a cuidar dos irmãos mais novos, quer com as filhas
seguintes, pois à medida que as irmãs mais velhas vão casando, elas vão tendo
de deixar a escola para assumiram o seu papel nas tarefas de casa (Gomes,
2011). Para alguns progenitores ciganos basta que os seus filhos aprendam a ler
e a escrever, vistas como competências básicas e suficientes para o exercício
da atividades profissionais esperadas (Mendes, 1997).
Às mulheres ciganas compete a transmissão da cultura na educação dos filhos, a
execução das tarefas domésticas, o apoio aos maridos nas suas atividades e o
papel de reprodutoras para assegurar a continuidade social e a sobrevivência do
grupo. As diferenças de género começam a notar-se logo na infância, já que aos
rapazes é dada total liberdade, ao passo que as raparigas ficam sob o olhar
atento dos familiares e desde cedo aprendem a cuidar dos irmãos e das tarefas
domésticas (Gabriel, 2007).
Em certa medida podemos considerar que existe uma lacuna institucional, no
sentido em que, mesmo reconhecendo a necessidade de incentivar e promover a
educação no seio da comunidade cigana, há uma certa negligência na orientação e
no método educativo que é pouco flexível e adaptado à população cigana e às
necessidades multiculturais (Araújo, Fonseca, Magalhães, Leite, 2007
inTeixeira, 2009).
Muitas vezes os ciganos são vistos como um grupo associal, incapaz de viver em
sociedade, como exemplo máximo de uma comunidade fechada, cujos membros
partilham uma identidade coletiva distinta e persistente, com base em
características culturais, fundamentais para os membros do grupo (Chulvi e
Pérez, 2003, cit. por Teixeira, 2009: 14). No que se refere às mulheres
reclusas estudadas, a maioria, (dezasseis casos em 27), está associada à
atividade da venda ambulante, a única fonte de sobrevivência que têm na
sociedade atual, mas também o meio de manter as suas características culturais,
sobretudo pela forte pressão para o casamento e para o papel na transmissão
cultural (Casa-Nova, 2006). As mulheres continuam responsáveis pelo lar e pela
educação dos filhos. Em situações extremas de prisão, perseguição ou doença do
marido cabe-lhes o sustento da família, a resolução dos assuntos da família
junto dos organismos públicos e sociais, bem como o apoio ao marido nos
negócios, sendo elas que normalmente fazem a venda dos produtos que
comercializam nas feiras (Costa, 2001: 13).
Algumas famílias ciganas recorrem ao apoio do Estado, sobretudo ao Rendimento
Social de Inserção (RSI), devido à precariedade laboral e às situações de
pobreza. As expectativas em relação a este benefício social são positivas, já
que se espera a melhoria das condições económicas das famílias e a satisfação
das necessidades básicas. No entanto, a essência do RSI é sobretudo a de
permitir um auxílio temporário, um complemento ao rendimento familiar mensal,
como forma de melhorar as suas condições (Santos e Marques, 2012), mas por
incapacidade de resolução das situações tende-se a permanecer nesta
dependência. Tendo em conta as características específicas desta população, a
maioria das ações de formação que estão contempladas nos contratos de inserção
parece profundamente desadequada às necessidades dos ciganos (Ministério da
Segurança Social e do Trabalho, 2002: 57). Ou seja, algumas análises têm vindo
a mostrar que o RSI não é muito eficiente na promoção da inclusão social dos
beneficiários ciganos, que se tornaram dependentes da medida pela situação de
desemprego e também com atividades económicas precárias (ERRC/Númena, 2007:
52).
