A crise vista de baixo
REFLEXÕES SOLTAS PARA UM DEBATE INADIÁVEL
A Indispensável Descida ao Terreno
Os últimos três anos têm sido, como se sabe, um tempo de particular turbulência
para a economia mundial e nacional, primeiro na esfera financeira, depois na
economia real com consequências dramáticas do ponto de vista social e político.
Consequências essas que, infelizmente, continuam a agravar-se e a gerar um
sentimento de depressão colectiva e mal-estar social.
Ninguém, por mais perito que seja em matéria de análise económica ou de
sociologia política, ousa pronunciar juízos definitivos acerca do futuro,
nomeadamente levantando o véu da ignorância quanto a previsões para o termo da
crise e, menos ainda, quanto ao paradigma que emergirá no pós-tempestade.
Os governantes, as instâncias de supervisão e os jornalistas disfarçam as
incertezas reais com o conhecido wishful thinking que, com frequência, e por
imperativo da própria realidade, são obrigados a projectar em horizontes sempre
cada vez mais distantes.
Penso que, face a este clima de incerteza, o mais sensato será mesmo reconhecer
que, nas actuais circunstâncias, nada ou quase nada sabemos quanto ao futuro e
procurar lidar com a situação presente, à semelhança do médico que, perante
doenças raras, sem desistir de conhecer a sua origem, vai aplicando, como pode,
os conhecimentos que possui e os recursos de que dispõe para contornar os seus
efeitos mais severos e circunscrever o mal.
O senso comum começa a perceber que a crise está intrinsecamente associada ao
modelo actual de funcionamento da economia e antecipa que este já não serve,
embora sem ser capaz de lhe imaginar alternativas.
Os cientistas sociais, por seu turno, com os instrumentos de análise de que
dispõem evidenciam a grandeza dos sinais de alerta. Alguns exemplos:
· a economia está a funcionar muito abaixo do seu potencial, não assegurando
pleno emprego aos factores de produção existentes;
· o sistema produtivo gera disfuncionalidades sérias, tanto do ponto de vista
da qualidade de vida das pessoas, como da sustentabilidade ambiental e da
coesão social;
· em certos sectores de actividade e em alguns países, existem excedentes de
produção que, no entanto não são postos ao alcance de uma potencial procura,
por falta de poder de compra de largos estratos de população carenciada de
meios para os adquirir, os quase dois mil milhões de pobres em todo o mundo;
· o dinheiro e o sistema financeiro em geral padecem do pior dos males, a falta
de confiança dos agentes económicos;
· a concentração da riqueza e as grandes desigualdades na repartição do
rendimento atingem níveis inaceitáveis do ponto de vista ético e de direitos
humanos, situação que configura um teor de elevada perigosidade para a
desejável coesão social, a sustentabilidade da democracia e a paz.
Não tenho a intenção, neste texto, de proceder a uma análise aprofundada da
presente crise mundial e seus reflexos na vida económica e social. Essas
análises estão feitas a partir de pressupostos diversos e com maior ou menor
perspicácia, tanto no que concerne aos efeitos da crise como relativamente às
suas causas originárias. Direi apenas que é minha convicção de que estamos
perante uma crise sistémica, de ordem civilizacional a que não é estranha uma
concomitante mudança antropológica cultural profunda no que ao conhecimento, à
informação e ao sistema de valores diz respeito.
Acredito que os governos dos estados nacionais e os reguladores existentes
procurarão atenuar os efeitos mais visíveis na lógica dos interesses
dominantes, o que há-de traduzir-se numa necessária acção de retardador
relativamente a uma indispensável mudança de paradigma. No entanto, a menos que
ecluda alguma situação de catástrofe que tal imponha pela força, a
transformação que se impõe só emergirá por efeito de alguma inovação social
gerada e dinamizada a partir da base.
Por entre o Nevoeiro não Perder o Norte
Caberá a todos os actores sociais (estado, empresas, organizações) protagonizar
a mudança, mas será a sociedade civil, através de novas formas organizativas de
resposta aos desafios encontrados, que estará em condições de assumir um papel
mais pró-activo.
A crise vai impor a busca de novos rumos para a economia, a ocupação e
organização do espaço, para o emprego e para as relações sociais. Deste ponto
de vista, a crise pode ser considerada como sendo portadora de novas
oportunidades.
O desemprego massivo a que estamos assistindo, e para o qual não há fim à
vista, liberta recursos do sector produtivo tradicional, que ficarão
disponíveis para novas utilizações em outras áreas da vida colectiva,
designadamente na prestação de cuidados pessoais, valorização do património,
animação social e cultural das comunidades locais e mesmo na recuperação de
produção agrícola de qualidade.
