Governação, participação e desenvolvimento local
Introdução1
O modelo de governação e a forma como é conduzida são aspetos particularmente
críticos para a implementação de políticas públicas e constituem uma importante
problemática dos estudos urbanos. A governação urbana, que pressupõe o
planeamento, a regulação e a gestão de várias dimensões urbanas, nomeadamente
ambientais, sociais, culturais e económicas, enfrenta uma série de dilemas em
torno do grau e da qualidade de democraticidade que promove. Particularmente em
contextos de maior proximidade, como são os das pequenas e médias cidades2, o
texto discute as possibilidades de maior transparência e imputação de
responsabilidade às decisões públicas, ponderando as condições que podem
permitir uma democracia mais participada e aberta através de mecanismos
deliberativos e participativos, maior prontidão na reação das estruturas
governativas aos problemas das pessoas, das suas necessidades e expectativas e
maior justiça distributiva.
A discussão centra-se na ideia de uma cidade mais justa que, para lá das
condições materiais e imateriais que servem de recursos ao desenvolvimento
urbano, requer uma governação que integre ativamente os cidadãos na condução
dos seus destinos e da sua gestão. A cidadania é hoje reconhecida como um
pressuposto das liberdades individuais e dos direitos democráticos, como
demonstram os discursos políticos e técnicos nas suas mais diversas
manifestações de intenções. Contudo, persiste um enorme hiato entre os
discursos e a prática. As cidades que encetam iniciativas e projetos para
promover formas de cidadania e de envolvimento público ativo não têm conseguido
integrar, de forma efetiva, os cidadãos na sua gestão. É, em larga medida,
neste hiato que reside o fundamento essencial para a perpetuação das injustiças
e desigualdades urbanas e para o menor desenvolvimento das cidades,
particularmente tendo como referência as potencialidades do desenvolvimento
local. Apesar das esperanças depositadas no aumento da autonomia local como
fator fundamental de desenvolvimento, o atual modelo de governação mantém-se
fortemente hierarquizado e predominam práticas decorrentes do modelo
representativo que revelam enormes limitações no que diz respeito à efetiva
participação e envolvimento dos cidadãos nas tomadas de decisão relativas à
vida pública.
Através de uma reflexão teórica e analítica, com base na literatura
especializada que coloca a participação ativa dos cidadãos no centro das
teorias de planeamento das cidades e dos modelos políticos democráticos, o
texto questiona os efeitos da governação urbana na transformação da democracia,
o potencial de emancipação social através da cidadania e a forma como estes
conceitos se materializam na gestão da cidade e na vida dos cidadãos.
Partindo de uma análise global sobre a forma como se estrutura atualmente a
governação urbana, a discussão desenvolve-se através das principais dimensões
da governação, nomeadamente nas relações de poder, na cidadania, no
desenvolvimento das cidades e na distribuição dos recursos.
1. Governação urbana
O desenvolvimento de modelos de governação mais democráticos e participados
encontra um contexto mais favorável no nível local. Este é o nível que se vem
afirmando como a escala privilegiada de renovação da ação pública, enquadrada
no processo de descentralização, em processos que se difundem pela Europa e
pela América do Norte, ainda que um pouco incipientes em Portugal. O
desenvolvimento local tem sido o domínio específico de várias organizações
internacionais num processo que vem decorrendo desde os anos 80 (Henriques,
2006). É o nível onde as políticas melhor podem promover a sustentabilidade
social e responder a desafios de integração que são globais ou comuns a grande
parte das aglomerações urbanas mundiais, esperando-se mesmo que as comunidades
de sucesso sejam as que são capazes de reinventar a cidadania local (Polèse e
Stren, 2000).
Apesar de pouco extensa, a literatura especializada sugere um quadro
interrogativo em torno dos contextos de proximidade, que justifica um
questionamento sobre se estes favorecem ou não maior transparência e imputação
de responsabilidades, maior prontidão na reação da classe dirigente aos
problemas das pessoas e das suas necessidades de identificação territorial e se
podem ou não promover uma democracia mais participada e aberta à sociedade
civil (Francisco, 2007a).
Em Portugal, as formas de organização autárquica das comunidades locais
remontam pelo menos à época medieval, mas só no âmbito da Constituição da
República Portuguesa de 1976, as autarquias locais passaram a ser dotadas de
órgãos eleitos e a governar e gerir sem a intervenção direta do Estado Central.