Em relação às reclusas ciganas, as ocupações profissionais antes da reclusão
eram: vendedoras ambulantes (dezasseis reclusas), empregada doméstica (sete
reclusas), ajudante de cozinha (uma reclusa), cartomante (uma reclusa) e sem
profissão (duas reclusas).1 Quanto aos apoios sociais de que beneficiavam,
dezassete tinham RSI e dez não tinham apoios.2
Relativamente ao estado civil, apenas três reclusas referem ser solteiras e as
restantes 24 (88,9%) encontram-se casadas segundo a tradição cigana, viúvas ou
divorciadas. Este resultado vai ao encontro do referido por Moreira, o estado
civil revela de modo claro, que a maioria (80,9%) vive em união de facto,
comummente designada de casamento segundo a lei cigana (Moreira, 1999: 10). Os
nossos dados confirmam a predominância da união conjugal através do casamento
cigano e preferencialmente endogâmico. A endogamia faz parte da tradição do
casamento cigano e não se reporta apenas a casamentos dentro da mesma etnia mas
também na própria família, pois é comum haver casamentos entre primos. Os
casamentos com pessoas não- ciganas são evitados, dado que, aos olhos da
comunidade, significam uma perda de reputação da família, existindo em algumas
situações o receio de uma perda de determinadas especificidades culturais. A
partir do casamento, a mulher cigana ocupa um papel importante no seio da
família e a maternidade reveste-se de enorme importância. O casamento significa
a constituição de uma família onde se faz a transmissão dos valores ciganos às
gerações seguintes (Coelho, 1995 (1892)).
A virgindade assume-se como um valor a preservar por viabilizar o casamento,
segundo a lei cigana. A pureza feminina é uma reputação a manter, pois caso
isso não aconteça a mulher cigana perde a possibilidade de se casar pela
tradição cigana e o respeito das famílias ciganas (Santos, 1999). Por isso
mesmo, a censura e o controlo social são muito apertados no que respeita às
raparigas solteiras, exigindo-se destas uma elevada rigidez moral e de
comportamentos. O relacionamento existente no seio familiar coloca a mulher
cigana numa posição de submissão ao género masculino: ao pai e aos irmãos,
antes do casamento, e ao marido, depois do casamento ' na hierarquia
tradicional cigana, profundamente conservadora, a subordinação dos mais novos
aos mais velhos, e da mulher ao homem são fatores que contrastam com o
relacionamento homem - mulher das sociedades ocidentais, ditas democráticas. As
mulheres ciganas são educadas desde pequenas, no sentido do dever para com a
família e os seus, esquecendo-se de si próprias, sendo a sua vida ditada pelos
papéis sociais que a comunidade lhe vai atribuindo (Caré, 2010: 51). Por outro
lado, pode ainda ocorrer a mulher cigana mais velha exercer igualmente
autoridade sobre a mais jovem (Fundación Secretariado Gitano, 2012).
A primeira prisão das reclusas situa-se entre os 18 e os 59 anos. Constata-se a
existência de um universo de jovens em privação de liberdade, pois o intervalo
entre os 18 e os 39 anos é o mais representativo. Estamos perante uma pirâmide
etária jovem com um total de dezassete reclusas (62,9%).
Quanto aos antecedentes criminais, constatou-se que dezassete das mulheres
reclusas são reincidentes (62,9%) e dez são primárias (37,1%). A relativa
juventude do universo leva-nos a concluir que o contacto com o sistema
prisional se fez cedo. Percebe-se que as reclusas primárias em cumprimento
privativo de liberdade são uma pequena franja em relação à amostra. Verifica-se
que a primeira medida privativa de liberdade tem surgido com maior impacto em
mulheres com idade superior a 40 anos, o que nos pode levar a questionar a
eficácia das medidas disponibilizadas pela instituição total, pois é visível a
existência de 63% de reclusas com antecedentes criminais.3 O mecanismo colocado
à disposição pela instituição total para que as reclusas no seu retorno à
sociedade consigam integrar-se, sem necessidade de recorrer novamente a
atividades ilícitas, não tem surtido efeito, uma vez que voltam a reincidir com
frequência.
