Representações do cigano na literatura juvenil portuguesa
Introdução
Apesar de o povo cigano estar presente em Portugal há quinhentos anos (Costa,
2001) e de algumas alterações em termos de direitos sociais e de cidadania
conseguidas após a instauração do regime democrático, a inclusão social da
população cigana continua comprometida por dificuldades relacionadas com o
exercício pleno da cidadania, por processos de estigmatização e de segregação
socioétnica e por relações sociais discriminatórias (Mendes e Magano, 2013). De
forma particular, os estereótipos e as representações sociais negativas
cristalizadas dificultam a efetiva integração destes cidadãos na sociedade
portuguesa (Bastos, 2012; Costa, 1995; Marques, 2013; Mendes, 2013; Nicolau,
2010; Silva e Silva, 2011).
Na Estratégia Nacional para a Integração das Comunidades Ciganas (2013-2020)
(Resolução do Conselho de Ministros n.o 25, 2013), que tem como principais
áreas de intervenção a educação, a saúde, a habitação e o emprego, refere-se,
de uma forma clara, a necessidade de se ultrapassar a desconfiança mútua
existente entre a comunidade maioritária e a minoria cigana, sublinhando-se o
facto de as representações dos elementos desta etnia serem feitas de
preconceitos e estereótipos que vão desde a simpatia romântica ligada ao
folclore até a aspetos mais negativos. Considera-se, pois, prioritária a
promoção do combate à discriminação e a sensibilização da opinião pública,
divulgando-se e valorizando-se a cultura cigana por um lado, e, por outro,
desconstruindo-se os preconceitos que dificultam a aproximação entre os
indivíduos ciganos e não-ciganos.
De acordo com o Diagnóstico Social do Concelho de Viseu (Conselho Local de Ação
Social de Viseu, 2011), os cidadãos ciganos viseenses parecem ser alvo de
marginalização e exclusão, o que parece dificultar a integração e a promoção
social1. Vivem neste concelho 177 famílias de etnia cigana, 689 indivíduos,
vivendo 326 destes (ou seja, aproximadamente 50% do total desta população) em
bairros sociais (Bairro Social de Paradinha e Bairro Social da Balsa) e os
restantes em zonas rurais, sobretudo nas freguesias de S. João de Lourosa e de
Silgueiros. As famílias ciganas do concelho de Viseu são numerosas, com taxas
de natalidade expressivas, coabitando, no mesmo espaço, várias gerações da
mesma família. Uma grande percentagem dos indivíduos ciganos do concelho tem
menos de 25 anos. Para além de apresentarem baixos recursos económicos e de um
número significativo de famílias beneficiarem do Rendimento Social de Inserção
e do Abono Familiar, os cidadãos ciganos do concelho de Viseu apresentam níveis
de escolaridade muito baixos, parca especialização profissional e fraco capital
cultural e social.
O eixo da educação constitui, na Estratégia Nacional para a Integração das
Comunidades Ciganas, um pilar importante, não só porque a escolarização e a
qualificação profissional oferecem novas formas de desenvolvimento pessoal e
social aos cidadãos ciganos, mas também porque a escola pode e deve constituir-
se como um importante interface cultural entre as diversas comunidades. A
escola deve realizar ações que promovam e consolidem o diálogo intercultural,
constituindo-se como a primeira plataforma para a alteração de visões e de
comportamentos que discriminam e excluem. Concordamos com Pereira (2008: 99)
quando afirma que é muito importante a promoção de ações de ordem social e
pedagógica que tenham como objetivo melhorar as relações, em contexto
educacional, entre indivíduos ciganos e não ciganos. A relação entre estes
sujeitos é considerada problemática e objeto de estudos a nível nacional,
sobretudo porque A distância social existente entre os ciganos e os não
ciganos é aprofundada e consolidada por um abismo onde se conjuga o
desconhecimento, a mitificação e o medo (Duarte et al., 2005: 129).
