O ensino público no olhar das elites escolares: representações sociais dos
agentes educativos de dois colégios privados
Notas introdutórias e breve caracterização metodológica
O tema da escola pública versusescola privada permanece atual, controverso e
merecedor de atenção e debate sociológico. Neste artigo propomo-nos dar a
conhecer o modo como alunos, pais, professores e diretores de duas prestigiadas
escolas privadas percecionam a escola pública. Ao contrapô-la às suas próprias
vivências escolares, eles permitem-nos também conhecer o seu olhar sobre os
respetivos colégios privados.
Os dados que sustentam esta análise resultam de uma pesquisa de doutoramento
sobre o sucesso educativo realizada em dois reputados colégios de Lisboa – um
laico e outro religioso – há mais de cinquenta anos ligados à educação das
classes dominantes do país. Para este estudo, acionámos um conjunto de técnicas
de investigação sociológica: entrevistas aos principais representantes dos
órgãos e associações colegiais; 18 entrevistas a pais e ex-alunos; 5 grupos de
discussão compostos quer por estudantes, quer por professores; inquérito por
questionário aplicado a uma amostra representativa de 475 jovens entre o 9.º e
o 12.º ano; observação direta em diferentes espaços-tempos dos colégios
(quotidianos e extra-quotidianos, como as cerimónias e outros eventos
colegiais).
Os colégios onde desenvolvemos o trabalho de campo, pese embora as suas
especificidades – nomeadamente no que diz respeito à formação religiosa –,
partilham a meta da “formação integral do homem”, preconizando nos respetivos
Projetos Educativos uma educação que integra, a par da dimensão académica, o
pilar social, cívico e cultural. Esta formação de banda larga dá resposta aos
desígnios socializadores das classes dominantes que se consideram destinadas a
grandes missões (Pinçon e Pinçon-Charlot, 2007) e que constituem o público dos
colégios estudados, como os dados do inquérito comprovam. Com efeito, eles são
frequentados por jovens provenientes de famílias com elevados capitais
económicos e culturais, cujos progenitores são, na sua maioria, profissionais
nas áreas da Engenharia, da Medicina e da Economia e Gestão de Empresas. Os
lugares de classe de origem dos alunos, identificados através de uma
combinatória entre a dimensão profissional e a cultural e tendo por base a
tipologia proposta por Costa, Machado e Almeida (1990), distribuem- se, na
quase totalidade, pela Burguesia (52,7%), repartida entre a Burguesia Dirigente
e Profissional (BDP) – 31,9% – e a Burguesia Empresarial e Proprietária (BEP) –
20,8% – e pela Pequena Burguesia Intelectual e Científica (PBIC) – 41,4%. A
forte capitalização cultural dos pais é visível no facto de 38,1% das mães ter
completado uma licenciatura, 23,8% um mestrado, 12,1% um doutoramento e 9,8% um
pós- doutoramento, percentagens que, entre os pais, atingem, respetivamente,
33,2%, 23,1%, 17,9% e 10,6%.
1. Olhares desencantados sobre a escola pública
Depois de caracterizado o objeto da nossa investigação, propomo-nos analisar as
representações da escola pública partilhadas pelos agentes educativos destas
duas escolas privadas, tomando como material de reflexão os enunciados
discursivos que, de forma mais ou menos espontânea – e tendo sempre como ponto
de referência os respetivos colégios –, nos foram desvelando a sua visão do
sistema público de ensino.
A questão do público e do privado em educação tem estado no centro de um aceso
debate cujos contornos ideológicos em muito têm contribuído para a polarização
de posições a favor ou contra a escola pública (Viseu, 2014). Um dos aspetos
que sobressai da análise das entrevistas prende-se, justamente, com o facto de
os entrevistados, antes de emitirem qualquer juízo de valor sobre o ensino
público, fazerem questão de sublinhar que ele não é uma realidade homogénea,
como se pretendessem demarcar-se da visão maniqueísta da escola pública que
encontra algum eco no seio dos grupos mais “militantes” na defesa da escola
privada e da liberdade de escolha. No olhar dos entrevistados, a oferta pública
de educação carateriza-se por uma clara polarização, também documentada por Van
Zanten junto dos pais pertencentes às frações superioras das classes médias, “
(…) que não estabelecem uma gradação, mas uma dicotomia (…)” (2009: 182) entre
os estabelecimentos do setor público. Assim, haverá escolas públicas boas e
escolas públicas más, como nos dizem os pais, entre os quais não falta quem se
deixe embalar pela “doce memória do passado” (Almeida e Vieira, 2006: 76) e
reproduza a “litania em honra da escola do passado” (2006: 73), recordando com
saudade o tempo em que “as escolas públicas eram todas boas escolas” (pai,
colégio religioso, BDP, 47 anos). A dicotomização qualitativa entre a oferta do
setor público prende-se com o “perfil” do público que as frequenta, explicará
um dos pais, confirmando o mecanismo de associação entre a qualidade da escola
e o “efeito público” de que fala Van Zanten (2009): “Há escolas públicas que
são excelentes (…) há outras que aquilo pronto… é as pessoas, mais uma vez é as
pessoas que fazem a diferença. As pessoas, neste caso, que é os alunos e os
pais dos alunos” (PBIC, colégio religioso, 43 anos).
