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EuPTHUAp0872-34192015000100008

EuPTHUAp0872-34192015000100008

variedadeEu
Country of publicationPT
colégioHumanities
Great areaApplied Social Sciences
ISSN0872-3419
ano2015
Issue0001
Article number00008

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Rendimento Social de Inserção, tolerância zero: o embrutecimento do estado

1. Rendimento Mínimo Garantido e o Estado Social: a extensão da democracia A criação do Rendimento Social de Inserção (RSI)1 insere-se numa nova geração de políticas sociais, baseada na promoção e na capacitação de cada cidadão(ã) tendo em conta as redes de relações sociais em que se inserem, a sua posição na estruturação das classes e, sobretudo, as modalidades de participação e de exercício de poder, assim superando as políticas estritamente economicistas (Fernandes, 1991: 10). Esta medida tem na base a perceção de que a pobreza é uma privação de direitos de cidadania que tanto pode ser herdada, como adquirida, e não uma doença social (Fernandes, 1991: 45). A pobreza deixa de ser uma questão individual e transfere-se para o domínio coletivo, como um problema de democracia.

Apesar do recorte inovador desta medida, desde uns anos para temos testemunhado o ascender de um pânico moral em torno do RSI, que enche hábeis discursos políticos e faz correr tinta nos jornais, caracterizando o RSI e os seus beneficiários como laxistas, fraudulentos e malandros. O debate e a caracterização negativa dos beneficiários do RSI alcançou proporções diametralmente opostas ao seu encargo monetário, criando um clima de tolerância zero. A construção e a proliferação destas representações, reproduzidas por atores sociais e amplificadas pela imprensa, edificaram um imaginário sobre os beneficiários do RSI que se transformou numa matéria empírica e socialmente indefensável. Este processo de estigmatização do RSI tem tido um duplo efeito: primeiro, descredibiliza este mecanismo social de forma a legitimar o seu subfinanciamento, a restringir o acesso à medida e subsequente desmantelamento; segundo, introduz nuances discursivas que retiram legitimidade às políticas sociais, visando uma transformação de um Estado Social num Estado Penitenciário (Wacquant, 2000, 2003).

O bombardeamento simbólico, ideológico e estigmatizante dos beneficiários do RSI tem legitimado, como veremos, alterações na estrutura estatal das políticas sociais, inscrevendo, de forma silenciosa, uma alteração na conceção e no papel do Estado-Providência, que, no meio da tempestade da economia global, converteu o debate da crise financeira num debate centrado numa crise de valores, erguendo uma nova doxapunitiva. O enfraquecimento do Estado Social não é expresso nos cortes do financiamento, mas numa individualização dos riscos sociais, num maior controlo autoritário e num aumento da exclusão social, da pobreza e da desigualdade (Esping- Andersen, 1990: 35).

2. Do Rendimento Mínimo ao Rendimento Social de Inserção: avanço ou retrocesso? O surgimento do Rendimento Mínimo Garantido (RMG) nos países da União Europeia (UE) deriva dos níveis intoleráveis de pobreza e de exclusão social que provocaram profundas fraturas sociais (Rodrigues, 2010b; Guerra, 1997; Lourenço, 2005: 137). A sua implementação inaugura uma nova geração de políticas sociais, criando um novo conceito de ação social que é baseado na ideia da promoção, apoiando o desenvolvimento de cada cidadão(ã). O RMG não tinha como objetivo atenuar a pobreza e inserir socialmente pessoas excluídas, mas também reforçar a coesão social ao reforçar a própria cidadania.

Este novo mecanismo social caracterizava-se por três pilares que rompiam com o antigo sistema de políticas sociais, ao aplicar uma nova metodologia de intervenção e a construção de uma rede de apoio: primeiro, promovendo um conceito de cidadania que incluísse o direito ao trabalho e o direito a um rendimento mínimo; segundo, reconhecendo a importância da igualdade de oportunidades como uma forma de combater as desigualdades e a fragmentação social; e, por último, adotando uma abordagem mobilizadora para erradicar a pobreza e a exclusão social (Batista e Cabrita, 2009: 5) Ao aplicar esta nova metodologia, o RMG construía uma nova modalidade de funcionamento do Estado-Providência assente na intervenção e construção de uma rede de apoio social activo e preventivo e, simultaneamente, diferenciando os apoios em função das necessidades dos beneficiários e incrementando a participação activa de muitos dos que tenderiam a reduzir-se à condição de assistidos' (Rodrigues, 2010a: 213). Adicionalmente, a sua vertente pecuniária dava um limiar mínimo de estabilidade monetária e a possibilidade de criação de um projeto de vida minimamente sedimentado para além do programa de inserção (Rodrigues, 2010a: 213). Analisado por Batista e Cabrita (2009: 6), o RMG foi a primeira medida a colmatar a falta de um rendimento mínimo de subsistência para quem não tem quaisquer recursos, independentemente de terem pago ou não contribuições para o sistema de segurança social, e, simultaneamente, a dar resposta a uma série de necessidades que se encontram claramente no domínio da activa o social, mas não se limitam à activação laboral.