Com o objetivo de promover a formação para a cidadania e a desconstrução de
preconceitos e estereótipos surge, na Escola Básica D. Luís de Loureiro, no ano
letivo de 2012-2013, a partir da Biblioteca Escolar, o projeto Encontrar o
Outro nos livros. Este projeto parte da literatura porque, como salientam
vários investigadores portugueses (Balça, 2007; Bastos, 2008; Gomes, s/d;
Morgado e Pires, 2010), a literatura, e de forma particular a de potencial
receção infantil e juvenil, assume um papel crucial no desenvolvimento de
atitudes de respeito, compreensão e aceitação das diferenças culturais e
étnicas. A literatura infantil e juvenil pode constituir-se como um espaço de
representação da diversidade cultural que nos rodeia, de muitas vozes que falam
diretamente ao intelecto de leitores sobre muitas coisas, de forma variada
(Morgado e Pires, 2010: 13), assumindo-se como um caminho singular no âmbito da
educação intercultural. Com efeito, a literatura pode estabelecer-se como um
espaço de representação da diversidade cultural, ajudando a destruir
preconceitos e estereótipos e a promover o diálogo entre as diferentes culturas
(Morgado e Pires, 2010).
Neste artigo, descreveremos o projeto Encontrar o Outro nos livros e, a
partir da análise das representações do cigano em narrativas portuguesas de
potencial receção juvenil, refletiremos sobre o contributo desta literatura
para a educação intercultural. Pretende-se verificar a forma como as figurações
veiculadas nestas obras contribuem para a construção de um determinado
imagótipo cigano e refletir sobre o modo como essas representações concorrem
para a manutenção de preconceitos e estereótipos junto dos seus potenciais
leitores.
1. O Projeto Encontrar o Outro nos livros
Através do projeto Encontrar o Outro nos livros, os alunos foram confrontados
com imagens sociais e culturais do Outro presentes em produções literárias de
potencial receção juvenil. Numa perspetiva literária, identificou-se o Outro
tendo por base a investigação realizada por Paterson (2004), apoiada
teoricamente nos estudos de Eric Landowski (1997). Reconhecer o significado do
conceito do Outro na literatura, implica, segundo Paterson (2004), poder
identificá-lo como uma formação discursiva e cultural, sendo a Alteridade não
apenas associada ao estrangeiro, mas também àqueles cuja Alteridade é
determinada, na vida real, pela sociedade que os envolve, o que implica,
necessariamente, no universo ficcional, uma diferença em relação a um grupo de
referência, conceito desenvolvido por Landowski (1997). Para além do Outro
imigrante, do Outro gordo e do Outro homossexual, o projeto focalizou-se no
Outro cigano. Visou-se, com a implementação deste projeto, a desconstrução de
preconceitos e de estereótipos e a promoção do respeito pela diferença.
Este projeto, da iniciativa da professora bibliotecária da Escola Básica D.
Luís de Loureiro, envolveu as três turmas do 8.º ano desta escola, num total de
46 alunos, e os respetivos diretores de turma. Apesar de, nesta escola, haver
43 alunos ciganos inscritos, apenas um aluno cigano frequenta o 8.º ano,
fazendo parte de uma das três turmas envolvidas no projeto. Refira-se que se
registou, ao longo do ano letivo, algum absentismo e abandono escolar2.
As sessões semanais realizaram-se durante o tempo de Formação Cívica, entre
janeiro e abril de 2013, tendo sido concretizados, em cada turma, dezasseis
momentos formativos. Deter-nos-emos, neste artigo, apenas nas atividades
desenvolvidas em torno do Outro cigano.
Os alunos não ciganos das turmas envolvidas começaram por preencher um
questionário sobre o povo cigano e sobre a forma como se relacionavam com os
colegas de etnia cigana, na escola. 72% dos alunos referiu que o seu
relacionamento com os alunos ciganos da escola não é muito favorável, porque os
colegas ciganos são muito violentos. Curiosamente, apenas os alunos da turma
onde existe um aluno cigano responderam que, nos intervalos, esporadicamente,
convivem com esse colega. Os alunos que afirmaram que nunca convivem com
colegas ciganos referiram que têm medo deles, porque são conflituosos e
agressivos. A globalidade dos alunos mencionou que os ciganos que frequentam a
escola são mal-educados, desrespeitadores, antipáticos, preguiçosos,
ladrões, desconfiados, violentos, maus, pouco asseados, estúpidos,
registando-se exceções devidamente relacionadas com o aluno cigano de uma das
turmas, considerado simpático, amigo e divertido por quatro dos seus
colegas. As imagens mais positivas parecem testemunhar relações de amizade.