Entre os alunos há também quem admita a existência de escolas públicas “que
funcionam de forma bastante eficiente” (aluno, colégio religioso, PBIC, 16
anos). A perceção é corroborada pela diretora do colégio laico que reconhece
haver “(…) excelentes escolas públicas”, observando que a qualidade do
funcionamento destes estabelecimentos “também depende da liderança”, cuja
importância para a eficácia e melhoria da escola é documentada por vários
investigadores (Bolívar, 2003; Hargreaves e Fink, 2007). O problema da opção
pela escola pública está no facto de o acesso a um bom estabelecimento de
ensino estar dependente do “fator sorte”, como lembrará a mesma diretora, numa
alusão às restrições legislativas que impedem os pais de escolher a escola
pública considerada de melhor qualidade, permitindo-lhes apenas – e só desde
2013 (Despacho n.º 5048-B/2013) – a hierarquização, condicionada a vagas, de
cinco estabelecimentos preferenciais (Batista, 2015).
No entanto, à medida que as entrevistas vão decorrendo e os discursos vão
fluindo vai-se tornando percetível que se há escolas públicas boas e escolas
públicas más, das primeiras parece “não rezar a história”, já que as
referências dos entrevistados ao ensino público envolvem, na sua quase
totalidade, juízos de valor negativo dos quais resulta uma imagem global de
tonalidade desvalorizante, como detalharemos nos capítulos seguintes.
A perceção mais transversal à generalidade dos depoimentos sobre a escola do
Estado prende-se com a ausência de condições de escolarização que permitam
assegurar aos alunos um ensino de qualidade – uma prioridade durante muito
tempo confinada ao reduto das elites, que sempre a procuraram como estratégia
de distinção em seletivos colégios privados (Vieira, 2003; Pinçon e Pinçon-
Charlot, 2007; Mension-Rigau, 2007; Quaresma, 2014) e que, a partir dos anos
1980, vai entrar na ordem do dia da agenda educativa. Com efeito, a partir
dessa década, o tema da qualidade do ensino tornou-se incontornável nos
discursos sobre a educação, dos mais científicos aos mais profanos. A
permeabilização do campo escolar à retórica de matriz neoliberal (Ball, 2002) e
à “nova cultura de performatividade competitiva” (2002: 8) que a carateriza
veio “(…) inscrever no quadro das preocupações educativas os princípios da
qualidade, da excelência e do mérito” (Torres, 2014: 27). O desenvolvimento da
globalização económica e do pós- fordismo veio acentuar “a procura por parte
dos meios económicos de uma maior eficácia e eficiência dos sistemas públicos
de educação, mas também uma maior atenção às necessidades em competências da
economia” (Maroy, 2007: 88) que vão dar o mote para a implementação de
políticas de accountabilityescolar. As pressões no sentido de um ensino de
maior qualidade vão partir também de uma “nova classe média nova” (Cortesão et
al., 2007: 16) que perde a hegemonia no sistema educativo e se vê confrontada,
por efeito conjugado da massificação escolar e da “instabilidade e
vulnerabilidade da oferta de emprego qualificado” (Nogueira, 2010: 218), com a
ameaça da mobilidade social descendente dos filhos. É, pois, na qualidade do
ensino e nas melhores escolas que esta classe vai encontrar a estratégia de
preservação social (Reary, Crozier e James, 2011).
