Turismo e Gastronomia: a valorização do património gastronómico na região do
Algarve
Introdução
O presente artigo visa reflectir sobre a relação entre turismo e gastronomia,
preocupando-se em averiguar o contributo deste património intangível para a
valorização da identidade e unicidade dos destinos turísticos, no contexto de
uma sociedade pós-moderna, pós-fordista e globalizada.
Apoia-se num estudo exploratório levado a cabo na Escola Superior de Gestão,
Hotelaria e Turismo da Universidade do Algarve, com o objectivo primeiro de
determinar a receptividade face à gastronomia (e nomeadamente a cozinha) em
destinos turísticos. Privilegiou a óptica da oferta, uma vez que considerou a
análise de ementas e entrevistas a gestores/proprietários de restaurantes
localizados em seis instalações de suporte à náutica da região do Algarve:
Marina de Lagos, Marina de Portimão, Marina de Albufeira, Marina de Vilamoura,
Porto de Recreio de Olhão e Porto de Recreio de Vila Real de Santo António
(V.R.S.A).
A relação entre turismo e gastronomia, que se pretende simbiótica, reveste-se
no entanto de controvérsias que cabe problematizar, tendo em conta os impactos
que poderá gerar na identidade cultural dos destinos turísticos.
Neste contexto, o artigo começa por desenvolver uma abordagem teórica através
da problematização e explicitação de conceitos importantes para o entendimento
da relação turismo/gastronomia, seguindo-se uma componente empírica resultante
da análise de ementas e da elaboração e aplicação de um inquérito por
entrevista à restauração.
1. Turismo gastronómico enquanto segmento do turismo cultural
1.1. Conceptualização e problematização
Turismo gastronómico[1] está, segundo Mitchell e Hall (2003), associado a uma
viagem para fora do local habitual de residência, motivada no todo ou em parte,
pelo interesse em comida e bebida, e/ou em comer e beber. Consequentemente,
relaciona-se com a organização e promoção de festivais e eventos de comida e
vinhos, contemplando visitas a produtores primários ou secundários de
alimentos, participações em festivais gastronómicos e procura de restaurantes
ou lugares específicos onde a degustação de alimentos e toda a experimentação
inerente é a razão principal para viajar[2] (Hall e Mitchell, 2002).
Pode igualmente contemplar outros domínios de acção, tais como o apoio à
investigação das tradições gastronómicas, a publicação de livros de gastronomia
local, divulgação da gastronomia local através de brochuras promocionais,
incentivo às parcerias público-privadas (valorizadoras da gastronomia), entre
muitas outras (Canadian Tourism Commission, 2002: 2).
Se em meados dos anos 70 e 80, o turismo gastronómico poderia significar uma
refeição nos restaurantes de 2 e 3 Estrelas Michelin, hoje em dia, tal como
avança Richards (2007) a gastronomia tem sido alvo de crescente valorização
enquanto elemento cultural intangível, associado por sua vez à valorização da
atractividade, unicidade e especificidade dos destinos turísticos.
Neste contexto, não será de estranhar, depararmo-nos com o aumento de estudos
salientando a importância da gastronomia e especificamente da designada
identidade gastronómica dos destinos, enquanto elemento cultural relevante no
sucesso dos mesmos (Belisle, 1983; Sheldon and Fox, 1988; Reynolds, 1993;
Faulkner et al., 1999; Sparks et al., 2000; Kivela, 2001, 2003; Hall et al.,
2003; Ramos et al., 2004; in Fox, 2007).
Muitos destes estudos enfatizam a participação, descoberta e relação com
outra cultura, a cultura do destino (distinta da de casa), o que pode
envolver dimensões mais criativas e consequentemente remeter-nos para o
conceito de turismo criativo (Richards, 2002; Richards, 2009)[3].