Os resultados destes questionários, que foram mais tarde dados a conhecer aos
alunos e espoletaram uma reflexão na parte final do projeto, expressam
claramente a ciganofobia latente na globalidade dos alunos. Os inquiridos
referiram muitos dos estereótipos associados aos ciganos. Em relação à sua vida
profissional, todos os alunos assumiram que vender nas feiras é a principal
atividade dos elementos desta etnia. Os discentes desconheciam a história do
povo cigano e, em relação à sua cultura, foram mencionadas apenas as danças
ciganas e o facto de as festas de casamento durarem vários dias.
Após o preenchimento do questionário, e seguindo-se o modelo descrito em
Morgado e Pires (2010), passou-se à leitura crítica de excertos, devidamente
contextualizados, de alguns livros de autores portugueses, publicados entre
1995 e 2010, buscando-se nos textos as representações do Outro cigano. Para
cumprir o projeto de promoção da educação intercultural, é preciso ler de forma
crítica os textos, através de uma leitura orientada, para que, efetivamente, se
promova o diálogo positivo entre diferentes grupos culturais (Morgado e Pires,
2010). Esta prática de leitura deve estar integrada na experiência social dos
leitores, deve desocultar ideologias dominantes e levar a uma tomada de
consciência sobre como os livros circulam nas sociedades enquanto artefactos
culturais que representam relações de poder. Consequentemente, esta leitura
deverá aportar alguma ação social, neste caso concreto produzir alterações de
pensamento e de atitudes em relação ao Outro cigano.
O modelo proposto (Morgado e Pires, 2010: 111-122) possui três vertentes
interligadas: inclusão de processos de identificação étnico-raciais das
personagens; importância da análise da representação do espaço como forma de
entender o desenvolvimento de identidades étnico-raciais; modos de configuração
das relações de poder com a diversidade (personagens e espaços). De forma
particular, neste projeto pretendeu-se analisar todos os excertos dos livros
selecionados onde se encontravam personagens de etnia cigana (a sua importância
na narrativa, as informações relativas às suas características físicas e/ou
psicológicas, à sua indumentária ), os espaços onde se moviam as personagens e
os comentários realizados (pelas personagens ou pelo narrador) em relação a
este povo. Esta análise permitiu ainda examinar as atitudes representadas nos
textos em relação ao Outro cigano: os preconceitos, os estereótipos, os modos
de discriminação ativa ou passiva. Toda a informação foi registada numa grelha
de leitura criada para o efeito, servindo a mesma, posteriormente, para apoiar
a realização de um debate.
O momento de discussão teve como principal objetivo, ao confrontar e questionar
as imagens veiculadas pelos alunos no questionário inicial e as representações
presentes nas narrativas em análise, des(cons)truir preconceitos e
estereótipos.
Finalmente os alunos visualizaram uma apresentação elaborada pela professora
bibliotecária sobre a história e a cultura ciganas, que permitiu dar a conhecer
aspetos importantes deste povo. Para além das referências históricas à sua
origem e à forma como estes sujeitos viviam em Portugal antes do 25 de abril,
os alunos tiveram a oportunidade de conhecer outros aspetos relacionados com a
sua cultura, nomeadamente os que dizem respeito à vivência do luto, ao
casamento, às leis que regem as comunidades desta etnia, entre outros. Para
além disso, os alunos conheceram a vida e a obra de ciganos com sucesso na área
da literatura, da pintura, da moda e do futebol, nomeadamente Ceija Stojka,
Katarzina Pollok, Juana Martín Manzano e Ricardo Quaresma, entre outros.
1.1. Imagens dos ciganos na literatura juvenil portuguesa
A referência a este grupo étnico surge apenas em quatro livros de um total de
135 livros de recorte realista de autores portugueses publicados entre 1995 e
2010 (corpusliterário da investigação realizada pela professora bibliotecária
no âmbito do seu doutoramento) a saber: Uma questão de cor(Saldanha, 1995),
Alzira, a santa suplente(Vaz, 1999), Filhos de Montepó(Mota, 2003) e Amanhã
regresso a casa(Barreto, 2004). É pertinente sublinhar que não se encontram, no
entanto, personagens principais desta etnia nas narrativas referidas. Algumas
das produções literárias, como é o caso das de autoria de António Mota e José
Vaz, remetem para realidades relacionadas com este grupo étnico localizadas na
década de 60 do século XX, de certo modo desajustadas da atual situação da
população cigana em Portugal.