A omnipresença da escola no quotidiano das famílias e a sua importância para as
classes médias em processo de forte expansão (Nogueira, 2010) vão trazer o tema
da educação e da sua qualidade para o debate público, onde vai ganhar força a
“velha ideia da decadência da escola pública” (Almeida e Vieira, 2006: 72) já
refutada em França por Establet e Baudelot (1989) e denunciada nos EUA como
“uma crise manufacturada” (Berliner e Biddle, 1995). Nas páginas dos jornais
nacionais de referência, “reflexivos profissionais” (Melo, 2009: 426) e
“reflexivos militantes” (2009: 426) traçam um retrato sombrio do “estado da
educação” e da escola pública, alegadamente contaminada pela permissividade dos
professores (Bonifácio, 2004), pelo laxismo da avaliação e quebra das
expectativas nos alunos (Reis, 2001), por uma cultura avessa ao “(…) trabalho,
esforço, persistência e concentração” (Crato, 2006: 118) e por um nivelamento
dos alunos pelo patamar mais baixo do saber e da exigência (Mónica, 2005). A
publicação dos rankingse a presença dos estabelecimentos de ensino privado nos
primeiros lugares da classificação vem ajudar a sedimentar essa imagem de crise
da escola pública e a alimentar a polarização qualitativa público/privado, que
os discursos dos entrevistados documentam. De facto, vai-se tornando também
visível pelas intervenções da generalidade dos entrevistados que a imagem de
pendor desvalorizante da escola pública tem como contraponto a representação
valorizante dos respetivos colégios. Ora, nem o ensino privado constitui uma
realidade homogénea, como a literatura comprova (Van Zanten, 2009; Ben-Ayed,
2000; Estêvão, 2001) e como alguns dos próprios entrevistados reconhecem, nem
estes dois colégios, até pelo perfil sócio- cultural do seu público e pela sua
longa tradição no campo do ensino podem ser tomados como representativos da
qualidade do ensino privado, como aliás também é reconhecido por alguns
entrevistados. Acresce que a identificação do ensino privado a características
favoráveis ao sucesso escolar e a “(…) associação unívoca entre privatização e
melhores resultados de aprendizagem” (Tedesco, 2008: 133) está longe de reunir
consensualidade entre a literatura científica, dividida entre os estudos que
identificam maior eficácia ao ensino privado (Coleman et al., 1982; Lee et
al.1998) e os que a relativizam (Elder e Jepsen, 2011; Dronkers e Avram, 2010).
2. Entre o deficitde enquadramento organizacional e ausência de personalidade
institucional da escola pública
Entre os entrevistados que mostram menos constrangimentos a dar a sua opinião
sobre a escola pública estão os alunos. Isso não obstante a sua perceção deste
setor de ensino não se alicerçar, como nos dizem, num conhecimento por dentroda
realidade, uma vez que uma expressiva percentagem deles (69,5%) tem trajetórias
escolares de fidelidade (Langouet e Léger, 2000) aos respetivos colégios,
grande parte das quais (48,2%) iniciadas logo no ensino pré-primário. Ela é
construída na base dos relatos que lhes chegam de alunos que as frequentam e
com quem eles trocam impressões sobre as respetivas experiências escolares
durante as atividades extra-curriculares ou as explicações fora dos colégios.
Dos relatos que vão ouvindo, os alunos entrevistados retêm a imagem de uma
escola com deficitde organização, em convergência com a perceção recolhida por
Van Zanten (2009). A título de exemplo, os alunos evocam os inícios conturbados
do ano letivo, com alunos ainda sem professores “em outubro, em novembro e em
dezembro” (aluna, colégio religioso, BEP, 17 anos), as greves e as situações
reiteradas de absentismo docente – classificado de “hemorrágico” pelo diretor
do colégio religioso – que eles comparam com a boa organização do ano escolar,
a assiduidade dos professores e a celeridade da resolução destes problemas nos
respetivos colégios.
Dos professores que lecionam no ensino público, têm uma imagem de pouca
dedicação e de pouco empenho no apoio às dificuldades de aprendizagem dos
alunos, que põem em contraste com a entrega e disponibilidade dos seus próprios
professores e com o acompanhamento individualizado e de proximidade que eles
lhes dedicam. Dependentes da satisfação dos seus “clientes” e da excelência das
performances académicas para sobreviver no mercado educativo, os colégios
privados não têm lugar para professores com a “alma de funcionário” (Rouillard,
2013: 499) que caraterizará os colegas do público. Como nos dirá o Presidente
da Associação de Estudantes do colégio laico: “(…) eu acho que há – isto a
nível pessoal, eu nunca frequentei uma escola pública, estou a falar daquilo
que ouço, não é? – há uma sensação de desorganização, de que os alunos têm que
estudar por si, têm que trabalhar por si e acho que há uma falta de exigência
muito grande. Aqui não, aqui os alunos são acompanhados pelos professores: têm
uma dúvida, perguntam”.