Os delitos que levaram as mulheres ciganas ao E.P. de Tires foram os seguintes:
crime contra a propriedade (quinze reclusas), crime de tráfico (onze reclusas)
e crime contra pessoas (uma reclusa)4. Ou seja, neste caso, o crime mais
cometido foi contra a propriedade, enquanto Moreira (1999), Cunha (2002)5 e
Gomes (2013)6constataram que a maioria da população cigana feminina está detida
nas cadeias portuguesas por tráfico de estupefacientes.
5. Adaptação ao meio prisional por parte das reclusas ciganas
O processo de controlo social permite que se desenvolvam, no interior da
prisão, diferentes tipos de adaptação, a qual se assume a forma como cada
indivíduo se ajusta ao meio envolvente, procurando a consciencialização do
local onde se encontra (Gonçalves, 1993). São vários os fatores que influenciam
esse processo, com destaque para a duração da pena, a integração no meio, a
integração perante a cultura institucional existente e a conformidade ou não
com as normas estabelecidas pelo controle social (Gonçalves e Cunha, 2012).
Considerou-se que o comportamento das reclusas face a cada uma destas três
fontes de informação seria um indicador claro do tipo de adaptação individual
ao meio prisional. Assim, nesse sentido, foram recolhidos dados nos Processos
Disciplinares (PD) e também sobre os acessos aos Serviços Clínicos (SC) e aos
Serviços de Educação e Ensino (SEE). Apresentam-se, de seguida, os valores
médios obtidos em cada uma das fontes de informação e o respetivo valor de
desvio padrão, como forma de avaliar qual o modo de adaptação que apresentam as
reclusas ciganas.
Se considerarmos estes perfis como variáveis de distinção ao processo de
adaptação à instituição total, a variável dos PD apresenta menos de um ponto
percentual entre a média e o desvio padrão. As reclusas ciganas apresentam
diferenças no número de acessos aos SEE e no número de acessos aos SC. A razão
para a diferença reside no facto de o resultado do desvio padrão ser muito
desigual, apresentando valores muito altos ou muito baixos. Assim, a dispersão
da amostra é muito diferente, não se concentrando em relação à média.
É ainda necessário referir que todas as variáveis em análise apresentam
elevados valores de desvio padrão, o que indica a existência de dispersão e
diferença entre as reclusas no acesso a estes três serviços.
O modelo desenvolvido por Gonçalves e Cunha (2012) salienta a existência de
dois tipos de adaptação: os mal adaptados, associados em função do número de
processos disciplinares que ocorrem durante determinado período de tempo; os
inadaptados, resultantes da frequência nos acessos aos SC e aos SEE, durante
determinado período de tempo. Ora, seguindo esse modelo, verifica-se que a
população reclusa cigana apresenta níveis de má adaptação superiores aos níveis
de inadaptabilidade.
A maioria das reclusas registou entre um a três processos disciplinares
(55,6%), sendo que a restante população cigana se distribuiu de modo semelhante
pelas restantes categorias. Importa salientar que vinte reclusas manifestaram
índices de comportamento positivo, o que significa que se encontram dentro dos
parâmetros definidos, perfeitamente integradas dentro das normas
institucionais. Apenas sete reclusas (25,9%) se inserem em índices negativos em
relação ao número de processos disciplinares. Em termos teóricos, e dentro do
que foi descrito, uma das possibilidades para avaliar a adaptação do recluso ao
meio prisional pode ser considerada em função do comportamento que este
apresenta. A variável processos disciplinares é a medida mais usual para os
estudos da adaptação à prisão (Wright, 1985 cit. por Gonçalves e Cunha, 2012).
Assim, um maior número de processos disciplinares é sinónimo de uma pior
adaptação.