As transferências de competências para os municípios têm vindo a aumentar, mas
o Estado Central mantém grande parte da gestão e distribuição de recursos, pelo
que se mantém também uma atuação negociada entre poder central e poder local
para além do enquadramento formal, jurídico e financeiro que os delimita
formalmente3, propiciando a continuidade de formas tradicionais de
clientelismo, como a proliferação do papel dos notáveis, da personalização do
poder, das fidelidades pessoais e do uso pessoal dos recursos (Ruivo, 1991).
As práticas revelam que, em todos os níveis da espiral do poder local, domina
uma cultura de decisões hermética que se reproduz em cada nível da hierarquia.
A agenda política dos executivos ocupa o topo da espiral, sendo as decisões
tomadas junto do topo da hierarquia partidária. Internamente, os executivos
mantêm o mesmo padrão e alimentam uma proximidade aos corpos dirigentes,
sustentada no modelo de nomeações por comissões de serviço de três anos, que
assentam na confiança política. Os dirigentes são absorvidos por crescentes
processos burocráticos e escasseia a disponibilidade e autonomia para a focagem
nas questões urbanas e nos problemas dos cidadãos.
A cultura hierárquica chega ao fim da linha através de processos que alimentam
o esvaziamento das competências dos corpos técnicos, ciclicamente preteridos ou
preferidos, ao ritmo das mudanças políticas em cada ciclo eleitoral e do
recurso a serviços externos.
O papel dos técnicos pode estar, formal e juridicamente, circunscrito à
fundamentação de decisões já tomadas, contendo a sua capacidade de intervenção
num nível que favorece a monopolização do conhecimento e da informação pelos
decisores, tendo como consequência a fragilidade, para o serviço público, das
competências técnicas disponíveis.
Este quadro de atuação interna dos municípios não permite uma estabilidade
organizacional suficiente para que, do lado dos quadros técnicos, se possa
passar do nível da gestão administrativa interna para o desenvolvimento de uma
cultura de autonomia técnica e cidadania organizacional e, do lado dos
executivos municipais, se possa passar de um nível de governação assente em
práticas de decisão herméticas, que não cumpre critérios de transparência e
prestação de contas (accountability4), para um nível de governação que integre
a participação ativa e a deliberação dos cidadãos.
Relativamente à comunicação entre cidadãos, eleitos e corpos técnicos das
câmaras municipais, ela concretiza-se predominantemente através, por um lado,
dos meios de comunicação social locais que acompanham os momentos e eventos
públicos dos executivos5 e, por outro lado, pelas interações diretas com a
administração local e pelos meios de divulgação e discussão, legalmente
previstos, de resoluções.
A massa crítica existente na maior parte das cidades por via da comunicação
social não permite mais do que explorar diferendos políticos que animam as
dinâmicas partidárias locais, nem tem sido capaz de construir uma matriz
consistente de informação que permita dar a conhecer intenções, ações e efeitos
das políticas urbanas: “(...) a comunicação de massa, sendo formada
artificialmente, tende a apoiar e servir estratégias de dissimulação e a gerar
passividade.” (Fernandes, 2003: 10).
No contexto das interações diretas dos cidadãos com a administração local, esta
tende a reproduzir os modos de atuação vertical supra referidos, alimentando,
por um lado, a impermeabilidade do processo de tomada de decisão e, por outro
lado, favorecendo a permeabilidade informal, dando expressão ao Estado
Labiríntico (Ruivo, 1991: 199):
“Trata-se da intervenção de outros sistemas de ordem, este
subreptícios (…). Trata- se das redes de amizade, das redes
políticas, dos contactos, da cumplicidade a nível administrativo, dos
conhecimentos estabelecidos, a determinados níveis, nomeadamente
familiar, os quais, no nosso país (e em muitos outros), estamos em
crer, atingem um peso incalculável na resolução de problemas a vários
níveis da vida social (…).”
No âmbito dos meios de divulgação e discussão legalmente previstos,
nomeadamente através das reuniões públicas, discussões públicas, Assembleias
Municipais, editais ou publicações em Diário da República, a informação
veiculada por estes meios é muito limitada, não permitindo uma descodificação
de intenções e opções, adivinhando-se grandes dificuldades para interpretar e
descortinar as dinâmicas e intenções destas sessões pelos cidadãos. Mesmo para
os próprios atores políticos, o acompanhamento das políticas e das decisões
estratégicas e de gestão através daqueles meios é uma tarefa intrincada, pois a
ordem de trabalhos proposta pelos executivos é comunicada num prazo que não
permite, na maior parte dos casos, a análise refletida sobre os assuntos e num
formato de proposta praticamente fechada, que torna invisíveis os fundamentos e
desenvolvimentos dos processos.