Com a eleição da uma coligação de centro-direita nos inícios de 2002, o executivo da coligação PSD-CDS/PP preparou o caminho para um período de retrocesso ideológico em relação à filosofia originária do RMG (Batista e Cabrita, 2009: 7). Utilizando as críticas em torno da implementação da medida, o novo governo, pela mão do Ministro Bagão Félix, propôs substituir o RMG pelo RSI.

A nova filosofia estabelecida para o RSI insere-se no contexto das políticas de ativação, ou seja, do workfare. A introdução de novos mecanismos de controlo tem como objetivos aumentar a sua eficácia e alcançar a sua moralização, o que, nas palavras do Ministro do Trabalho e da Segurança Social, representa um objetivo nobre através da responsabilização individual (Batista e Cabrita, 2009: 7). Existe uma mudança de um paradigma de responsabilidade coletiva para um outro de responsabilidade individual, típico da ideologia neoliberal.

As alterações efetuadas instauraram mais mecanismos de controlo, com o objetivo de não deixar que a medida se tornasse um modo de vida, reforçando a inspeção.

As falhas nos processos de implementação e aplicação do RMG, nomeadamente a incapacidade de inspeção, abriram o espaço público para o debate sobre a justiça desta medida. (Batista e Babrita, 2009: 7) 3. Crise financeira: a austeridade no Rendimento Social de Inserção Os primeiros contornos de restrição e austeridade aplicada ao RSI iniciaram-se com a crise financeira. A preocupação do Governo em reduzir a despesa pública norteou alterações legislativas que modificaram as condições de acesso, bem como os recursos com os quais os beneficiários podiam contar. Daí se conclui que o Decreto 70/2010 veio claramente reduzir a eficácia desta medida de política social na redução da intensidade e severidade da pobreza (Fernandes, 2012: 9). Em maio de 2011, o executivo do Partido Socialista anuncia, pelo seu primeiro-ministro José Sócrates, um acordo de resgate com o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Central Europeu (BCE) e a Comissão Europeia (CE), que constituem a designada Troika. No Programa de Assistência Financeira a Portugal estão inscritas políticas fiscais e sociais de austeridade assentes no corte da despesa e na redução do défice , que são aplicadas de forma a Portugal continuar a receber financiamento externo. Intensifica-se a política de austeridade, assente na redução dos encargos do Estado na saúde, na educação e nas políticas sociais, que desmantela, passo a passo, o Estado Social. Após a intervenção externa, é eleito um governo, de cariz neoliberal, integrado pelo Partido Social Democrata (PSD) e pelo CDS - Partido Popular (CDS-PP), que preconizou uma maior liberalização da economia e das prestações sociais, aumentando os níveis de pobreza e de desemprego a níveis recorde e sem nunca conseguir reduzir a dívida externa, antes pelo contrário, aumentando-a. A crise financeira converte-se numa crise da própria legitimidade do contrato social entre a sociedade e o Estado, pretexto para dispensar as políticas sociais e abandonar os valores do universalismo e da solidariedade, tudo em nome da dívida (Habermas, 1976). Portugal passa a ter o segundo maior encargo fiscal no mundo, ao mesmo tempo que se reduzem as prestações sociais (ex. subsídio de desemprego e o RSI): o Estado Social é substituído por um Estado Penitenciário que tira tudo e não assegura quase nada.

Assim, esta orientação tem vindo a consubstanciar as teses defendidas por Wacquant (2000) e Bauman (1998) assentes na mudança paradigmática do Estado Social para um Estado Penitenciário (Ferreira, 2011: 36). Para estes autores, o modelo norte-americano da lei e ordem seria induzido pela crise da legitimidade do Estado Social, que, não podendo financiar os padrões de proteção social, promoveria uma retórica assente no recalcar de expetativas em matéria social, germinando um modelo de segurança penal que ganharia legitimidade (Ferreira, 2011: 36). Com os cortes nas prestações sociais e o aumento da fiscalização das mesmas, a mão esquerda do Estado educação, assistência social, saúde é suplantada pela regulação da mão direita do Estado, tendo proeminência a polícia e os tribunais (Bourdieu, 1993: 219-28; Bourdieu, 1999: 9-15).

Numa sociedade dilacerada pela austeridade, o medo é um mecanismo de articulação entre estruturas sociais e indivíduos, estruturando as interações sociais e é fonte de identidades coletivas e individuais (Elias, 1994: 195). A gestão do medo é estruturante porque é o mecanismo de legitimação de alterações profundas nas políticas sociais. O medo, enquanto mecanismo emocional desencadeado por uma ameaça face à qual as pessoas se sentem sem poder, torna- se instrumental para a prossecução dos interesses dos que procuram uma intensificação do controlo social e uma legitimação da desigual distribuição do poder e do bem-estar (Innerarity, 2006: 176; Ferreira, 2011: 56).

Ao gerar um clima social e cultural que exprime uma tendência e organiza atitudes e expectativas em torno das funções do Estado, o medo está na base de uma legitimação induzida pela previsão de cenários catastróficos nomeadamente associados ao descalabro financeiro , legitimando a imposição de medidas de austeridade e de exceção (Ferreira, 2011: 56). Enquanto fonte de legitimidade, o medo está na base da construção de um regime paradoxal de causalidade, em que numa sociedade sob austeridade, é um mecanismo que traduz um problema estrutural num problema individual (Ferreira, 2011: 56; Fernandes, 1991; Somers, 2008: 3). Assim, o clima da austeridade é catalisador de profundas transformações nas políticas sociais, nomeadamente no RSI.