Cerca de metade da amostra acedeu entre uma e oito vezes aos SC (48,1%) do
E.P., e as restantes reclusas ciganas acederam entre nove a dezasseis vezes aos
mesmos serviços (48,1%). Nos extremos da escala foi possível observar que todas
as reclusas ciganas acederam aos serviços clínicos e que apenas uma reclusa
recorreu mais do que dezasseis vezes a este tipo de serviços. Os acessos podem
estar associados a queixas por doença/ferimentos e as mesmas estarem
relacionadas com o stress e ansiedade (Gonçalves e Cunha, 2012: 563). Assim,
considera-se que as reclusas que acedem mais vezes aos SC têm maiores
dificuldades de adaptação, excluindo-se desta análise situações de doença
crónica.
Constata-se também que as reclusas acederam ao SEE, o qual presta um apoio
importante no interior da instituição. O acompanhamento desenvolvido durante o
cumprimento efetivo de medida privativa de liberdade pode ser de índole
pessoal. Aqui enquadram-se as solicitações para resolução de problemas de
natureza jurídica, familiar ou social. Pode ser ainda de índole institucional,
onde a própria instituição requisita a presença da reclusa em atendimento, de
forma a elaborar e a acompanhar o processo de reinserção social. Se as reclusas
não recorrem aos serviços disponibilizados pelo E.P. deve a instituição fazer
um acompanhamento com alguma regularidade.
Das 27 reclusas, dezasseis acederam a estes serviços entre uma a oito vezes,
valores considerados normais por se encontrarem dentro da média, uma vez que
se torna crucial o acompanhamento. Por seu lado, dez reclusas acederam entre
nove a dezasseis vezes, o que indicia alguma instabilidade. Existe, no entanto,
uma reclusa que recorreu mais de dezasseis vezes a estes serviços e, neste
caso, é notório o desfasamento face à realidade institucional. Importante foi
verificar que todas as reclusas acederam aos SEE, pelo que se o mesmo não
existisse seria um importante revés em relação ao processo de reinserção social
e a instituição sairia fragilizada.
Conclusão
Um eixo importante deste estudo foi a análise da adaptação ao meio prisional
por parte das reclusas ciganas. Para isso usou-se a informação disponível pelo
sistema penal e a categorização de Gonçalves (1993) que foi aplicada à
população feminina detida em cumprimento efetivo de medida privativa de
liberdade no E.P. de Tires. Constata-se que o processo de adaptação à prisão
não é fácil, pois com a reclusão há a imersão num mundo estranho, com regras
impostas pela cultura não cigana e que se aplicam ao modo de gerir e viver o
quotidiano na prisão. Dentro da instituição total prisão entende-se que uma
conduta de não adaptação consiste no registo de PD, no número de acesso aos SC
e o número de acompanhamento por parte dos SEE. Pressupõe-se que as reclusas, à
medida que apresentam um maior número de incidentes disciplinares, estejam mal
adaptadas, assim como quanto maior for o número de acesso aos SC e aos SEE
apresentem menor capacidade de se adaptarem.
Em termos sociodemográficos (baixa escolaridade, atividades profissionais,
dependência de apoios sociais, união conjugal) e jurídico-penais, os resultados
obtidos confirmam os de outros autores como Moreira (1999), Cunha (2002) e
Gomes (2013), no que se refere ao perfil sociodemográfico e aos tipos de crimes
cometidos pelas mulheres ciganas. Este estudo sobre mulheres ciganas em
cumprimento de medida privativa de liberdade no E.P. de Tires não pode ser
extrapolado para outros contextos prisionais, uma vez que seria necessário
desenvolver um estudo extensivo a outros estabelecimentos prisionais.
Notas
1 Fonte: Sistema de Informação Prisional 2013.
2 Fonte: Secção de reclusos do E.P. de Tires.
3 Os antecedentes criminais permitem o conhecimento nos termos legais de todas
as condenações proferidas por tribunais portugueses e estrangeiros a cidadãos
nacionais e de estados terceiros.
4 Valor residual face ao total da amostra.
5 Apenas com mulheres reclusas.
6 Com diferenciação de sexo.