O valor da identidade gastronómica insere-se então em processos de criação/
desenvolvimento dos diferentes destinos, que contemplam a gastronomia como
ritual secular e manifestação cultural (Hegarty, O´Malony e Barry, 2001: 3),
património intangível (UNESCO, 2003; Schluter, 2003) ou elemento valorizador
do sentido do lugar e espírito do lugar (ICOMOS, 2008), o que leva a
entendê-la como segmento do turismo cultural e/ou criativo[4].
Reconhecendo a gastronomia como elemento cultural e a importância da
experiência gastronómica, a Canadian Tourism Commission (2002: 1) diz-nos
gastronomia e cozinha são elementos a adicionar à experiência turística
cultural. Gastronomia constitui-se então enquanto experiência de participação
noutra cultura e de relacionamento com pessoas e lugares com um forte sentido
da sua própria identidade (Santisch, 2004: 20).
Na actual sociedade pós-moderna, pós-fordista e global, a experiência de
consumo detém um papel fundamental na vida económica e social. Neste contexto,
a Economia das Experiências (Pine & Gilmore, 1999), associada à experiência
turística, ganha proeminência[5], enfatizando dimensões como a de animação,
estética, evasão e aprendizagem no sentido de proporcionar uma experiência
memorável.
Assim, a experiência de consumo de comida no turismo pode ser analisada,
segundo Quan e Wang (2004), sob dois pontos de vista, independentemente da
motivação dos turistas. Isto é, por um lado pode averiguar a afluência de
turistas motivados pelo contacto com a gastronomia do local, região ou país de
destino, o que pressupõe a existência de um turismo gastronómico (ou food
tourism)[6], por outro lado, pode determinar se os turistas comem e bebem
porque se encontram fora da sua residência habitual, e satisfazem necessidades
básicas de modo a poder realizar a visita a outras atracções como monumentos,
praias, campos de golfe, entre outras (vide Mitchell e Hall, 2003).
Estão portanto em confronto a motivação primária versus motivação secundária
(complementar), consoante as tipologias de turistas em presença.
A primeira remete para a relação da experiência de consumo de comida com a
experiência turística principal; a segunda, para a sua relação com a
experiência do dia a dia do turista (tal como a de alojamento, transportes,
entre outras). Assim sendo, os dois autores referidos avançam que a experiência
de consumo de comida tende a ser categorizada não como pura ou fundamental
(pure, net ou peak) (afecta fundamentalmente às atracções principais), mas
antes como de suporte, mista ou secundária (supporting).
Cabe não esquecer que a distinção entre peak e supporting não exclui que a
experiência diária se integre simultaneamente pelas duas, e que a última sem
a primeira não pode existir (MacCabe, 2002; in Quan & Wang, 2004: 298).
1.1.1. A valorização da identidade
Na actual sociedade, a identidade gastronómica dos destinos turísticos é
mercantilizada e tornada espectáculo para dar resposta às expectativas dos
turistas (Debord, 1994, Campbell, 1995). Consequentemente, é cada vez mais
comum os destinos se institucionalizarem, legitimarem e promoverem essa
identidade (Fox e Fox, 2004: 87-88), assumindo-se a gastronomia como factor de
relevo no desenvolvimento do marketing de um região e na valorização de
ingredientes locais (Hjalager e Richards, 2002; in Quan e Wang, 2004: 299). O
reconhecimento, tal como ficou patente no 1º Congresso Europeu de Turismo e
Gastronomia em Madrid (2010), é de que turismo e gastronomia são factores de
criação de riqueza porque ajudam a gerar um desenvolvimento sustentável e
mesmo uma maior integração europeia (videTP, 2010).
Os processos de valorização da identidade gastronómica tendem a incorporar
preocupações de diferenciação, estetização autenticidade, simbolismo e
rejuvenescimento/inovação (Fox, 2007: 553) da gastronomia, pois só assim está
assegurado o respeito pelo património intangível de uma região turística.