Na curta existência do RSI, verificamos uma mudança paulatina de políticas de inserção social do paradigma de welfare, para uma política social de ativação do paradigma de workfare. Recentemente temos vindo a testemunhar uma crescente disponibilização de mecanismos de controlo fiscal e social, em que a prestação social em questão passa de um mecanismo de inserção para um mecanismo de regulação, de controlo e de moralização dos beneficiários. Isto é visível ao verificarmos a passagem da penalização de 12 para 24 meses, se o beneficiário recusar de forma injustificada uma oferta de emprego considerado conveniente, um trabalho dito socialmente necessário ou a frequência de uma formação profissional. Além disto, com o pretexto de voltar a habituar (os beneficiários) às exigências do mundo do trabalho, são acionadas políticas de disciplina laboral, uma vez que os beneficiários têm que trabalhar pelo menos 15 horas semanais. Este processo é legitimado pela doxade que não existem direitos sociais sem deveres, o que significa que o acesso a uma prestação social acarreta um conjunto de obrigações que o Estado exige ao beneficiário.

Esta perspetiva representa um marco: concebe-se os direitos e as obrigações em termos individuais, sustentando uma retração em termos de direitos porque a obrigação que é imposta não oferece possibilidade de recusa (Goodin, 1998).

Para Standing (1999), o problema é que as obrigações não estão igualmente distribuídas, o que compromete o caráter igualitário e universal da cidadania.

Apenas aos beneficiários são impostas obrigações e, caso não as aceitem, ficam sem a prestação financeira do RSI, o que transforma a medida num não-direito.

A própria falta de investimento das instituições públicas nomeadamente nos Núcleos de Inserção torna a relação entre direitos e deveres unilateral, que o Estado e as suas instituições têm o direito de suspender a prestação mas não cumprem a sua obrigação de criar oportunidades de inserção. Da mesma maneira, a imposição de trabalho, quando não acompanhada por medidas de garantia de emprego, não permite uma igualdade de oportunidades, que não existe emprego para toda a gente (Standing, 1999: 318).

4. Gerar pânico: os média e o Rendimento Social de Inserção O senso comum é um produto da história (Gramsci, 1995: 14). Em todos os momentos históricos existe um senso comum, que gera um entendimento alargado e explicativo da vida social e das ideias que a rodeia, ideias estas que não vivem sem organização. No momento atual, produzem-se interpretações naturalistas, individualistas e etnocentristas da exclusão social que sustentam visões estereotipadas de certos grupos sociais, caracterizadas pelo total desconhecimento dos processos sociais que geram a (re)produção da vulnerabilidade social (Pinto, 1985). No período sob análise, o individualismo constitui um elemento estruturador da matriz ideológica do neoliberalismo. Hoje impera a ideia de que a sociedade é constituída por um aglomerado de pessoas e que a prossecução dos seus interesses numa lógica individualizante é a única garantia para um coletivo harmonioso. Esta ideia funcionou e funciona como postulado central, não do senso comum, mas da filosofia política.

Os problemas sociais não têm o mesmo impacto ou importância, não são todos igualmente mediáticos. Assim sendo, o campo jornalístico opera um verdadeiro trabalho de construção. Nesta perspetiva, uma parte dos malesevidentes na representação pública são fabricados explicitamente por interessar aos jornalistas (Champagne, 1991). Os média são geradores e amplificadores de pânicos morais e têm três papéis nos dramas do pânico moral: 1) definir a agenda, ao selecionar os eventos desviantes ou socialmente problemáticos como material noticioso, selecionando quais desses eventos são potenciais candidatos ao pânico moral; 2) transmitir imagens, dando a conhecer as reivindicações de quem incentiva ou acentua a retórica dos pânicos morais; ou 3) quebrar o silencio, ao divulgar e expor casos (Cohen, 2002: XXVIII-XXIX).

Os sucessivos cortes no Estado têm vindo a ser acompanhados com a construção de um clima de desconfiança social. O senso comum a ideia de que um vastíssimo número de pessoas obtém o RSI de forma fraudulenta ganha credibilidade. O Governo confirma essa representação através de práticas institucionais (através da lei e do reforço de controlo administrativo), cujo objetivo seria separar o trigo do joio. As mudanças legais assumem, a par com a cultura pública, a noção de que todos os beneficiários do RSI são fraudulentos. Um pânico moral não implica que algo tenha acontecido e a reação baseada na histeria, na desilusão ou na ilusão, é criada pelo exagero do problema, tanto no seu cerne como em comparação com outros problemas (Cohen, 2002: vii). Na sua abordagem dos incidentes por parte dos média, Stanley Cohen sistematiza um inventário baseado na premissa de que as reações desenrolam-se na base dessas imagens processadas: as pessoas ficam indignadas ou importunadas, formulam teorias e planos, fazem discursos, escrevem cartas aos jornais (Cohen, 2002:30). O inventário dos média pauta-se por quatro características fundamentais: o exagero, a distorção, o prognóstico e a simbolização (Cohen, 2002).