Por outro lado, com tão elevados índices de desemprego involuntário, não há
razão para não defender a adopção de horários de trabalho mais reduzidos, com
consequente mais-valia para a qualidade da vida pessoal e familiar,
presentemente tão desgastada por ritmos de trabalho stressantes e uma
precariedade generalizada.
O mesmo se poderá dizer do encurtamento da idade da reforma e da necessidade de
criar desincentivos ao trabalho extraordinário e ao duplo e triplo emprego.
Os aumentos de produtividade que vão sendo alcançados devem reverter em favor
destes objectivos e não têm que ser apropriados apenas pelos donos do capital e
pelos gestores, como sucede no actual estado de correlação de forças sociais.
Reconheço que a prossecução destes objectivos de indiscutível interesse social
implicam a adopção de políticas que irão deparar com fortes resistências por
parte de quem tem poder para decidir, pois subentende uma concomitante
redistribuição do rendimento gerado na economia e, indirectamente, remete para
uma nova concepção de empresa, uma empresa de rosto humano que seja respondente
não só perante o capital mas também perante os diferentes stakeholders que a
viabilizam (trabalhadores, clientes, fornecedores, sociedade) e carece de uma
correspondente revisão do seu respectivo enquadramento jurídico.
Sejam quais forem os obstáculos a vencer, é para este horizonte de
possibilidades que aponta uma leitura da crise feita a partir de baixo, isto é,
a partir das pessoas e da sua qualidade de vida como finalidade principal a
prosseguir num quadro de referência ao bem comum que inclui sustentabilidade
ambiental e paz social.
O enfrentar da crise com que os governos são obrigados a confrontar-se não pode
continuar a confinar-se a acções de mero socorro de urgência para uma
recomposição provisória dos estragos feitos. Há que olhar para o indispensável
reforço dos alicerces e para a busca de alternativas inovadoras que melhor
respondam às finalidades a prosseguir. E, para tanto, é preciso não perder o
norte, mesmo se é denso o nevoeiro.
Aprender com a Crise
Uma das lições aprendidas da presente crise é o reconhecimento da manifesta
insuficiência do mercado para assegurar o desenvolvimento humano sustentável e
a necessidade de completar o papel do mercado com orientações estratégicas de
médio e longo prazo, estabelecidas, de preferência, por vias consensuais de
negociação colectiva entre os diferentes parceiros sociais, mas em que o Estado
desempenhará sempre um papel relevante.
A imprevisibilidade característica da turbulência não se compadecerá com rotas
pré-fixadas, mas tão pouco se conseguirá singrar por entre a tempestade se não
estiverem encontrados os pontos cardiais que fixam com clareza a determinação
dos objectivos e as prioridades da acção.
Ora, precisamente uma das debilidades do capitalismo contemporâneo consiste em
que a maximização do lucro da empresa e do capital investido se arvorou em
critério último de aferição de resultados. Produzir antibióticos para prevenir
mortes evitáveis ou produzir armas de destruição massiva equivalem-se do ponto
de vista das transacções mercantis e da lógica do mercado. Produzir com
tecnologias e materiais que provocam agravamento da poluição ambiental e
destruição de recursos não renováveis são efeitos que não são tidos em conta,
por si mesmos, mas apenas quando implicam recurso a acções de minimização dos
respectivos efeitos e, então, neste caso, contam, paradoxalmente, para fazer
subir os indicadores do crescimento económico.
A ciência económica e os economistas têm-se concentrado, até agora, sobretudo
nos fenómenos da macroeconomia.
Os progressos feitos neste domínio permitiram uma compreensão do funcionamento
da economia e da sociedade através de modelos matemáticos e recurso a variáveis
quantificadas a partir de estatísticas, também elas, produzidas em
correspondência às necessidades dos ditos modelos.
Por esta via, a ciência ganhou em abstracção e elegância dos seus raciocínios
matemáticos, mas distanciou-se da realidade, como já, anteriormente, havia
acontecido em relação à ética. Ao pretender aspirar a um lugar de prestígio
entre as ciências exactas, perdeu operacionalidade na resolução dos problemas
reais das populações e das pessoas concretas. E, de algum modo, negou-se a si
mesma como conhecimento da boa ordenação dos recursos disponíveis para a
satisfação das necessidades das pessoas e o bem comum.