Em Os filhos de Montepó, de António Mota, a chegada de uma caravana de ciganos
à pequena localidade de Montepó, a aldeia de Abílio, o narrador-protagonista, é
exemplo do que acabámos de afirmar:
A noite espreitava quando eles apareceram de repente. Vinham todos a
pé e caminhavam sem pressas, à frente, atrás e ao lado de uma
carroça. A carroça estava coberta por um toldo cinzento, polvilhado
de remendos grosseiros. Um burro que mal se tinha em pé, esquelético
e consumido de chagas e moscardos, puxava a velha carroça. Um rapaz
tangia o burro e parecia gostar de lhe bater. Espancava-
o furiosamente com uma vara fina. O barulho das pauladas ecoava pelo
vale e metia dó ouvi-las ribombar por todos os lados. O burro
caminhava devagarinho. Acompanhavam-no quatro cães negros. Os bichos,
sujos e magríssimos, não se cansavam de farejar o caminho empedrado
da aldeia, salpicado com os excrementos endurecidos das cabras, das
vacas e das ovelhas que por ali passavam pelo menos duas vezes por
dia. (Mota, 2003: 7-8)
Todos os elementos da caravana são descritos salientando-se a diferença e a
extrema pobreza das suas indumentárias: Irineu, o cigano da mesma idade do
protagonista, Trazia na cabeça um chapéu preto, sujo, deformado (Mota, 2003:
19), estava mal vestido, com roupas encardidas. Olhava-me de olhos muito
abertos, negros como tições, e os dedos dos pés espreitavam pelas biqueiras das
botas largueironas. ( ) (Mota, 2003: 20); a mãe do rapaz vestia uma saia preta
comprida e trazia um lenço na cabeça (Mota, 2003: 21).
Por outro lado, os ciganos são associados à violência e à maldade, refletindo a
narrativa o imaginário social em relação a este grupo étnico. As crianças
sentem medo quando se deparam com estes sujeitos, muito por culpa dos discursos
preconceituosos dos adultos.3 Refere-se que Irineu falava com pedras na voz
(Mota, 2003: 19), expressão que reforça o caráter irascível dos elementos deste
grupo veiculado no texto.
Nesta narrativa parece consensual o facto de a comunidade sentir que este grupo
incomoda o quotidiano da população, levando alguns dos seus membros a proferir
discursos profundamente racistas, xenófobos, reveladores do desrespeito pelo
Outro e pelos seus direitos. A propósito do barulho que se ouve na rua após a
chegada dos ciganos a Montepó, Renato afirma: É sempre isto. Esta ciganada só
nos incomoda. Viesse uma praga que acabasse com eles de uma vez por todas. Mal
chegaram e já começaram a faltar-nos ao respeito (Mota, 2003: 121). Atente-se
no vocábulo ciganada, claramente depreciativo e pejorativo, a remeter para a
marginalização deste grupo, por um lado, e acentuando a carga negativa que a
própria palavra ciganoencerra em si. Como sublinha Liégeois (2001), o universo
das representações é particularmente revelador das sociedades que lhe deram
origem. É de crer que os Ciganos, por menos numerosos que sejam, perturbam. É o
estranho, mais do que um estrangeiro difícil de definir, que neles é perseguido
com vista à eliminação (Liégeois, 2001: 48).
Curiosamente, se no início da narrativa se estabelece uma relação de alguma
inimizade e se sente inclusivamente pairar um certo desconforto pelo facto de
estes sujeitos diferentes e com hábitos nómadas invadirem o espaço da aldeia,
ao longo da narrativa o leitor é surpreendido pelo amabilidade e solidariedade
revelada por alguns dos seus membros. Com efeito, quem ajuda a mãe de Abílio a
dar à luz num moinho abandonado é uma das ciganas chamada à pressa por um
deficiente mental que vive literalmente à margem da aldeia, esfumando-se as
diferenças étnicas perante um acontecimento tão poderoso como é o nascimento de
um bebé, por um lado, e, por outro, acentuando-se a atitude de verdadeira
solidariedade por parte da mulher cigana. Curiosamente estudos recentes apontam
para o facto de os não ciganos realçarem a solidariedade como uma das
características dos sujeitos ciganos (Duarte et al., 2005).
Em Alzira, a santa suplente, de José Vaz, narrativa localizada também num tempo
anterior à chegada da democracia a Portugal, há uma referência aos ciganos, a
propósito da Feira dos Carvalhos e da intenção de Manuel Cerezino comprar um
burro para passar a fazer venda porta a porta dos seus produtos de retrosaria.