A distorçãoestá ligada ao estilo de apresentação das notícias acerca dos incidentes, ao modo de construir o desvio através de títulos sensacionalistas (Guerra, 2002). No campo da distorção sensacionalista dos beneficiários do RSI verificamos o recurso à generalização e ao uso sistemático de termos desvalorizantes, tais como malandros, preguiçosos e inúteis. Stanley Cohen (2002) ainda destaca um outro veículo de distorção que se baseia nos rumores. A dinâmica de publicação da imprensa noticiosa é operada pela repetição exaustiva de histórias falsas, com o intuito de divulgar histórias não confirmadas (Cohen, 2002: 33).

O exageroexibe-se pela amplificação dos elementos noticiosos, em que o maior tipo de distorção reside no exagero excessivo dos eventos, dos números associados e da violência em torno das notícias. O exagero das reportagens noticiosas emerge como uma característica não apenas das notícias acerca do crime como um todo, mas dos inventários dos média em eventos como protestos políticos, distúrbios radicais, etc. (Cohen, 2002: 31).

Como elemento do inventário, o prognósticodesempenha o papel de desdobrar representações sociais, na medida em que, implicitamente, o sucedido nas notícias irá acontecer novamente sendo que os prognósticos efetuados na fase do inventário tornam a forma das afirmações de figuras locais, tais como os homens de negócio, as autoridades autárquicas e o porta-voz da polícia acerca do que deve ser feito da próxima vez' ou as precauções imediatas que devem ser tomadas (Cohen, 2002: 31). Os prognósticos em torno do pedido e uso fraudulento do RSI são denunciados, grande parte das vezes, por porta-vozes partidários, no decorrer das campanhas eleitorais.

O último elemento do inventário é o poder simbólico, o qual exerce-se através de uma articulação entre palavras e imagens, particularmente propícia à criação de estereótipos (Cohen, 2002: 40). As imagens tornam-se palavras e as palavras tornam-se imagens e cada um repercute sentidos e sensações. Como veremos através da incidência de palavras (Gráfico_1 e Gráfico_2), o RSI tornou-se símbolo de um indivíduo delinquente ou desviante. As palavras ficam despejadas do seu contexto neutral de significado, passando a assumir uma aceção amplamente negativa por intermédio de simbolização, como acontece com os outros tipos de exagero e distorção, as imagens podem tornar-se mais enganosas do que a própria realidade (Cohen, 2002: 43).

Guerra (2002) considera que o fator mais interessante a analisar é o modo como as imagens são cristalizadas em opiniões e atitudes que correspondem a um sistema de crenças que se estruturam dentro de um quadro de opinião pública e são, consequentemente, interiorizadas cognitivamente de forma a organizarem um quadro discursivo dos atores sociais (Guerra, 2002). As principais temáticas do sistema de valores e de crenças podem ser sistematizadas em três categorias: a orientação; as imagens; as causas. A temática da orientaçãoremete para o ponto emocional e intelectual em que o desvio é percecionado, encarando e avaliando os comportamentos grupais com uma profecia de autodestruição. Por outro lado, a temática das imagens acerca dos beneficiários do RSI e dos seus comportamentos cinge-se à fonte imagética que é canalizada para atribuições ilegítimas, cujo objetivo é sustentar uma visão ideológica, dando uma renovada legitimidade para aplicar políticas assistencialistas. Com esta constituição, entram no imaginário coletivo os compósitos do estigma composto por um conjunto de atributos como a irresponsabilidade, a imaturidade e a falta de respeito pelas autoridades institucionais. A terceira e última categoria temática centra-se na atribuição de causaspara o comportamento desviante. Esta lógica prende- se com a perceção de que o desvio é uma patologia, que se tenta explicar através da noção da doença social para a qual uma cura é necessária. E para justificar as referências ao comportamento desviante surgem discursos que deixam entender que muitas oportunidades de emprego não são aproveitadas pelos beneficiários do RSI.

A maioria dos conteúdos expressos na imprensa escrita faz caminho no imaginário do público, desencadeando processos de controlo social. Os modelos sociais dominantes que explicam o desvio formam a base política do controlo social, que, como sistema, terá que dar as respostas para o pânico moral instalado e acomodado. Na reação ao pânico, as respostas sociais são sistematizadas em três processos: sensibilização, culturado controlo social e exploração(Cohen, 2002).O processo de sensibilizaçãopromove a transformação de um problema ambíguo num foco de ameaça generalizado, tornando-o mais percetível, fazendo com que qualquer item de notícia que entra na consciência do individuo tem o efeito de aumentar a sua atenção face a cláusulas que sejam da mesma natureza que o individuo possa ter ignorado ou passado (Cohen, 2002: 77). No que respeita ao RSI, as representações em seu torno ligam os beneficiários a espaços marginalizados da sociedade os bairros sociais e a focos intensos de pobreza.