A ideia de um menor enquadramento organizacional do ensino público face ao
privado é, aliás, partilhada por pais e professores. Uma das mães descreve a
realidade da escola pública como um “caos, em termos organizacionais” (colégio
laico, PBIC, 32 anos). Remetendo para a maior complexidade da estrutura
organizacional e administrativa das escolas públicas (Estêvão, 2001) e numa
provável alusão ao modelo de gestão colegial herdado da Revolução de Abril
(Afonso, 2010), essa mãe fala de uma dispersão do poder e da autoridade que não
existirá no ensino privado onde, como dirá o diretor do colégio religioso, há
“um dono com perenidade” que é, nas palavras da diretora do colégio laico, “o
rosto da escola” e dá a cara pelo bom funcionamento da organização. Mostrando-
se consciente de que o contexto organizacional enforma a relação família-escola
(Silva, 2003), a mesma mãe entende que a diluição do poder e de autoridade que
existe na escola pública dificultará o envolvimento dos pais na vida escolar
dos filhos, obstaculizando o eficaz exercício da parentocracia – uma dimensão
particularmente valorizada pelas famílias destes dois colégios, como o nosso
estudo documenta e, de um modo geral, pelas famílias que escolhem o ensino
privado, mais atentas à escolaridade dos filhos até pelo esforço financeiro
envolvido (Langouet e Leger, 2000). Ao contrário do que acontecerá nas escolas
públicas, nos colégios privados “(…) há um fio condutor, há uma hierarquia que
nos ajuda a nós, pais, a estruturarmo-nos. E, portanto, se eu percebo que há
algo que não está a funcionar eu sei qual é a hierarquia, eu sei qual é o fio
condutor e, portanto, não sinto, nem nunca senti, em nenhum momento, que as
coisas estavam desorganizadas, não é?, que as coisas estavam a falhar” (mãe,
colégio laico, PBIC, 47 anos). Com um tipo de autoridade menos “pessoalizado e
direto” (Estêvão, 1998: 305) do que as congéneres privadas, as escolas públicas
tão pouco estarão em condições de aplacar os “medos securitários” dos pais (Van
Zanten, 2009: 46), oferecendo-lhes o “espaço escolar protegido” (Ben-Ayed,
2000: 69) que encontram nos colégios privados, onde durante os intervalos os
filhos “não saem dos portões da escola” (mãe, colégio laico, PBIC, 32 anos) e
onde a sua assiduidade está sob supervisão permanente. Como dirá a diretora do
colégio laico, “se um aluno – mesmo dos mais velhos – falta a uma aula, no
momento seguinte o pai está a saber que ele está a faltar”.
Por outro lado, como dirão alguns entrevistados, faltará à escola pública a
“personalidade” vincada (Draelants, 2006) que carateriza as escolas privadas,
fazendo com que cada uma delas se distinga das outras por algo que lhe é
específico: “Na escola pública é tudo muito igual, tudo muito normativizado. A
impressão digital da escola pública é mais diluída”, dirá um dos professores do
colégio religioso. A oferta diversificada de “produtos” disponibilizada pelo
mercado educativo privado vai permitir aos pais “consumidores” de escola que
querem o melhor para os filhos a escolha do estabelecimento de ensino cujo
Projeto Educativo esteja mais adaptado ao perfil do seu educando ou vá mais de
encontro ao ideal de educação da família, nomeadamente no plano ideológico.
Trazendo para o debate a questão da “neutralidade da escola pública” (Cotovio,
2004: 362) versus“educação para os valores” (2004: 351) da escola privada, o
presidente da Associação de Alunos do colégio religioso dirá:
“(…) olhando para as escolas públicas, no seu todo, não sei se têm
uma filosofia. Se calhar, têm uma filosofia estatal, mas não uma
coisa tão definida, tão… Porque é que existe escola pública? Porque
tem que existir, porque tem que responder às necessidades coletivas
de – isto é economia – tem que responder às necessidades coletivas,
porque há uma necessidade de os alunos serem educados. E aqui o
objetivo é outro: há necessidade de os alunos serem educados de uma
forma… Aqui, eu diria que os privados têm uma intenção clara, de
educarem ‘desta forma'. Os públicos têm a intenção de educar, porque
tem que ser, diria eu.”
3. A escola pública e a ausência de cultura de rigor e de excelência
Em rota de colisão com as conclusões dos estudos sobre a excelência e as
práticas de distinção escolar nas escolas públicas (Palhares, 2014; Torres,
2014), os entrevistados falam da ausência de cultura de rigor, de trabalho e de
exigência que caraterizará estes estabelecimentos de ensino onde, pelo efeito
das baixas expectativas de alunos e de pais, não haverá professores que “(…)
querem puxar pelos alunos (…)” (aluna, colégio religioso, BEP, 17 anos), como
acontece nos respetivos colégios. Para exemplificar o alegado facilitismo que
reinará nas escolas públicas, os alunos evocam o baixo nível de dificuldade e a
extensão dos testes de avaliação – a que eles dizem ter acesso através dos
colegas de explicações – e comparam-nos com o grau de dificuldade daqueles a
que eles são sujeitos nos respetivos colégios, sobretudo nas disciplinas
nucleares para o acesso aos cursos superiores mais competitivos: “Eu vejo, às
vezes - que tenho amigos meus nas escolas públicas - e às vezes vejo os testes
e a comparar com os meus de Química ou de Biologia, que são gigantescos…!”
(aluna, colégio laico, PBIC, 17 anos). Ainda a propósito dos testes, falam
também da “forma de eles [os professores] os corrigirem” (aluna, colégio
religioso, BDP, 15 anos), numa alusão ao que interpretam como uma generalizada
condescendência avaliativa por parte do corpo docente dos estabelecimentos de
ensino públicos.