Existem alguns mecanismos que permitem a participação direta dos cidadãos nas
deliberações municipais, como os referendos locais assentes em assembleias
deliberativas ou o direito de petição. Contudo, na maior parte dos casos, as
informações fornecidas numa fase adiantada dos processos e com elevados níveis
de compromissos que as deliberações apenas vão formalizar, tornam qualquer
iniciativa extemporânea.
Assim, a transparência das políticas urbanas depende grandemente da vontade e
do grau de comunicação dos executivos. Os políticos da oposição, muitas vezes
com experiência de governação e detentores das chaves de interpretação que
facilitam a leitura das intenções e efeitos das decisões dos executivos, estão,
por sua vez, muito condicionados pelas suas próprias agendas políticas e
partidárias, sendo muito difícil perceber quando estão a informar e alertar os
cidadãos ou apenas a travar combates políticos pela necessidade de visibilidade
política e partidária na comunicação social.
Na base das interações da triangulação entre corpos técnicos, decisores
políticos e cidadãos, existe uma cultura organizacional hierárquica que não
promove, em cada um daqueles elementos, individualmente, institucionalmente ou
em parcerias, uma governação centrada nos direitos individuais de participação
na gestão das dimensões urbanas fundamentais (sociais, ambientais ou
económicas). De facto, as práticas representativas do modelo de governação
local cerceiam as possibilidades de controlo social e de participação cívica
nas políticas públicas e comprometem o acompanhamento real das decisões
políticas pelos cidadãos.
As decisões políticas que determinam os investimentos públicos nas áreas de
competências dos municípios desenvolvem-se em processos de discussão e tomada
de decisão muito fechados e hierarquizados, liderados pela figura, mais ou
menos carismática, do seu presidente. Os processos formais de participação
pública decorrem de imposições legais no âmbito da aprovação de instrumentos de
gestão territorial, classificação de património ou adjudicação de serviços,
limitando-se a processos de consulta pública em fases muito adiantadas, ou até
mesmo concluídas dos processos de decisão, sendo muito escassos os casos de
envolvimento ativo por iniciativa das Câmaras Municipais e mais raros ainda por
iniciativa de cidadãos. Acresce que, nos municípios portugueses, só
excecionalmente se encontram estruturas representativas dos interesses locais
destinadas a acompanhar a atividade dos serviços responsáveis pelo ordenamento
e desenvolvimento do território municipal6. Noutros países dotados de sistemas
de gestão territorial mais consolidados, os conselhos municipais constituídos
por cidadãos e representantes da sociedade civil são bastante comuns e
diversificados7.
Embora os termos governançae cidadaniaproliferem na retórica técnica e política
municipal, e salvo algumas exceções que procuram ativamente incluir os cidadãos
na discussão das problemáticas e nas tomadas de decisão (veja-se os casos de
Palmela e Cascais)8, a democratização do poder local está, ainda hoje,
confinada essencialmente ao processo eleitoral.
Contudo, os novos modelos de governação urbana parecem ter um enorme potencial
para a representação de todos os interesses, e não apenas dos dominantes,
passando por novas formas coletivas de associativismo e de relações
interinstitucionais, e entre instituições e cidadãos, e por uma nova prática de
responsabilização de atores.
Segundo Daniel Francisco, a ideia de governança (ou governância, como a
designa) surge nos anos 1980, dando corpo a modos de organização “mais
horizontais, cooperantes e consensuais (sobretudo entre o público e o privado),
onde a noção de «rede» é fundamental”, substituindo práticas hierárquicas de
governo e o monopólio dos atores governamentais nos processos de decisão
pública (Francisco, 2007a: 6).
A par destas tendências de governação, a governação urbana traduz uma nova
forma de governar e um novo posicionamento dos atores dos setores público e
privado que são envolvidos através de parcerias e outras redes (Andersen e
Kempen, 2001: 7).
No contexto da governação local, a integração dos cidadãos requer mecanismos
políticos democratizados, baseados numa descentralização administrativa e na
participação ativa dos cidadãos na gestão municipal. Os governos municipais
precisam de rever o modelo de gestão do seu próprio poder, afirmar os
interesses da sua comunidade acima das diferenças partidárias ou ideológicas e
defender os seus interesses específicos junto dos governos nacionais que,
representando as redes de cidades, podem atuar como atores coletivos dinâmicos
na economia global (Borja e Castells, 1997).