Decorrendo da sensibilização, instaura-se uma cultura de controlo socialque se caracteriza por elementos comuns como a difusão, a escaladae a inovação. Como elemento mais visível da cultura de controlo social, a difusão sugere que o problema estende-se para além dos espaços em que o comportamento desviante ocorreu, contaminado outros campos sociais. A escalada baseia-se no mecanismo cognitivo que aumenta a intensidade das representações do desvio, para proporções megalómanas (ver Gráfico_1 e 2). Por último, a inovação centra-se no acionamento de uma pluralidade de respostas face ao desvio do sujeito, implicando uma mobilização de técnicas e metodologias para o seu combate (Guerra, 2002). Os agentes do controlo social instituições governamentais, jornais, porta-vozes políticos desempenham um papel fulcral na etiquetagem, tanto na reação mais imediata face ao desvio, como numa relação posterior, cristalizando um sistema de crenças e de generalizações alicerçado em mitos, estigmas e estereótipos que produzem novos mecanismos de policiamento social.

Os média são elementos estruturantes na construção de representações sociais, capazes de fabricar um falso objeto. Os indivíduos ou grupos sociais mais vulneráveis na estrutura social, como os beneficiários do RSI, serão mais vulneráveis à fabricação e aplicação de representações sobre a sua própria vida, pois estas mesmas pessoas situam- se numa posição de dominação social, simbólica e política. Esta expressão da violência simbólica é uma violência que se exerce com a cumplicidade tácita dos que sofrem e também, muitas vezes, dos que a exercem na medida em que uns e outros estão inconscientes do facto de a exercerem ou de a sofrerem (Champagne, 1998: 222). Assim, pretendemos deixar claro que neste quadro de análise é a relação entre as interpretações individualistas/naturalistas sobre a pobreza e o desvio que iremos incidir, para refletirmos sobre as tensões entre a política social dirigida à pobreza e a necessidade de distinguir os pobres que merecem ser mais ajudados que os outros.

5. Dar sentido(s) à investigação: o corpus de análise Ao analisarmos a imprensa escrita, focamo-nos em três diários nacionais Jornal de Notícias, Correio da Manhã e Público entre os anos 2007 e 2011, inclusive. O critério para a seleção dos jornais foi a sua tiragem a nível nacional, ou seja, terem uma cobertura nacional variada, totalizando uma tiragem total de 278 mil exemplares por dia, sendo que cada um abrange áreas geográficas diferenciadas, tem estratégias jornalísticas diferentes e capta vários segmentos de mercado com públicos-alvo distintos. Para analisarmos as representações em torno do RSI e dos seus beneficiários, efetuamos uma exaustiva recolha de notícias e de artigos de opinião de dois jornais classificados como jornais de referência Público e Jornal de Notícias e um jornal popular que é o Correio da Manhã (Mesquita e Rebelo, 1994: 15).

Através desta recolha sistemática de informação obtivemos um corpusde análise constituído por 918 notícias, distribuídas de forma díspar pelo Jornal de Notícias (398 artigos), pelo jornal Público (353 artigos) e pelo jornal Correio da Manhã (167 artigos), como indicado no Quadro_1 ( Ferreira, 2012).

No tratamento do corpus, não testemunhamos uma disparidade entre as notícias dos jornais, como referente aos anos analisados. Assim, foram publicados um total de 63 artigos noticiosos referentes ao RSI em 2007, 130 artigos em 2008, 222 artigos em 2009, 285 artigos em 2010 e, por último, 218 em 2011.

Com base no que está estipulado por Sierra Bravo (1995) e partindo de um universo de 918, constituímos uma amostra de 280 notícias, considerando uma margem de confiança de 95,5% e uma margem de erro, aproximadamente, de 5% (Arkin e Colton, inBravo, 1995).

Entretanto, e tendo em vista um afinamento analítico do corpusde análise, procedemos a uma amostragem estratificada por cotas, tendo em linha de conta o ano de publicação da notícia e o órgão de comunicação onde esta emerge. Ao cruzarmos o peso noticioso em torno do RSI dos anos 2007 e 2011 com o número de notícias por jornal, chegamos a um peso amostral em percentagem (ver Quadro_3) ( Ferreira, 2012), que nos permite ter em conta uma amostra global tanto dos artigos por ano, como dos artigos por jornal (ver Quadro_4) ( Ferreira, 2012).

6. O Blitzkreigdas palavras: tendências, representações e interlocutores A linguagem como discurso é ação; está inserida numa dinâmica de formação de relações, de práticas inscritas e interiorizadas na vida social que são constituídas por relações de poder (Foucault, 1973).

Durante os anos em análise, a palavra RSI tem uma presença assinalável, surgindo 877 vezes, distribuída de forma heterogénea entre os anos e os jornais (ver Gráfico_1), demonstrando que: de tempos a tempos a sociedade parece estar sujeita a períodos de pânico moral. Uma condição, um episódio, uma pessoa ou um grupo de pessoas surge para se tornar ameaça para valores e interesses sociais; a sua natureza é apresentada de forma estilizada e estereotipada pelos média, as barreiras morais são geridas pelos editores, prelados, políticos e outras pessoas corretas (ou seja, pessoas de bem') (Cohen, 2002: 9). Sabemos que o surgimento da palavra em si e a frequência da sua utilização não são, em si, suficientes para afirmar a existência de um pânico moral. Contudo, ao longo dos anos em estudo verificamos que a sua frequência tem um caráter ascendente, chegando ao seu pico em 2009 (Gráfico_1) ( Ferreira, 2012), ano em que o RSI é sistematicamente conotado num quadro referencial negativo de delinquência, drogas, bairros sociais, fraude, entre outros, enquanto a sua ligação ao conceito de pobreza é reduzida drasticamente (Gráfico_2) ( Ferreira, 2012).