A ideia de laxismo é reforçada pelo argumento da inflação das classificações de
que beneficiarão os alunos das escolas públicas e que eles consideram ser
também uma imagem de marca deste setor de ensino. Dando voz aos “sentimentos de
injustiça escolar” (Resende e Gouveia, 2013: 98) dos colegas sobre a
diversidade de critérios avaliativos, uma das entrevistadas fala-nos do caso de
um colega recém-chegado ao colégio, que “[na escola pública] tinha média de 19
e agora está com média de 14” (aluna, colégio religioso, PBIC, 17 anos). A
sociologia da avaliação escolar dá hoje conta de que a avaliação contém uma
parte irredutível de subjetividade (Merle, 2007). Como este investigador
lembra, a mesma prova pode ser avaliada de forma diferente por diferentes
professores que refletem nas suas avaliações constrangimentos de ordem interna
(dinâmica da turma), externa (tipo de escola elitista ou popular) ou pessoal
(características dos alunos e dos próprios professores). Alguns professores
elevarão os seus padrões de exigência e serão menos benevolentes nas
classificações, como acontecerá em contextos (de estabelecimento e de turma) de
melhor nível escolar (Duru- Bellat, 2002) e haverá outros que reduzirão os seus
níveis de exigência e nivelarão “por baixo” a avaliação, nomeadamente em
contextos de menor recetividade ao projeto escolar onde os professores serão
levados a ajustar os seus critérios de exigência e/ou a usar a classificação
como “instrumento de motivação” (Barrère, 2002: 153). A inflação das
classificações internas em certas escolas está documentada num estudo recente
(Neves, Pereira e Nata, 2012) onde são identificados casos de alunos com
idênticas classificações nos exames nacionais e que apresentam discrepâncias
que atingem os 4 valores nas classificações internas, de escola para escola.
Mas esse mesmo estudo não confirma a perceção dos alunos destes colégios de que
é no ensino público que prevalece a inflação das classificações. A conclusão é
a de que, pelo contrário, a prática inflacionista é mais frequente nas escolas
privadas do que nas públicas, sujeitas a uma menor pressão das lógicas
concorrenciais para atrair “clientes” do que aquelas.
Esta alegada discrepância de classificações entre o público e o privado é,
aliás, vivida de forma algo ambivalente pelos alunos destes dois colégios.
Socializados num caldo familiar e escolar galvanizador da excelência (Quaresma,
2014), eles internalizaram o valor da exigência e reconhecem nela e no crivo
apertado das avaliações docentes uma mais-valia para quem quer ter uma
preparação académica de topo e enfrentar os exames nacionais com o sucesso
necessário para aceder aos mais prestigiados cursos e às mais reputadas
universidades, como é o caso deles. A exigência, para os alunos capazes de “(…)
vencer as médias que querem, até é melhor, porque sentem-se mais bem
preparados”, diz-nos uma aluna (colégio religioso, BDP, 15 anos). É com uma
indisfarçável ponta de orgulho que uma outra colega nos diz que “Um 16 deste
colégio não é um 16 de outro…” (aluna, colégio religioso, PBIC, 17 anos).
Corresponderá antes a “um 18”, como logo se apressa a dizer um outro colega
(BDP, 17 anos).
No entanto, porque sabem que as classificações são determinantes para a média
de acesso ao ensino superior, não podem deixar de se sentir injustiçados
perante a hipótese de poderem vir a ser ultrapassados por colegas do público
que beneficiaram de menor rigor avaliativo por parte dos seus professores. Com
efeito, como o estudo de Neves, Pereira e Nata (2012) documenta, um mero valor
a mais na nota de candidatura de acesso aos cursos mais cobiçados traduz-se num
”salto” de 80 a 90% na lista de ordenação dos candidatos e de cerca de 35% no
caso dos cursos menos procurados. Não estão sozinhos nesta preocupação com as
médias de acesso à faculdade e com a inflação das classificações internas. Como
nos explica um dos pais, “o grau de exigência, aqui no colégio, é relativamente
elevado – e eu acho bem que seja assim – [e] eles tendem a ser penalizados,
este tipo de alunos, em termos de notas, comparativamente às escolas públicas”
(colégio religioso, BDP, 47 anos). Daí que alguns professores se queixem de
sofrer “uma grande pressão” (professora, colégio religioso, 40 anos) para subir
as suas classificações por parte de muitos pais, que os consideram “(…)
demasiadamente rigorosos tendo em conta aquilo que se passa no exterior”
(idem). A maior monitorização dos resultados escolares por parte das famílias
da classe média e alta (Santomé, 2000), para quem a escola é uma importante
“instância de legitimação individual e de definição dos destinos ocupacionais”
(Nogueira, 2006: 161), poderá explicar esta ansiedade com as classificações,
que nas boas escolas (e nas boas turmas) gera nos professores uma tensão
equivalente à provocada pela indisciplina nas escolas (e turmas) difíceis
(Barrère, 2002). Essa ansiedade vai agudizar-se, segundo os professores, no
Secundário. Essa é, afinal, a etapa do percurso escolar “em que [a média final
para o acesso ao Ensino Superior] já está a contar e, muitas vezes, os pais
acham que os seus filhos deveriam ter classificações superiores e há um
desacordo, claro” (professora, colégio religioso, 40 anos).