As relações de poder na cidade balizam a forma como se exerce a cidadania, ora
não a promovendo, ora condicionando-a em processos de decisão muito pouco
transparentes e parcamente fundamentados publicamente. Esta impermeabilidade da
governação urbana ou permeabilidade selecionada e dirigida é um fator que
condiciona a leitura sobre as políticas públicas e seus efeitos no
aprofundamento das desigualdades. Interessa por isso, no alinhamento deste
texto, discutir um pouco mais a estruturação das relações de poder e a sua
relação com a governação urbana.
2. Governação e relações de poder na cidade
A discussão sobre as manifestações de poder expressa-se de forma particular nos
sistemas de governação urbana que se caracterizam por relações extremamente
complexas, que envolvem instituições e atores, padrões de interdependência
diversos e extensos e ainda na fragmentação e falta de consensos (Stoker,
1995).
O poder da estrutura institucional, dentro dos municípios e entre municípios é
muito fraco, revelando a “falta de uma institucionalização jurídica e política
dos territórios”. Pelo contrário, “o poder de decisão depende excessivamente
das virtudes e do carisma do autarca, travando sistematicamente o
desenvolvimento de dinâmicas locais institucionais” (Ruivo, 2008: 64).
O quadro político em que se desenvolve a ideia de governação em Portugal é
assim confinado por “práticas e representações de longa data, que determinam as
suas possibilidades” (Francisco, 2007a: 12). Para além da própria cultura
municipal, fechada e fortemente hierarquizada, a governação local centra-se no
poder personalizado do Presidente da Câmara, que assenta em “relações
individualizadas na sua rede de informantes”, assim como na “concentração e
autocentração do poder” (Francisco, 2007a: 15) e em “redes informais, pessoais
e partidárias que lhes permite de forma mais expedita navegar por entre os
vários níveis de democracia, de forma a obter os recursos que necessitam para
os seus projetos locais” (Baptista, 2008: 142). Esta dinâmica tem como
consequência “a distanciação das elites autárquicas face à estrutura social e
aos chamados ‘parceiros sociais'” (Francisco, 2007a: 15). Neste cenário de
acentuada tradição de favoritismo e elitismo, que cultiva o alargamento da sua
rede de relações e, consequentemente, a sua perpetuação, o modelo de governança
é de difícil implementação e a participação e democratização dos processos
políticos são fortemente penalizados.
Acresce que a estrutura representativa da democracia, assente na eleição com
base em listas partidárias fechadas (cuja constituição é frequentemente envolta
em polémicas de pagamento de quotas e de manipulação de estratos vulneráveis,
como a de cidadãos na terceira idade ou de cidadãos que vivem socialmente
isolados, em espaços rurais e em condições socioeconómicas frágeis), promove
mandatos incondicionados e cerceia, durante a sua vigência, a possibilidade de
controlo dos eleitos, alimentando, por esta via, a perpetuação de mandatos
pelos mesmos presidentes. A vida política da comunidade é amplamente dominada
pela vida partidária que transfere para as autarquias “as preocupações e os
afrontamentos partidários” (Fernandes, 1992: 32).
O poder local, tido como uma das maiores realizações da Revolução de Abril de
1974 (Fernandes, 1992), exerce-se ainda de forma muito pouco transparente e
permeável à vontade dos cidadãos, sendo difícil descortinar os interesses que
representam. Apesar de próximo das populações, a desconfiança mina a relação
dos cidadãos com os seus representantes. Os modernos modelos de governação
materializam-se, muitas vezes, em estratégias e processos que mais não fazem do
que legitimar as decisões tomadas pelo poder, substituindo-se muitas vezes a
governação, por esta via, à democracia.
3. Governação, cidadania e democracia
O regime não democrático que Portugal viveu durante o Estado Novo acentuou os
sentimentos de distância do poder e de afastamento da política (Cabral, Silva e
Saraiva, 2008). A par do que tem acontecido na generalidade dos países
desenvolvidos, os níveis de participação eleitoral em Portugal, nas últimas
três décadas, têm vindo a diminuir consistentemente, revelando uma diminuição
acentuada dos níveis de participação política convencional que enquadra a
chamada “crise de representação” (Silva, Aboim e Saraiva, 2008).