Os vendedores de burros surgem como indivíduos morenos, de cabelo preto,
vestidos de negro (Vaz, 1999: 21). A personagem em causa, Manuel Cerezino,
questiona-se a propósito dessa eventual transação comercial: Ó diabo, vou
fazer negócio com ciganos? (...) Poça, com ciganos ninguém se meta! O melhor é
mostrar boa cara e desinteresse por comprar o burro! (Vaz, 1999: 21). Deixa-se
antever neste breve solilóquio alguns preconceitos em relação aos ciganos,
considerados, no entanto, finos como ratos (Vaz, 1999: 21), com capacidades
de negociação fora do comum, seguramente relacionadas com a experiência
adquirida na atividade comercial a que se têm preferencialmente dedicado ao
longo dos séculos. A argúcia é, pois, associada aos ciganos, assumindo esta
característica uma valoração ambígua, uma vez que se sublinha o facto de os
ciganos serem ardilosos nos negócios que efetuam.
Noutras narrativas, as personagens de etnia cigana ou comentários feitos em
relação a este grupo étnico surgem em contextos mais atuais, como é o caso de
Umaquestão de cor (Saldanha, 1995) e Amanhã regresso a casa (Barreto, 2004). Em
Uma questão de cor, a referência aos ciganos surge enquadrada num comentário de
uma das personagens da narrativa. Daniel, o primo da narradora Nina, afirma:
Desses racismos se faz a tolerância portuguesa. Ciganos, pretos, todos os que
não são como a maioria, são vítimas de discriminação e insultos (Saldanha,
1995: 47). Este breve comentário acaba por plasmar a atitude de uma parte
significativa da população portuguesa em relação ao Outro, ao que é diferente
(Marques, 2007). Nesta mesma obra surge uma comparação a propósito de alguma
confusão nas urgências hospitalares que veicula a forma como a sociedade parece
tratar os portugueses desta etnia, ou seja, sem grande respeito ou
consideração: com gente a morrer pelos corredores em macas; e, ainda por cima,
tratam-nos mal, como a ciganos (Saldanha, 1995: 46). Estes comentários acabam
por sintetizar a marginalização e a exclusão a que a população cigana é sujeita
por parte da sociedade dominante.
Em Amanhã regresso a casa(Barreto, 2004), o protagonista espanta-se com o facto
de encontrar na sua turma, em Lisboa, alunos de várias raças e oriundos de
várias partes do mundo e, sobretudo, o facto de ter um colega de etnia cigana:
Na minha turma há mesmo um cigano. Pensava que os ciganos não
estudavam, apenas vendiam roupa nas feiras semanais, como aquela que
erguem à sexta-feira às portas de Vila Maior. Mas um cigano na escola
também não significa que os outros estudem. (Barreto, 2004: 106)
Este livro acaba por remeter, de forma mais fidedigna, para a atual situação
deste grupo étnico em Portugal. Com efeito, as crianças e os jovens ciganos vão
à escola, embora se verifique um grande absentismo, abandono e insucesso
escolar entre os seus elementos, por razões que se prendem com os ritmos
familiares de organização de vida (feiras, casamentos, entre outros), a
desvalorização da escola por parte dos pais ou as fragilidades da própria
instituição escolar, entre outros fatores4 (Casa-Nova, 2006; Cortesão, 1995;
Cortesão, Stoer, Casa-Nova e Trindade, 2005; Pereira, 2008; Ramos, 2011).
Da análise das representações literárias do Outro cigano é possível concluir
que as mesmas abordam, essencialmente, duas dimensões distintas: a dimensão
física e a dimensão relacionada com traços de comportamento. Com efeito, todas
as figurações remetem para um determinado traço fenotípico (pele escura) e uma
determinada indumentária (saias compridas nas mulheres e roupas pretas, a
remeter para o luto prolongado praticado pelos seus elementos), revelando, de
algum modo, o estereótipo tradicional do elemento deste grupo étnico. São
sobretudo as valorações negativas associadas a traços de comportamento que são
acentuadas. As figurações remetem para indivíduos agressivos e desordeiros, na
mesma linha das conclusões de um estudo recente que teve como objetivo
compreender e analisar as representações existentes sobre a comunidade cigana
em contextos de copresença com não ciganos (Duarte et al., 2005). A
agressividade parece constituir-se como uma característica transversal
atribuída a todos os elementos desta etnia (Fonseca, Marques, Quintas e
Poeschl, 2005), sendo realçada nas breves passagens textuais que remetem para
este Outro.