As perplexidades na análise da crise não se manifestam no etéreo, mas sim em
territórios concretos, onde as pessoas ficam sem emprego e sem perspectivas de
encontrar outra ocupação, sem recursos para subsistirem ou assegurarem o nível
de vida que desejam, onde não encontram quem cuide dos seus idosos ou
deficientes. Se empregadas, conhecem a precariedade do contrato de trabalho,
estão sujeitas a horários de trabalho excessivos e deslocações demoradas. Vêem-
se sem tempo para cuidar dos filhos ou de outros familiares carenciados. Podem
ter ideias para investir, mas sem acesso fácil ao crédito e em condições
apropriadas à respectiva situação. Podem ter de viver em alojamentos que
precisam de melhorar, mas não dispõem dos meios necessários para o conseguirem.
E, assim, por diante.
A crise vista de baixo vem pôr em evidência esta situação paradoxal: por um
lado, necessidades que existem e permanecem sem ser satisfeitas; por outro,
recursos disponíveis que o progresso do conhecimento e a tecnologia não cessam
de aumentar, mas que um sistema de funcionamento da economia sub-utiliza ou
desvia para finalidades de prioridade duvidosa.
O Desenvolvimento Local como Oportunidade
A situação é tal que podemos esperar que a crise venha obrigar a equacionar e
revalorizar o papel da economia na resposta para os problemas do
desenvolvimento local.
É o olhar a partir de baixo, isto é, a partir das necessidades e recursos
locais que abrirá caminho à procura de novas soluções. Foi esse o percurso de
pessoas como Muhamad Yunus, que, sendo especialista em economia bancária,
percebeu como era importante tornar o crédito acessível às populações pobres de
remotas aldeias do Paquistão, para lhes dar a possibilidade de seguirem, por si
próprias, trajectórias de desenvolvimento humano. O micro-crédito é, hoje, uma
realidade em muitos países.
Experiências como esta mostram que não se trata de recusar liminarmente o
mercado, mas de colocá-lo ao serviço das pessoas. É essa a filosofia subjacente
ao negócio social, também preconizado por Yunus, que tem permitido a muita
gente, desencorajada na procura de emprego pelas vias tradicionais, criar o seu
próprio empreendimento com base num perfil de empresa que toma a satisfação de
uma necessidade como objectivo e não a maximização do lucro. O mesmo poder-se-á
dizer, em outro registo, da chamada economia de comunhão, expressão cunhada
pelo Movimento dos Focolares para designar um novo tipo de empresa que,
funcionando no mercado, procura conjugar a eficiência com a prática de uma
ética de responsabilidade e de solidariedade que se traduz entre outros
aspectos na repartição dos benefícios da empresa (lucros) por todos os
stakeholders.
A economia global continuará a singrar pelos seus próprios caminhos,
desejavelmente sujeita, no futuro próximo, a uma mais robusta e melhor
regulação a nível mundial, de modo a prevenir disfunções e crimes como os que
conhecemos recentemente. Não se trata de diabolizar a globalização, mas antes
importa reconhecer as suas potencialidades, procurando, no entanto, que estas
beneficiem equitativamente os diferentes grupos sociais e povos.
A uma crescente globalização há, porém, que contrapor um reforço da economia
base, que tenha em conta a valorização dos recursos localmente disponíveis, que
muito provavelmente passarão despercebidos à economia globalizada e à
competitividade a nível mundial, bem como tirar partido de um maior
conhecimento das necessidades reais de uma dada população num dado território,
de modo a melhor satisfazer essas necessidades.
É no local que hão-de florescer as empresas de economia social ou de economia
solidária por duas razões principais: porque é a esse nível que se encontra um
maior capital social imaterial (confiança, responsabilidade, solidariedade); e
porque, pela natureza dos seus fins, operam em sectores (prestação de cuidados,
por exemplo) mais abrigados da concorrência no plano mundial.
O desenvolvimento local torna-se, assim, uma oportunidade que deve merecer a
atenção dos economistas e dos políticos, como saída para a presente crise e a
edificação de uma nova arquitectura económico-financeira.
* Manuela Silva
mmanuela.silva@sapo.pt
Licenciada em Economia pela Universidade Técnica de Lisboa/Instituto Superior
de Economia e Gestão. Ex-Professora Catedrática Convidada. Aposentada. Ex-
directora da Revista Estudos de Economia. Membro fundador e ex-directora do
Centro de Estudos sobre Economia Portuguesa. Várias obras publicadas.
Economist. Former Professor of Technical University of Lisbon. Retired. Former
director of Revista Estudos de Economia. Founder member and former director of
Centro de Estudos sobre Economia Portuguesa.
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