A passagem tardia, no contexto europeu, para um regime democrático ajuda, por
um lado, a compreender a “percepção de que as promessas de modernidade e da
democracia ainda não foram completamente cumpridas” (Baptista, 2008: 140) e,
por outro, a enquadrar os baixos níveis de participação pública. De facto, a
participação não é um ato automático da democracia e a socialização da
participação política é um processo lento, pelo que “processos políticos mais
transparentes são um ponto de partida óbvio para incentivar uma maior
participação” (Jalali e Silva, 2009: 305), sem esquecer que o exercício da
cidadania política exige um conjunto de recursos socioculturais e económicos
que não estão ao alcance de todos (Cabral, Silva e Saraiva, 2008). Estes
aspetos favorecem um crescente desligamento entre cidadãos e responsáveis pelas
tomadas de decisão e refletem-se no atual modelo de governação (Santos, 2003:
27):
“O modelo hegemónico de democracia (democracia liberal,
representativa), apesar de globalmente triunfante, não garante mais
do que uma democracia de baixa intensidade, assente na privatização
do bem público por elites mais ou menos restritas, na distância
crescente entre representantes e representados e numa inclusão
política abstracta feita de exclusão social.”
Em Portugal, as práticas de cidadania, que se traduzem nas práticas de
mobilização cívica, de associativismo e na participação em partidos políticos e
sindicatos, bem como em organizações voluntárias de solidariedade, aumentam de
forma evidente com a dimensão dos aglomerados: “Viver numa cidade, seja
pequena, média ou grande, afecta a forma como os direitos e deveres de
cidadania são exercidos” (Silva, Aboim e Saraiva, 2008: 247). Isto acontece
porque a distância ao poder político é menor no sentido geográfico do termo – a
proximidade espacial constitui um facilitador do contacto entre cidadãos e
instituições e porque, em contexto urbano, as oportunidades de interação e
discussão política são maiores: a densidade populacional, o contacto mais
frequente com o outro e o anonimato relativo da vida urbana permitem encontros
ocasionais e inesperadas afinidades eletivas (Silva, Aboim e Saraiva, 2008:
247).
A governação das cidades exige novas formas de conceção e realização das
decisões públicas, que passam pela consulta e associação a habitantes,
usuários, atores e os mais variados peritos. Ascher (2010) define esta
“governância das metápoles”9 como um sistema de dispositivos e de modos de ação
associados às instituições representantes da sociedade civil, para elaborar e
realizar as políticas e as decisões públicas que implicam novos procedimentos
deliberativos e consultivos de fortalecimento da democracia representativa.
Para o autor é à escala das metápoles que se devem tomar decisões urbanas
estruturantes e estratégicas, sendo necessária uma relação mais direta com os
cidadãos e novas formas democráticas de representação. O debate democrático
sobre a metápole é, portanto, fundamental para desenvolver uma solidariedade
reflexiva, que faça com que os cidadãos tomem consciência de que os seus
destinos estão ligados (Ascher, 2010).
A problemática do papel e do estatuto dos cidadãos na governação urbana
enquadra-se na discussão mais ampla sobre a reformulação dos modelos políticos
e de governação vigentes. Os regimes democráticos representativos, na sua
conceção hegemónica e liberal do pós-guerra, estão em declínio ou transformação
(Santos, 2003).
Neste quadro vem-se também adensando o debate em torno de caminhos
alternativos, que se materializa quer em novos conceitos de democracia
(“participativa”, “contrademocracia”, “deliberativa”, “e-democracia”), quer em
novos instrumentos de participação (orçamentos participativos, assembleias de
cidadãos, legislação direta). Aumenta o interesse nas formas de democracia que
aprofundam a participação ativa dos cidadãos nas tomadas de decisão, no
planeamento e na regulação da vida urbana (Saint- Martin, 2005; Ascher, 2010;
Santos, 2003; Guerra, 2006; Booher, 2008; Healey, 2008; Borja, 2003; Smith,
2009).
Existem alguns projetos, planeados e implementados em rede, como é o caso do
Programa das Redes Sociais, apoiado em Conselhos Locais de Ação Social e
Comissões Locais Inter-Freguesias. Estas redes têm como propósito central
estimular os atores locais a trabalhar em parceria e a articular as
intervenções na dimensão do combate à pobreza e à exclusão social. Mas, se por
um lado, o Programa representa uma possibilidade de ensaio do modelo de
governança e proporciona “um avanço significativo no domínio da apropriação e
consequente implementação de metodologias de trabalho e de pesquisa de cunho
participativo, mobilizando vários atores sociais” (Alves, 2012: 17), por outro,
mantém-se a liderança dominante pelos municípios. Esta municipalização da Rede
Social pode representar um risco para a politização social, uma vez que grande
parte das parcerias locais “têm como entidades promotoras as câmaras municipais
e como principais responsáveis os autarcas” (Alves, 2012: 16).