Em 2007 existe uma variedade de registos que inauguram uma caminhada mediática para a estigmatização da medida e dos seus beneficiários, iniciando o prelúdio da etiquetagem. Apesar da incidência do RSI na imprensa escrita ser residual, quando ela surge está inserida em contexto de fraude, associada a uma linguagem economicista em que se destacam os encargos financeiros que o Estado tem com o RSI ( Ferreira, 2012). A própria caracterização dos beneficiários do RSI oscila entre cenários de alcoolismo, doença mental, e toxicodependência, e surge, pela primeira vez, o conceito de oportunismo por parte dos beneficiários que se apropriam do RSI, apesar de não estar prevista a atribuição vitalícia do mesmo. Em 2007, a argumentação que conduz à estigmatização do RSI começa a estruturar-se.

Ao revermos o ano de 2008, as referências ao RSI totalizam 196 e as de pobreza somam 71, demonstrando a forte correlação entre o RSI e a pobreza (Gráfico_2) ( Ferreira, 2012). Não obstante esta forte correlação, na construção da narrativa discursiva verificamos uma rutura qualitativa com o conceito de pobreza, quando a imprensa escrita quebra o silênciodenunciando que existem beneficiários do RSI que vivem em casas muito apetrechadas”2 e que famílias que se gabam”.3 Assim, a referência à pobreza é substituída pela perceção de uma abundância material, acompanhada por uma pobreza de espírito, um laxismo, uma propensão para o vício e a subsidiodependência, criando um clima propício para a propagação do ódio social. Na caracterização dos beneficiários, existe uma continuidade com o ano de 2007, ao serem associados ciganos, sem-abrigos, toxicodependentes e armas. Acresce que as referências ao aumento do número de beneficiários e da taxa de irregularidade”4 acabam por transformar todo este universo numa ameaça generalizada. É neste ano que se destacam os empresários morais, Paulo Portas e Pedro Mota Soares, que optam por centrar o seu discurso na ética do trabalho, avançando com propostas legislativas baseadas no princípio da reciprocidade, introduzindo uma maior fiscalização para combater a fraude. É em 2008 que se começam a desenhar os primeiros contornos discursivos para a transferência do welfare para workfare, em que este último ganha força. Importa referir que estes discursos não correspondem a tentativas para verificar acontecimentos em que, por acaso, foram cometidos alguns erros. Nas sociedades modernas, resultam, antes, de elementos de fantasia, seleção e criação deliberada de notícias (Cohen, 2002: 44). No ano de 2009, verificamos um disparar das referências ao RSI, totalizando um número de 187 incidências, enquanto a pobreza equivale a 26 alusões, verificando-se, pois, um crescente distanciamento do RSI em relação à pobreza.

Esta ascensão do RSI na imprensa escrita deve-se, em grande parte, à campanha legislativa para a Assembleia da República de 2009, em que o CDS-PP integra o RSI como um dos temas de campanha5. O número de interlocutores ascende aos 31.

Com o RSI no centro do debate eleitoral, as representações como subsídio de preguiça e incentivo público à preguiça 6 cristalizam-se no discurso destinado à produção de opinião pública. Simultaneamente, a centralidade da fraude em torno do RSI ascende a novos níveis, com o bombardeamento noticioso acerca de Fraudes de 118 milhões no RSI e de prejuízo com burlas”7, que assume os traços de um verdadeiro massacre simbólico e estigmatizante. A temática da fraude conjuga-se com a caracterização dos beneficiários como ladrões violentos que conciliam os enormes rendimentos do crime com uma vida recheada de subsídios à custa do Estado 8 , mergulhados em cenários de alcoolismo e prostituição. Endurecendo a sua posição de empresário moral, Paulo Portas acentua esta associação ao referir-se aos abusos no Rendimento Social de Inserção e (à) criminalidade”9 . Reforçando a temática moral da ética do trabalho, números são avançados a respeito dos gastos que o RSI envolve, os quais ascendem aos 400 milhões, os quais legitimam os avisos de Pedro Mota Soares acerca de um descontrolo na atribuição”10 do RSI. Com o bombardeamento simbólico do RSI como um subsídio para instigar o desvio, as propostas de workfaree de ativaçãoestruturam- se com legitimidade.