As figurações remetem ainda para outro estereótipo associado aos ciganos,
nomeadamente a sua argúcia e as suas capacidades, sobretudo ao nível comercial.
Para além disso, a pobreza surge como um dos elementos profundamente
caracterizador deste grupo étnico. Sublinha-se, de forma relevante, sobretudo
nas narrativas cuja ação decorre na década de 60, a organização social deste
grupo. Com efeito, realça-se o facto de viverem em comunidade e de serem
nómadas (referência à caravana que chega a Montepó), para além de se associar
as práticas profissionais destes sujeitos ao comércio, em particular ao que
acontece nas feiras. Para além de ser um fator caracterizador da vida social
deste grupo, este espaço é ainda o cenário das principais relações que se
estabelecem entre os ciganos e os não ciganos, acabando por se constituir como
o palco privilegiado de avaliação das performancessociais. É neste contexto que
as representações sobre os vendedores ciganos se radicalizam, através de
características essencialmente antissociais (Duarte et al., 2005: 83) .
As referências a este Outro que vive entre nós há largos séculos são escassas
nas narrativas em análise e residuais no contexto das publicações de recorte
realista (1995-2010), constituindo este silêncio uma forma de representação ou
antes um não reconhecimento e uma desvalorização das suas manifestações
culturais. Nesta mesma linha de pensamento, Hollindale (1992: 40) reforça a
questão da omissão e da invisibilidade: Who are the people who 'do not exist'
in a given story?, associando-a à transmissão e reforço da ideologia.
As representações presentes nos textos literários mencionados, na globalidade,
para além de residuais, não contribuem para a promoção da cultura e da história
do Outro cigano, cooperando na manutenção de preconceitos e estereótipos. Como
sublinha Moscovici (2009: 653), os estereótipos constituem, em suma, um modo
de conhecimento com função de opor os semelhantes' preferidos aos diferentes
desprezíveis', de distinguir aqueles que não são como nós.
Em Filhos de Montepó(Mota, 2003) esta relação pautada pelo medo e pela
desconfiança é explorada, acabando por revelar a imagem tendencialmente
negativa perpetuada ao longo dos tempos. Os ciganos constituem, aos olhos dos
outros, uma comunidade fechada, com normas e valores próprios, impenetrável,
por um lado, mas também incompreensível para o grande grupo social. Esta
imagem, que não é recente, é veiculada e consolidada pelas breves passagens
textuais que mencionam estes sujeitos que, vivendo no meio de nós, se
constituem como uma forma de alteridade, tal como acontece na realidade
ficcional em causa.
Estas narrativas acabam por refletir muitas das práticas maioritárias que
excluem este Outro no quotidiano, apesar de claramente em Filhos de Montepóse
realçar a profunda humanidade da cigana que ajuda a mãe do protagonista a dar à
luz, contribuindo para interpelar o leitor em relação a este Outro, dando-lhe a
possibilidade de o olhar de forma diferente. Muitas das imagens veiculadas
acabam por ser, como se reforça nesta narrativa, fruto do medo e do
desconhecimento de quem é diferente e vive de forma distinta, difundindo-se
preconceitos que acabam por influenciar e comprometer os relacionamentos
interpessoais com os indivíduos ciganos.
Considerações finais
Apesar de não assumirem representações exatas do mundo histórico-factual, os
textos literários apresentam determinadas visões e veiculam certos pontos de
vista que acabam por provocar, naturalmente, efeitos reais nos leitores. As
atividades literárias têm repercussões na construção social da realidade, na
configuração das normas de comportamento social, uma vez que os modelos de
realidade veiculados pelas produções literárias regulam também os modelos de
interação social (Iglesias Santos, 1994: 337).
Ora, quer o silêncio em relação ao povo cigano e à sua cultura, pela
percentagem residual da presença ou referências a esta etnia nas narrativas
mencionadas, quer o imagótipo veiculado, não parecem apoiar nem o conhecimento
deste grupo nem a desconstrução de estereótipos e preconceitos. Tal como parece
acontecer na sociedade, as produções literárias de potencial receção juvenil
ostracizam os ciganos.