Os modernos processos de governação tornam menos nítidas as linhas de
responsabilidade política, podendo ter efeitos perversos para a democracia. O
aumento do número de agentes e as redes de governação que a governança
pressupõe podem ser usados para complexificar a governação perante os cidadãos,
aumentando as oportunidades para evitar responsabilidades, colocando em risco a
accountability– uma definição central da própria democracia (Jalali e Silva,
2009). Na medida em que refletem o peso das elites locais, as redes criam
ruturas entre Estado e sociedade, a ponto de comportarem riscos para a
cidadania e a democracia, promovendo mais facilmente a criação de comunidades
de intervenção do que a intervenção autónoma por cidadãos. Se, por um lado, as
redes representam oportunidades de cooperação, convergência e integração de
objetivos públicos e privados, ainda que moldáveis a diversos interesses, por
outro, as zonas de fricção, confronto e tensão implicam disputas que diluem a
responsabilidade e dificultam a sua legibilidade (Francisco, 2007b).
Em Portugal, a ausência de accountabilityé frequentemente atribuída a um
envolvimento insuficiente dos cidadãos na política. Contudo, Jalali e Silva
(2009) não concordam com esta interpretação: se cidadãos distantes obrigam a
menos accountabilitypor parte dos governantes, também menos
accountabilityconduz a um afastamento dos cidadãos, “na medida em que a sua voz
não é tida em conta nos processos políticos” (Jalali e Silva, 2009: 305), pelo
que é necessário que a mudança seja feita essencialmente pelo lado da oferta.
Por parte dos governantes, a motivação para esta mudança não é muito elevada,
pois menor participação reduz a exigência de accountabilitye, consequentemente,
aumenta a sua liberdade de ação. Acresce ainda que os momentos de participação
pública, consagrados na legislação, são muitas vezes “episódios de defesa de
interesses próprios, e não da colectividade, contestação desinformada ou pura e
simples manipulação política, por parte dos adversários locais que não
compreendem a benevolência dos planos e políticas que estão a ser propostos”
(Baptista, 2008: 144). Muitas atuações em rede ou em parcerias são conduzidas
de forma parcial pelos dirigentes técnicos e políticos que mais facilmente se
associam às elites administrativas, económicas e profissionais do que às
populações (Francisco, 2007a).
A passagem mais tardia para o regime democrático em Portugal, quando comparado
com outros países da Europa, inibe a constituição de modelos de governação
urbana menos centralizados, menos centrados nos executivos municipais e nas
suas redes de relações pessoais e partidárias persistentemente perpetuadas que,
com os funcionários das autarquias, alimentam relações de clientelismo
(Francisco, 2007b). Nesta dinâmica de governação, simultaneamente próxima da
realidade quotidiana dos cidadãos decorrente da proximidade física e distante
pelos níveis de recato em que se produz a gestão urbana, são vários os entraves
à integração de práticas de cidadania. Interessa refletir, como faremos em
seguida, sobre os efeitos desta governação na distribuição da riqueza e dos
recursos urbanos disponíveis.
4. Governação urbana e distribuição da riqueza
O descontentamento com as políticas centrais, assente numa crescente
consciencialização de que as políticas dominantes, para lá das diferenças
partidárias, não combatem efetiva e eficazmente as causas das desigualdades, é
acompanhado de um igual descontentamento com as políticas locais que, também
para lá das diferenças partidárias e dos múltiplos documentos estratégicos, não
conseguem manter políticas consistentes de desenvolvimento nas áreas que estão
sob a sua competência, comprometendo a qualidade de vida urbana. Na verdade,
enormes parcelas das liberdades e das necessidades individuais dos cidadãos
estão fortemente comprometidas pelas opções políticas da governação urbana.
Todas as políticas, incluindo as locais, sofrem de enormes défices de
transparência e accountability, revelando-se, na face da crise social, as
formas furtivas de construção e condução das políticas em todos os níveis de
governação, europeias, nacionais e locais. E a crise económica significa, para
a governação urbana, tão só que, às antigas e persistentes desigualdades, se
vêm juntar carências que comprometem fatores básicos das liberdades
individuais, como o acesso à habitação, à saúde, à cultura e à educação.