No ano seguinte, em 2010, registamos 249 incidências do RSI nos três jornais, e 55 incidências de pobreza, dando continuidade ao distanciamento do RSI em relação ao problema da pobreza, e identificamos 30 interlocutores. Sem negar esta continuidade, observa-se, contudo, alguma mudança na caracterização dos beneficiários: deixam de ser classificados por referência à toxicodependência e à prostituição, passando a prevalecer o tema da dependência, com o risco de alimentar ociosos, vagabundos, chefes de gang e de pagar à escória da sociedade”11. A violência da etiquetagem intensifica-se, quando o Correio da Manhã, em tom de denúncia, diz que presos têm rendimento mínimo”12 e que o Estado rendimento mínimo a reclusos”13. A este processo junta-se a caracterização dos beneficiários como parasitas, que vive(m) à custa do sistema 14 , em que alguns têm bens de luxo incompatíveis com os rendimentos”.15 Em 2010 reforça-se a etiquetagem dos beneficiários do RSI como habitantes dos bairros sociais, com todos os problemas que lhes estão associados, e a todos os seus focos problemáticos, quando numa notícia do Correio da Manhã se destaca que 90% dos moradores da Quinta da Fonte recebe subsídio”16, associando a medida diretamente ao tráfico de drogas e defendendo que esta se transforma numa indústria do abuso”17. No trilho dos cenários de abuso e da criminalidade, surge a ética do trabalho e a transferência do welfarepara o workfare, uma vez que se propõe que os beneficiários façam algum trabalho socialmente necessário, considerando, por exemplo, que deviam limpar matas”18. A confirmação da substituição de uma rede social por uma rede penal, transformando o Estado-Providência em Estado Penitenciário, dá-se com a confirmação do recrutamento de 50 inspetores”19, por parte da Segurança Social, para fiscalizarem o RSI.

Em 2011 são identificadas 56 incidências que apresentam 24 interlocutores. Em 2011 o RSI continua estritamente associado ao desvio (ao crime): relata-se que um beneficiário usa seringa com HIV para assaltar”20. Esta ligação é confirmada quando numa notícia se refere que a PSP deteve um casal que, a receber do Estado o Rendimento Social de Inserção, chefiava uma rede de tráfico”21 . Adicionalmente, o tema da fraude perpetua-se em 2011: é anunciado que foram atribuídos 532 milhões em subsídios ilegais e que 87% dos que recebem dinheiro em 2009 sem direito a ele não o devolveram”22.

A conjugação dos cenários de fraude, assaltos, toxicodependência e abusos canalizados pela imprensa escrita, nomeadamente pelo Correio da Manhã, estrutura a conceção de que a medida corrompeu-se e torna as pessoas passivas. A difusão deste senso comum serve para justificar as medidas que objetivamente traduzem a retração do Estado-Providência, designadamente por via da delegação de competências para implementar a medida às Instituições Particulares de Solidariedade Social, apesar das declarações do Ministro da Segurança Social que garante que tal não significa mais Estado, significa, sim, mais instituições de solidariedade social”23. A disciplinação da medida avança, quando é afirmado que o RSI deve ser cortado a quem recusar trabalho”24 e que é preciso mais justiça social na atribuição de apoios”25. Ao longo dos 5 anos analisados, o RSI tem sido estigmatizado e descredibilizado, tanto no que concerne à medida como aos beneficiários.

Ao longo dos anos, verificamos uma construção mediática estigmatizante em torno do RSI, discurso este que contribui para a naturalização das grandes transformações que conduzem ao endurecimento do Estado Social, patente na redefinição de uma medida de inserção social em medida de controlo social. A criação de climas de desconfiança e de medo torna-se instrumental para a prossecução dos interesses dos que procuram uma intensificação do controlo social e de uma legitimação da desigual distribuição do poder e do bem-estar (Innerarity, 2006: 176; Ferreira, 2011:56). O medo é a base de legitimação de cenários catastróficos, legitimando as alterações legislativas em torno de RSI, que bem traduzem a transformação do Estado Social em Estado Brutal (Ferreira, 2011: 56; Wacquant, 2003). Esta reação visa impor disciplina no setor mais carenciado da estrutura de classe que, com o acentuar da crise, se encontra cada vez mais polarizada. Esta viragem punitiva e fiscalizadora é uma resposta à insegurança social e não à insegurança criminal, induzida pela fragmentação das relações laborais, a precarização da vida e o desmantelamento do Estado Social.

7. Tolerância Zero: punir os pobres As representações em torno do RSI e dos seus beneficiários têm sido fabricadas com contornos negativos, apresentando-os em cenários de miséria e delinquência, circunscritos a atividades marginais em que se sublinham os abusos e as fraudes. A construção das representações em torno do RSI pelos empresários morais que têm um papel determinante na imposição de normas com coordenadas ideológicas é amplificada, fazendo da opinião de poucos o senso comum de muitos, o que razão a Bourdieu quando refere que a dominação não é o efeito simples e direto da ação exercida por um conjunto de agentes (a classe dominante') investidos de poder de coação, mas o efeito indireto de um conjunto complexo de ações que se engendram nas imposições cruzadas que cada um dos dominantes, assim dominado pela estrutura do campo através do qual a dominação se exerce, sofre da parte de todos os outros (Bourdieu, 1997: 34).

Estas representações, tal como o discurso no qual estas se estruturam, estão armadilhadas pelo senso comum. Na sociedade atual propagou-se a noção meritocrata, segundo a qual aqueles que possuem riqueza a merecem porque trabalharam para tal, relegando assim a pobreza à condição individual, cuja saída depende da vontade exclusiva do sujeito. Nesta perceção incidem algumas pré-noções e generalizações que caracterizam os beneficiários do RSI como preguiçosos e portadores de uma dependência patológica que resulta em desamparo moral, ameaçando todos os valores, a começar pela ética do trabalho.