4. Desordem e indisciplina na escola pública
Para os entrevistados, a (in)disciplina é outra das características que fazem a
diferença entre a escola privada e a pública, percecionada como um espaço de
menor disciplinarização comportamental. O acesso da escola privada a mecanismos
para garantir – ou, pelo menos, para facilitar – o controlo disciplinar
necessário à eficácia do processo de ensino-aprendizagem (Amado, 2000)
potenciará o diferencial de qualidade entre os climas disciplinares dos dois
setores. A este propósito, Coleman et al.(1982) assinalam os menores
constrangimentos legais para aplicar medidas disciplinares, a maior
recetividade dos pais à sua aplicação e a expulsão dos alunos indisciplinados,
também identificada por Rouillard (2013).
Por outro lado, o diferencial de qualidade disciplinar será também potenciado
pela diferencialidade de inputsrecebidos por cada um dos setores de ensino.
Como assinalam diferentes investigações, as escolas privadas caraterizam-se, de
um modo geral, por um recrutamento socialmente mais elitista do que as da rede
pública (Langouet e Léger, 2000; Tedesco, 2008), abertas à diversidade social e
cultural pela democratização do ensino. Assim sendo, elas estão menos expostas
do que as públicas a fatores externos e internos à escola que potencializam
comportamentos disrutivos: população escolar proveniente de grupos sociais
vulnerabilizados por fatores que aumentam “(…) a capacidade dos jovens para
desenvolverem uma espécie de agressividade contra tudo o que se pareça com uma
instituição (…)” (Rochex, 2003:17), como é o caso do desemprego, da
precariedade ou da desestruturação familiar; ausência de sentido do trabalho
pedagógico para alunos – e até para professores – (Barroso, 2003);
distanciamento da cultura escolar, agravado pelo reforço da autoimagem
desvalorizante gerado por retenções sucessivas, pelas apreciações docentes
negativas ou pelo encaminhamento para más turmas ou para vias escolares
“estigmatizadas” (Van Zanten, 2000).
As conclusões dos estudos de Coleman et al.(1982) e das investigações de
Langouet e Léger (2000) e de Ballion (1980) sobre os motivos que levam as
famílias a optar pelo setor particular dão conta, de facto, de que o clima
disciplinar constitui a principal razão para que os pais escolham escolas
privadas. Embora os pais entrevistados não identifiquem a disciplina escolar
como primeiro critério para a matrícula dos filhos nos respetivos colégios,
consideram-na uma variável “fundamental” (pai, colégio religioso, BDP, 45 anos)
para que os professores possam ensinar e os filhos possam aprender: “eles vão
para as aulas e se aquilo for uma bagunça, nem os professores conseguem dar a
aula nem os miúdos conseguem captar o que o professor está a transmitir-lhes,
porque é impossível” (mãe, colégio laico, PBE, 45 anos).
A “colagem” da indisciplina à escola pública, muito por efeito da amplificação
do fenómeno pelos media, veio contribuir para aumentar a descredibilização do
setor público da educação. Em Portugal, as escolas estatais passaram a ser
percecionadas pela opinião pública como espaços em “estado de desordem”
(Barroso, 2003: 65). A amálgama demagógica entre os meros atos de desvio às
regras da sala de aula – que constituem a maior parte dos atos de indisciplina
– e a violência (Rochex, 2003) contribuiu, de forma indevida e alarmista, para
dar dos estabelecimentos de ensino públicos uma “(…) imagem de fortaleza
cercada, de uma escola agredida e de uma decadência dos costumes educativos”
(Debarbieux, 2000: 399). Os alunos destes colégios dão voz a esta perceção
quando identificam o universo das escolas públicas com a ocorrência de
incidentes de tal modo graves que requerem o recurso frequente a “grandes
medidas disciplinares e Conselhos e aquelas confusões todas” (aluno, escola
religiosa, BDP, 17 anos) e que exigem que “as escolas tenham de ter lá sempre
polícia” (aluna, colégio religioso, BEP, 15 anos). Ao mesmo tempo, e em linha
com o discurso mediático/político (Sebastião, 2003), os jovens entrevistados
estabelecem um nexo de causa e efeito entre os atos de indisciplina,
incivilidade e violência escolar e os alunos das classes populares, descritos
como gente “assim lá dos subúrbios (…) habituada a não ter respeito por
ninguém” (aluna do colégio laico, PBIC, 17 anos) – “os outros diferentes de si”
(Van Zanten, 2009: 244) de cuja contaminação estão protegidos pelo “entre-soi
protetor” (Van Zanten, 2009: 62) assegurado pelos respetivos colégios.