No respeitante à diferenciação, a tendência para a homogeneização global
coincide com a do fascínio pela diferença e mercantilização do étnico e
alteridade (Hall et al., 2003: 77). Uma vez que cada cultura tem as suas
características distintivas de comida, pratos e menus (Fox, 2007: 553)
possibilita uma heterogeneização do produto gastronómico. A estetização apoia-
se no recurso contínuo a imagens e inscreve-se em processos de mercantilização
da cultura e sua simbolização, em que património é transformado em produto/
mercadoria a ser vendido.
Quanto à autenticidade, embora ela possa ser percepcionada como uma motivação
chave dos turistas (Dann, 1996; MacCannelel, in Fox, 2007: 555), associada a
sentimentos de nostalgia de um tempo perdido e irreversível (Levi-Strauss,
1978), ela é em última instância inalcançável, como deixam implícito Thompson e
Tambyah (1999), ao afirmarem que ela é uma esperança paradoxal e aparente.
Existem ainda autores que percepcionam autenticidade como uma outra
representação da realidade (Urry, 1995), o que nos remete para a consideração
da superficialidade do acto turístico (Urbain, 1991).
A autenticidade gastronómica é tida por muitos como um mito (Fox, 2007: 555).
Não só a maioria dos pratos foi inventada nos últimos 200 anos (Laudan, 2001;
in Fox, 2007: 555), mas também, através da história, o comércio, as viagens e a
tecnologia afectaram e alteraram as identidades gastronómicas de regiões e
países.
No entanto, o referido no parágrafo anterior não impede a identificação de
sabor e/ou gosto (taste) distintivo ' marca de autenticidade (Fischler,
1988, Goody, 1981[7]; in Cohen e Avieli, 2004), na cozinha de dado local,
região ou país. Ora, esse sabor distintivo pode simultaneamente atrair e
repelir os turistas.
No domínio da sociologia da comida, Fischler (1988, in Cohen e Avieli, 2004:
758) põe em destaque a distinção entre tendências de gosto protagonizadas
respectivamente pelos adversos a novidades - neofóbicos[8], e os receptivos a
elas - neofílicos[9], facto determinado por influências da biologia e da
cultura.
Contudo, na prática, e nomeadamente quando nos reportamos a situações
turísticas associadas à cozinha/culinária, a característica fundamental é a de
tensão entre tendências neofóbicas e neofílicas, na maioria dos indivíduos.
Cohen (1972), na formulação de uma tipologia comportamental de turistas,
referiu que estes procuram a novidade, diferença e estranheza, mas
genericamente acabam por desejar algum grau de familiaridade para poderem
apreciar a sua experiência turística (in Cohen e Avieli, 2004: 758), ao que não
é alheia uma necessidade ontológica de segurança e conforto do lar
(ontological comfort of home)[10](Giddens, 1984; in Quan e Wang, 2004: 301) ou
ilha psicológica de casa (psychological island of home) (Quan e Wang, 2004:
302).
O gosto e as preferências são formados culturalmente e controlados socialmente.
Donde pode acontecer que o confronto com a comida local pode constituir um
problema para os turistas que não gostem dela (Cohen e Avieli, 2004: 756). Dai
se assistir à crescente oferta de comida internacional e de fast-food, bem como
ao surgimento de estabelecimentos orientados para os turistas[11] (Cohen e
Avieli, 2004: 772) (adaptados ao paladar dos turistas), em grande parte dos
destinos turísticos[12].
Assim, não será de estranhar que os destinos muitas vezes pretendam valorizar a
sua identidade gastronómica, mas as próprias tipologias comportamentais dos
turistas que recepcionam, condicionem por seu turno a valorização dessa
identidade, por paradoxal que possa parecer à primeira vista.