Com a intensificação e a proliferação de discursos da dependência patológica dos beneficiários, constituindo um estereótipo, a reação imediata por parte do poder político é de cortar nos serviços sociais. Nesse contexto, ganha acuidade a hipótese de Bourdieu, de acordo com a qual os símbolos são os instrumentos por excelência da integração social': enquanto instrumentos de conhecimento e de comunicação (...), eles tornam possível o consensus acerca do sentido do mundo social que contribui fundamentalmente para a reprodução da ordem social: a integração lógica' é a condição da integração moral (Bourdieu, 1989: 10).

Esta estratégia de incriminação da pobreza e de brutalização dos pobres tem por objetivo impedir a criação de um sentimento de solidariedade e o desenvolvimento de um sentimento de injustiça que seja capaz de reagir ao sistema (Bauman, 2000). O senso comum é o menor denominador daquilo em que um grupo social ou a maioria da sociedade, coletivamente, acreditam, rompendo com a estruturação de classes e com as suas solidariedades intracategoriais que são o outro lado do conflito e da luta contra a desigualdade. O senso comum concilia a consciência com a injustiça e banaliza as desigualdades sociais, afastando a possibilidade de transformação (Santos, 1989: 37). Além de possuir a capacidade de vulgarizar injustiças, o senso comum reconfigura a relação de classes ao traduzir o que seria, expectavelmente, uma luta interclassista, numa luta intraclassista, endogeneizando o conflito e colocando os pobres contra os ainda mais pobres.

A imprensa atua como amplificador e instigador de pânicos morais (Cohen, 2002). Ao longo dos anos analisados, as representações do RSI têm oscilado e ganharam dimensões heterogéneas, estando associadas a diferentes conceitos chave em diferentes anos. Em 2007 a incidência do RSI na imprensa é relativamente baixa e a sua associação com a pobreza é visível, indicando que tanto a imprensa como os leitores associam esta prestação social ao alívio de situações; esta associação estende-se a 2008 apesar do aumento no número de incidências do RSI na imprensa. Contudo, em 2009 dá-se uma reviravolta: o RSI começa a ser associado e subsequentemente etiquetado a situações de fraude, de assaltos e de injustiça.

O deslocar do processo de etiquetagem da pobreza para cenários de dependência patológica e de desamparo moral é instigado pelos empresários morais, provenientes da direita político-partidária, causando uma rutura qualitativa nas representações dominantes. Em 2009 o RSI deixa de ser associado à pobreza, ao verificarmos uma quebra no número de incidências do conceito pobreza, transferindo o RSI para o campo da malandrice. Esta alteração quantitativa e qualitativa da associação do RSI deve-se à campanha legislativa para a Assembleia da República, que decorreu em 2009, onde o RSI se torna um foco noticioso sujeito ao escrutínio político. Com o surgimento dos primeiros sinais do impacto da crise financeira em 2009 e em 2010, dão-se os primeiros passos para a domesticação do RSI que, assente nas representações negativas dos beneficiários, estrutura a legitimação da passagem das políticas de welfarepara workfare. Em 2011, com a intervenção da Troikaem Portugal, a intensificação da crise da dívida soberana, aliada à perceção de que o RSI é uma política social que financia ladrões e preguiçosos, a crise atua como catalisador de grandes transformações no Estado-Providência.

A proliferação de pânicos morais é capaz, pela sua dimensão e pela sua virulência, de legitimar a inflexão das políticas sociais e a retração da intervenção estatal, redefinindo a fisionomia do Estado Social e das sociedades (Wacquant, 2000). A associação do RSI a cenários e a comportamentos caracterizados pelo desvio, bem como o enfoque na ética do trabalho como elemento estruturante da vida social criam o contexto favorável à descredibilização e à descapitalização não desta medida particular, mas das políticas sociais em geral.

Desta maneira, fica facilitada uma transição qualitativa da rede de segurança do Estado-Providência para a montagem de uma rede disciplinar do Estado- Penitenciário, em que os serviços sociais se transformam em instrumentos de vigilância, controlo e disciplina das classes perigosas, uma vez que estas provocam sentimentos de insegurança que legitimam o reforço do Estado Penal.

Apesar da fabricação das representações sociais parecer algo irrelevante, é o elemento justificativo para os cortes na ação social, encarada como excessivamente generosa para pessoas que fogem à ética do trabalho e não querem trabalhar. A escalada deste tipo de etiquetagem intensifica o processo de desfiliação, empurrando os beneficiários do RSI, altamente estigmatizados, para as margens da sociedade, instigando a profecia de desvio e de destruição da moralidade dominante, numa auto profecia que, em certos casos, se confirma.

As ideias não vivem sem organização e a disputa pela hegemonia é uma disputa pela direção política das ideias26. A estratégia para efetuar uma profunda reestruturação e realinhamento do Estado-Providência consiste em descredibilizar o RSI tanto ao nível da sua implementação ao demonstrar que os beneficiários do RSI, os maus pobres, não merecem o apoio do Estado , como ao nível económico, ao apresentar a medida como um gasto excessivo. A estratégia consiste em descredibilizar e punir, e o discurso em torno do RSI torna-se fulcral e determinante, abrindo caminho para um declínio do estado social e para a ascensão do estado brutal. A gestão do medo e da tolerância zeroem torno do RSI torna-se uma questão da maior importância porque é uma questão de poder e legitimação, que ganha uma crescente expressão no espaço político para transformar o Estado-Providência em Estado Penitenciário.


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