É no mediatizado incidente do telemóvel ocorrido numa escola do Porto que
encontram o exemplo para descrever o clima de total indisciplina que
caracterizará as escolas estatais, na sua perspetiva. O episódio suscita entre
os alunos uma veemente onda de repúdio que se faz acompanhar de enérgicas
condenações ao “escândalo [que é] a história de se filmar, roubar um telemóvel
à professora, ou filmar-se a aula” (aluno, colégio religioso, BDP, 17 anos). Em
suma, um tipo de ocorrência que, nas palavras do mesmo jovem, “num colégio
nunca passaria pela cabeça”. Nos colégios privados, como vai admitindo um dos
alunos, “(…) não é que não aconteça, mas raramente acontece assim alguma coisa
de muito grave” (colégio religioso, PBIC, 16 anos). A hipótese de haver nos
respetivos colégios alunos capazes de se envolverem em “lutas com professores”
(aluna, colégio religioso, BEP, 17 anos) surge-lhes como tão implausível que é
acolhida com gargalhadas. Admitem que possam ocorrer, quando muito, pequenos
incidentes, do tipo “aquelas brigazinhas, mas nunca são tão grandes como vemos,
às vezes, nas escolas públicas” (aluna, colégio laico, PBIC, 17 anos).
A perceção dos respetivos colégios como espaços caraterizados por um ambiente
disciplinar sereno e profícuo para ensinar e para aprender é confirmada pelos
professores, que referenciam a existência de “poucos” (professor, colégio
religioso, 36 anos) problemas de indisciplina, de pouca gravidade e, segundo se
depreende, facilmente controláveis, porque, como nos explica uma das docentes,
“(…) temos a sorte, se calhar, de em vez de termos uma turma de 30 a remar para
o sentido contrário, se calhar temos 26 ou 27 a remar no sentido certo”
(colégio religioso, 40 anos). A indisciplina dos alunos resume-se, grosso modo,
ao que Dubet e Martuccelli identificam como “o modo natural de expressão dos
adolescentes” (1996: 157): “conversa, às vezes” (professora, colégio laico, 52
anos) ou um “falar para o lado e assim” (professor, colégio laico, 33 anos).
Como sintetiza um pai-professor do colégio religioso, “Isto aqui não temos
nada, zero. Basta um professor abrir os olhos e acalma logo, não é? Isto nem se
podem chamar problemas” (PBIC, 39 anos).
Mais uma vez, e agora no âmbito dos mecanismos de prevenção da indisciplina, o
setor público é representado como o espelho invertido dos respetivos colégios:
enquanto “lá” é o “deixar andar”, “aqui” “somos mais controlados”, diz-nos uma
aluna do estabelecimento laico (PBIC, 17 anos), remetendo para a existência,
nos colégios privados, de “(…) uma maior atenção por parte dos seus
responsáveis à foucaultiana «microfísica do poder» e seu controlo (…)”
(Estêvão, 2001: 333). A impossibilidade de a escola pública afastar os alunos
irredutíveis à disciplina escolar também marca a diferença com a escola
particular. Como lembra um dos pais e antigo aluno do colégio religioso, num
discurso inflamado contra as “orientações criminosas do Ministério da Educação”
e esquecendo que o ensino estatal se rege pelos princípios da universalidade e
da inclusão, na escola pública “os alunos já sabem que não podem ser expulsos
por mau comportamento, por faltas ou mesmo por más notas…”.
Mas como dá conta a generalidade dos entrevistados, a manutenção da disciplina
assenta também em fatores de ordem organizacional em que a escola pública
investirá menos do que a privada: uma “cultura forte” no sentido de um corpusde
valores, de crenças e de metas “através dos quais os [seus] membros estabeleçam
e mantenham o sentido de comunidade” (Beare et al., 1989: 177), uma “liturgia
de envolvimento” (Estêvão, 2001) que agrega toda a comunidade educativa em
torno dos valores colegiais e também uma “preocupação por fazer com que os
alunos sejam a pessoa para além do aluno” (professora, colégio laico, 52 anos).