Os estudos sobre desigualdade (nos quais Portugal revela acentuadas
desigualdades) revelam também que a saúde e a felicidade das pessoas são mais
distintamente afetadas pelas diferenças de rendimento dentro da própria
sociedade do que pelas diferenças de rendimento existentes entre sociedades
ricas (Wilkinson e Pickett, 2010). Esta desigualdade materializa-se
espacialmente dentro das cidades: entre uma das zonas mais ricas de Londres,
Westminster, e uma outra zona que dista, num percurso de bicicleta, cerca de 25
minutos, a diferença na esperança média de vida entre o mais rico e o mais
pobre dos habitantes é de 17 anos (Marmot, 2010).
A governação urbana precisa de redirecionar o seu foco, quase sempre muito
centrado na competitividade e no sucesso económico da cidade, colocando-o no
centro dos fatores críticos que orientam a tomada de decisão para a igualdade e
os seus efeitos na distribuição da riqueza, na liberdade e nos direitos
democráticos. Como afirma Sen (2003: 133):
“O problema da desigualdade é, de facto, ampliado se deslocarmos a
atenção da desigualdade de rendimentos para a desigualdade na
distribuição das liberdades concretas e das potencialidades. Isto
pode dever-se principalmente à possibilidade de alguma «acumulação»
de, por um lado, desigualdade de rendimento com, por outro lado,
vantagem desigual na conversão de rendimentos em potencialidades.”
A escala de desigualdade fornece uma poderosa alavanca política que afeta o
bem-estar das populações. Quando as opções passam pela redução das despesas
sociais, desinvestindo no combate à desigualdade, abre-se caminho a uma maior
incidência de problemas sociais, como no caso particular dos apoios à educação
pré-escolar, cujo investimento pode evitar a necessidade das crianças de
ingressarem no ensino especial e, na idade adulta, aumentar as probabilidades
de auferirem de rendimentos sem dependerem de assistência social ou incorrerem
na criminalidade (Wilkinson e Pickett, 2010).
A par das políticas económicas e sociais, também as políticas urbanas
constituem um meio específico que pode gerar desigualdade. O espaço urbano,
enquanto espaço que se foi afirmando por demarcação da cidade aos seus opostos,
como espaço natural, rural ou campo, alimenta a sensação de controlo sobre a
existência, tornando-se no “centro de decisão, de riqueza, de poderio e de
conhecimento” (Fernandes, 2003: 8). Acresce um certo fascínio de “estratégias
de city brandinge de promoção agressiva de lugares” (Fortuna, 2009: 93), no
quadro de competição global entre cidades que tem vindo a promover políticas de
enobrecimento. No entanto, a estas conceções homogeneizadoras opõe-se a cultura
urbana que cresceu para além dos limites das cidades e a paisagem urbana é ela
mesma muito diversa e inclui espaços decadentes, marginalizados, em ruína ou
vazios (Fortuna, 2009). Mantém-se um “hiato entre cidade projetada e cidade
vivida” (Peixoto, 2009: 50) e o poder político reforça a diferenciação dos
espaços “que promove ou consente as relações de inclusão/exclusão” (Fernandes,
2003: 14).
Perante um urbanismo voltado para consumidores externos, para atrair
investidores cujos projetos fragmentam a cidade e a sociedade, perante os
fenómenos de enobrecimento urbano, é necessário uma mobilização social e as
consequentes respostas políticas para tornar possível a reapropriação da cidade
pelos cidadãos. Trata-se dos direitos de cidadania que se materializam em
direitos à cidade, ao lugar, a permanecer onde se elegeu viver, ao espaço
público, a um ambiente que transmita segurança, à mobilidade, à centralidade, à
identidade sociocultural específica, à participação deliberante e ao controlo
social da gestão urbana (Borja, 2010), em suma, aos direitos de usufruir dos
serviços e equipamentos das cidades, mas também à condição de cidadania
política e cultural (Fortuna, 2009).
A convicção generalizada de que o setor cultural e criativo assume uma
importância crescente para a criação de emprego e de riqueza e para a promoção
da qualidade de vida das populações das cidades, tem sustentando avultados
investimentos no acolhimento de grandes eventos culturais, como as capitais
europeias da cultura ou as exposições mundiais. Contudo, é prudente acautelar
aspetos críticos como a distribuição justa dos benefícios dos eventos, a
criação de emprego que melhore as competências e o acesso a futuro emprego e a
salvaguarda dos interesses e direitos da comunidade sobre os espaços públicos.