A reflexão espoletada a partir das representações do cigano nos textos
literários e das imagens veiculadas pelos alunos permitiu a realização de um
debate que consideramos de extrema importância, porque, como se refere na
Estratégia Nacional para a Integração das Comunidades Ciganas, é necessário que
as representações negativas sejam questionadas, uma vez que constituem um
obstáculo à comunicação entre a comunidade maioritária e a população cigana.
O projeto Encontrar o Outro nos livros constituiu, no nosso entender, um
momento de formação para a cidadania multicultural (Banks, 2002), ação capaz de
se constituir como um trampolim para a desejável transformação social. Com
efeito,
multicultural citizens take actions within their communities and
nations to make the world more human. Multicultural citizenship
education helps students learn how to act to change the world
(Banks, 2002: 88).
Quando confrontados, no final das atividades, com a forma como as mesmas tinham
alterado ou não a sua forma de ver os ciganos, 44,7% dos alunos respondeu que
os olhava de forma diferente da do início do ano letivo, enquanto 67% dos
alunos afirmou que desenvolveu com este projeto atitudes de maior respeito e
acolhimento dos sujeitos ciganos, compreendendo agora melhor a sua história e
cultura. Pela leitura crítica e pela reflexão mediada, foi possível, a partir
dos textos literários, questionar representações negativas, contestar
preconceitos e estereótipos e promover o encontro e o diálogo com os ciganos.
As atividades que questionem as imagens negativas sedimentadas sobre os
indivíduos ciganos podem promover a convivência mais salutar e fraterna e
eliminar, ou pelo menos reduzir, manifestações discriminatórias. É urgente
quebrar o que Bastos (2012: 362) designa por círculo vicioso da ciganofobia e
cremos que um passo importante é o que envolve as gerações em formação, no
ambiente escolar.
O diálogo com Outro não se estabelece perante posições de fobia, mas com
atitudes de acolhimento e de respeito, valorizando, num patamar de igualdade, o
Outro e a sua cultura (Pageaux, 1989). Curiosamente, na única turma com um
aluno cigano, como verificámos, registaram-se valorações positivas em relação
ao cigano, fruto do convívio próximo. Tememos o que desconhecemos e, por isso,
há necessidade de se promover o conhecimento do povo cigano, derrubar muros e
construir pontes que permitam o encontro entre culturas e a integração efetiva
dos portugueses ciganos na sociedade.
Notas
*Maria da Conceição Tomé. Professora bibliotecária no Agrupamento de Escolas
Viseu Sul (Viseu, Portugal). Investigadora do Centro de Estudos das Migrações e
das Relações Interculturais da Universidade Aberta (CEMRI) (Lisboa, Portugal).
Endereço de correspondência: Escola Básica Infante D. Henrique ' Repeses,
Avenida Cidade Politécnica, 3504-513 Viseu, Portugal. E-mail:
mconceicao.tome@eidh.pt
1 Determinadas instituições públicas e privadas viseenses têm envidado esforços
no sentido de criar um conjunto de ações integradas e concertadas com vista à
inserção social da população de etnia cigana, de forma particular, tendo como
público-alvo as pessoas que residem nas áreas urbanas. A título de exemplo
refira-se o trabalho desenvolvido pela Cáritas Diocesana de Viseu, responsável
pelo Centro Comunitário do Bairro Social de Paradinha e pelo projeto Escolhas
acertadas.
2 Refira-se que, ao longo do ano letivo de 2013-2014, no Agrupamento de Escolas
Viseu Sul, se criaram situações específicas para evitar o abandono e o
insucesso escolar dos alunos ciganos, dando resposta às suas necessidades
educativas e de formação, a saber: uma turma PCA (Percurso Curricular
Alternativo), uma turma de curso vocacional e uma turma PIEF (Programa
Integrado de Educação e Formação), esta última a funcionar no bairro social de
Paradinha. Algumas destas medidas vinham já sendo implementadas, nomeadamente a
turma PIEF, aberta também a alunos não ciganos. Para além disso, o agrupamento
contratou um mediador para melhorar a comunicação entre a escola e as famílias
ciganas.
3A mãe de Abílio, para os filhos comerem ameaçava-os com histórias de que
ciganos viriam buscá-las: Também eu, com a idade da Rosa, penei imenso com
essa história horrível dos ciganos, porque abominava salada de tomate, arroz de
tomate, cebolada de tomate, caldo de tomate (Mota, 2003: 48).
4 A este propósito veja-se também o estudo de Liégeois (2001) sobre a
escolarização das crianças ciganas.