Pais e professores partilham a perceção de que os alunos terão um “tratamento
mais impessoal” (Diretora do 3.º Ciclo, colégio laico) no ensino público do que
no privado, onde “(…) olham para os alunos não como números, não é o trezentos
e quarenta e dois, é o Miguel Pedro (…) que tem por detrás uma família, que tem
por detrás expectativas” (Diretor do Ensino Secundário, colégio religioso). O
coordenador do 3.º ciclo do colégio laico reforça a ideia: “Eu penso que o
privado acompanha muito mais os alunos, tem um conhecimento muito mais
personalizado de cada um e pode dar um acompanhamento… fazer um trabalho mais
proveitoso do que, propriamente, o público.” A ausência, na escola pública, de
um “ethos familiarista” (Estêvão, 2001), de uma rede de afetos e de um
sentimento de pertença ao estabelecimento contrastará, como evidenciam os
agentes educativos, com o sentido de pertença que os une ao seu colégio e que o
transforma numa “segunda casa”.
5. O “deficit” socializador da escola pública
O maior handicapdas escolas públicas não estará, no entanto, nem na fraca
preparação académica dos alunos nem no clima indisciplinado, segundo os
entrevistados. Para eles, e em consonância com o ideal de educação holística
perseguido pelas classes burguesas (Pinçon e Pinçon-Charlot, 2007), a maior
lacuna da escola pública estará na alegada incapacidade de providenciar aos
alunos uma formação integral, também admitida como o grande repto da escola
atual por autores como Tedesco (2008). No seu estudo sobre o ensino público e
privado, Rouillard (2013) constatou, de facto, que enquanto os professores do
ensino público reivindicam como principal missão a instrução, considerando a
educação uma tarefa da família, os professores do privado se veem como
“educadores”.
Os entrevistados apontam à escola pública a ausência de projetos educativos
estruturados em valores, o desinvestimento em iniciativas extra-curriculares
que fomentem a sua exercitação pelos alunos e lhes proporcionem uma educação
plena. Como pergunta um dos pais: “Qual é o apoio nas escolas públicas que [os
alunos] têm, do ponto de vista da responsabilidade social, da formação humana,
das atividades culturais, tudo…?” (pai, colégio religioso, BDP, 45 anos). É na
formação holística que residirá a supremacia do setor privado, segundo os pais
e professores entrevistados, para quem os resultados estritamente académicos –
sendo embora importantes – não podem ser a única nem a principal preocupação
formativa e para quem a excelência académica está longe de ser considerada a
principal mais valia do ensino privado sobre o público ou a sua marca
diferenciadora. Nas palavras dos entrevistados não encontramos, aliás, sinais
dessa “(…) presença quase obsessiva da valorização do que se designa de
‘excelência académica' nos discursos que circulam na comunicação social, como
vozes dominantes, sobre educação” (Cortesão et al., 2007: 14) – um facto algo
inesperado quando estamos perante colégios que, como estes, ocupam de ano para
ano os lugares cimeiros dos rankingsnacionais e são mediaticamente
(re)conhecidos pela excelência dos resultados obtidos nos exames nacionais.
Como dirão, importa que a escola forme “bons alunos”, mas importa também que
ela forme “homens” na sua aceção plena, isto é, cidadãos reflexivos,
responsáveis pelos seus atos, com poder de decisão e espírito crítico, com
sentido de fraternidade, justiça e respeito pelo outro, criativos e recetivos à
cultura nas suas múltiplas expressões.
Notas conclusivas
Esta reflexão vem documentar a naturalização, por parte das comunidades
educativas destes dois colégios privados, da imagem desqualificante da escola
pública, que tem por contraponto qualificante a imagem do colégio privado
frequentado.
Apesar de os alunos revelarem desconhecer, por dentro, a realidade do ensino
oficial, não deixam de associá-lo, de forma estereotipada e em uníssono com os
restantes entrevistados, à ausência de enquadramento organizacional, à falta de
dedicação do corpo docente e à inexistência de uma cultura de rigor e de
excelência académica, que dizem ser visível na falta de exigência das provas de
avaliação e na inflação das classificações. Ao olhar dos entrevistados, o
ensino público estará também mergulhado num clima de permissividade, de
indisciplina e até de violência, claramente contrastante com o ambiente escolar
de rigor, de disciplina e de tranquilidade dos respetivos colégios. Finalmente,
e para completar este retrato desvalorizante e homogeneizante do ensino
público, lembram que ele carece, sobretudo, daquelas características que dizem
ser parte integrante do “ethos” das escolas privadas que frequentam,
conferindo-lhes uma “personalidade vincada” (Draelants, 2006) e fazendo delas
escolas de sucesso: um projeto de educação em valores e de formação holística
capaz de abarcar a multidimensionalidade do ser humano, um sentido de escola
como segunda casa, um investimento em cerimoniais de envolvimento agregadores
da comunidade educativa e, enfim, uma atenção à pessoa que mora em cada aluno,
objeto de um acompanhamento personalizado. Chaves do sucesso educativo que
faltam, na sua perspetiva, à generalidade das escolas públicas.