Concretamente em relação à cultura, é necessário evitar que se torne num
slogan, mais do que num objetivo a empreender, “pervertendo-se com isso quer o
desenvolvimento cultural dos territórios e das comunidades, quer o
desenvolvimento mais amplo de que estes carecem, seja por via da cultura ou por
outra via qualquer” (Ferreira, 2010: 13).
Modelos de governação mais participados são fundamentais pois, quando a
discussão aberta é promovida, logo se gera oposição a políticas que favorecem
apenas alguns, ainda que o interesse da maioria seja apenas ligeiramente
atingido (Sen, 2003). A participação dos cidadãos é também fundamental para
apoiar escolhas políticas e de gestão mais ajustadas às necessidades humanas e
aos vários interesses presentes na cidade.
Conclusão
As formas de controlo jurídico, institucional e social da governação urbana são
suscetíveis de ajustamentos e adaptações na sua aplicação prática (Ruivo, 1991)
e grande parte das decisões que influenciam o investimento e o desenvolvimento
das cidades são opções estratégicas cujos efeitos nas (des)igualdades urbanas
estão fora da esfera da legalidade e da normatividade. As margens de
discricionariedade na tomada de decisão são muito amplas e estão formal e
culturalmente confinadas à esfera política, não dispondo os restantes
intervenientes de capacidade de intervenção.
O sistema político e partidário da moderna democracia, embora funcional, cria
condições que favorecem o estrangulamento do exercício da cidadania, a diluição
dos valores ideológicos, a personalização do poder político e a perpetuação de
redes de poder. Acumulam-se evidências de desilusão pública com as instituições
democráticas, de declínio de confiança nos políticos (Saint-Martin, 2005), de
necessidade de transformação do papel do Estado (Mozzicafreddo, 2000) e de
desligamento entre cidadãos e responsáveis pelas tomadas de decisão (Smith,
2009; Cabral, Silva e Saraiva, 2008).
A opacidade da governação urbana e as desigualdades que gera sugerem que o
papel dos cidadãos pode ser fundamental para o questionamento dos processos de
tomada de decisão, particularmente em contextos de proximidade como os das
pequenas e médias cidades. Atendendo ao potencial de intervenção nas políticas
públicas ao nível local, o reforço de fiscalização e intervenção por outros
intervenientes, atores locais e cidadãos, parece um caminho difícil de trilhar,
dada a debilidade de códigos de conduta para a participação, mas fundamental
para forçar os limites institucionalizados da esfera de decisão e aumentar os
níveis de democraticidade da governação urbana.
A temática da participação ativa dos cidadãos surge hoje no centro das teorias
de planeamento das cidades e dos modelos políticos democráticos (Santos, 2003).
Contudo, a literatura especializada vem mostrando vários tipos de dificuldades,
que limitam o alcance dessas práticas. Apesar dos termos participação,
envolvimento ou implicação aparecerem repetidamente na retórica política e
técnica, a prática revela escassas iniciativas, que são muitas vezes
fragilizadas pela reduzida mobilização e associação cívica, pela débil
capacidade institucional de operacionalizar metodologias de participação ou, no
caso específico português, por uma cultura política fortemente centralizadora
(Guerra, 2006). Para além disso, levantam-se interrogações acerca do grau em
que os participantes nos processos participativos são capazes de atuar de
acordo com interesses gerais e não particulares, da partilha desigual das
responsabilidades de decisão, dos riscos de manipulação e hegemonização dos
processos pelos grupos mais poderosos económica, social e simbolicamente
(Booher, 2008; Guerra, 2006; Martins, 2000).
Este conjunto de interrogações aponta para a necessidade de desenvolver
pesquisa empírica que avalie de que modo a questão da participação dos cidadãos
vem sendo integrada nos modelos de governação e nas políticas de
desenvolvimento urbano, sondando simultaneamente as suas implicações no que diz
respeito à articulação entre modelos de governação e interesses, expectativas e
condições de vida das populações. Esta necessidade é particularmente premente
em Portugal, onde é ainda muito escassa a produção de conhecimento sistemático
sobre estas questões, evidenciando a necessidade de desenvolver a reflexão
teórica e analítica em torno dos modelos de governação nas pequenas e médias
cidades.