Entre os vários aspectos e condicionalismos equacionados, Cohen e Avieli (2004:
764) distinguem o comunicacional (communication gap). Por exemplo, muitos
turistas podem evitar estabelecimentos de restauração pela dificuldade na
escolha de pratos tradicionais, uma vez que não sabem reconhecer os seus nomes
no menu, nem os ingredientes que os constituem. Paralelamente, a dificuldade em
perceber a língua do destino ou mesmo a explicação do empregado (com eventuais
problemas em fazer-se entender na língua do cliente), pode levar à suspeição
e desconforto em provar novas comidas. Este condicionalismo, pode ser
ultrapassado através de fotos e intermediários (culinary brokers), tais como
empregados de mesa, guias, amigos nativos, com capacidade para explicar os
pratos e fazer recomendações.
De facto, para que a gastronomia tradicional seja um valor autêntico a
respeitar há, segundo Quan e Wang (2004: 302), que compreender a cultura
gastronómica do turista, ou seja, os seus hábitos alimentares. Paralelamente,
há que segmentar os mercados turísticos em função dos diferentes hábitos
alimentares e preferências, no sentido de propiciar a satisfação ao consumidor.
Há ainda que sensibilizar os agentes de desenvolvimento do destino no sentido
de compreenderem que o consumo de comida detém um papel determinante na
estruturação da experiência turística. Em consequência, estratégias de
marketing de sucesso, não deverão nunca ignorar a importância das actividades
de suporte, tais como as experiências de consumo de comida (Quan & Wang,
2004: 302).
A autenticidade gastronómica não pode ser descontextualizada dos processos de
simbolização de um destino turístico, os quais se associam entre outros
aspectos, à valorização da natureza simbólica da comida (menus e comidas e
ingredientes específicos, formas especificas de preservação, confecção,
apresentação, uso de utensílios específicos) (Visser, 1991; in Hegarty,
O'Mahony e Barry 2001) e seus símbolos (por exemplo, ícones gastronómicos
apresentados pelos media), para mais facilmente definir atitudes face à
identidade gastronómica e ao consumo dessa identidade. O que não é impeditivo
de rejuvenescimento/inovação, uma vez que os destinos podem paralelamente
fazer reviver tradições e costumes, destacando o património culinário.
2. Estudo de Caso: A valorização da gastronomia tradicional do Algarve nos
restaurantes localizados nas marinas e portos de recreio do Algarve
2.1. O Algarve e sua importância no Produto Gastronomia & Vinhos
O Algarve constitui-se como uma região turística por excelência em Portugal
[13], associado predominantemente ao produto sol e mar. Em 2009, a análise da
performance turística desta região confrontada com as outras regiões
portuguesas evidencia que é a região com o maior número de dormidas (cerca de
14,2 milhões/ano), detendo 36% da quota total de dormidas em Portugal. É também
a região que capta os maiores proveitos globais turísticos, detendo uma quota
total de aproximadamente 30% (Impactur, 2010).
O Plano Estratégico Nacional de Turismo (MEI, PENT, 2006-2015) considera um
conjunto de dez produtos a valorizar em Portugal. No relativo ao Algarve
estabelece uma hierarquização em termos os produtos associados às motivações
primárias ' Sol e Mar, Golfe, Turismo Náutico, Turismo Residencial e
MICE, e produtos associados às motivações secundárias: - Turismo
Cultural, Turismo de Natureza, Turismo Gastronómico e Vinhos e Turismo de
Saúde e Bem-Estar.
O Produto Gastronomia e Vinhos do Algarve constitui-se neste enquadramento
enquanto produto com expectável potencial de crescimento[14], representando uma
boa oportunidade de diversificação da oferta do destino e de desenvolvimento
económico local/regional (através da produção para consumo no local/região,
valorização de produtos embaixadores da região, aparecimento de restaurantes e
bares, estímulo da produção artesanal, agrícola e vitivinícola, exportação de
produtos). O reconhecimento da importância deste produto é fundamental se
pensarmos que representa 25% dos gastos turísticos em comida (Hudman, 1986, in
Stephen, Smith, Xiao, 2008: 289). Sendo o Algarve uma região fundamentalmente
receptora de turistas, as empresas de produção (alojamento e restauração)
possuem um papel determinante[15].
O PENT (2006-2015) salienta que a Gastronomia e Vinhos tem, na actualidade,
grande relevância e potencial enquanto produto. Não só pela tradição e
qualidade dos produtos mas também por se constituir enquanto motivação
secundária para quase todos os produtos estratégicos. A nível do Algarve, a
gastronomia regional é considerada muito rica (Turismo do Algarve, 2008);
revela qualidade associada a restaurantes com estrelas Micheline bons
vinhos (Turismo do Algarve, 2009).
Neste contexto, o PENT (2006-2015) prevê a aposta na formação profissional,
criação de experiências integrais, desenvolvimento de ofertas gourmet,
desenvolvimento de ofertas tradicionais, criação de rotas gastronómicas e de
vinhos, organização de eventos, prevendo a realização de feiras e festivais
gastronómicos[16], o envolvimento de restaurantes da região em actividades de
promoção da gastronomia local, publicações (edições do Turismo do Algarve)[17],
desenvolvimento de programas (Programa Prove Portugal), fóruns (Forum Wine
Tourism Affairs, 2010), provas de vinhos, passaportes turísticos (Passaporte
Turístico Gastronómico do Algarve, prémios (prémio AURUM, 2007 e 2008), entre
muitos outros aspectos.
Paralelamente, enquadra-se no reconhecimento da gastronomia enquanto
Património Cultural de Portugal[18] . Aliás, esse reconhecimento está também
associado ao facto de Portugal ser apontado por quatro dos nossos mercados
emissores de turistas (França, Itália, Espanha e Holanda) como o 3º melhor
destino de Gastronomia e Vinhos, segundo os consumidores[19] (Inquérito aos
consumidores nos principais mercados europeus, 2006). Estes resultados são
tanto mais importantes se retivermos que entre os principais mercados
turísticos do Algarve se distinguem o Reino Unido, Holanda e Alemanha.
Também no que se refere ao turista nacional que visita o Algarve (o 2º mercado
do Algarve), um estudo do Turismo do Algarve (2009a), em alinhamento com o
plano regional, propõe uma estratégia assente em oito eixos e faz referência a
projectos com implementação em sete áreas distintas, entre as quais a de
animação, eventos e conteúdos, onde destaca o desenvolvimento de um programa
de eventos equilibrado e desenvolvimento de experiências marcantes (conteúdos,
gastronomia). Para enriquecer a experiência do turista temos a gastronomia
(dar visibilidade à riqueza gastronómica do Algarve como um evento de
prestígio) e cultura (dinamizar rotas temáticas: rotas de cidades velhas;
aldeias típicas, fortes e castelos, as quais se podem compatibilizar com a
valorização da gastronomia tradicional).
3. Objectivos e metodologia
O objectivo geral do presente estudo assenta na averiguação da receptividade
face à gastronomia (e nomeadamente à cozinha) do Algarve, enquanto património
intangível com valências turísticas, por parte dos gestores/proprietários de
restaurantes, localizados em marinas e portos de recreio nos concelhos da
região.
No respeitante ao turismo, a investigação pretende pôr em evidência aspectos
paradoxais, enfatizando que se por um lado a oferta de gastronomia tradicional
algarvia é valorizada, por outro é condicionada pelas preferências dos turistas
e seu comportamento sócio-cultural.
Neste contexto, os objectivos específicos do estudo são:
· Determinar em que medida os restaurantes localizados em
marinas e portos de recreio oferecem pratos tradicionais algarvios;
· Averiguar a receptividade dos gestores/proprietários dos
restaurantes (óptica da oferta) para providenciar este tipo de
pratos;
· Percepcionar potencialidades e condicionalismos associados
à oferta de pratos tradicionais algarvios por parte dos restaurantes
referidos.
Estes objectivos assentam na hipótese de que o grupo alvo ' gestores/
proprietários de restaurantes localizados nas marinas e portos de recreio '
podem actuar como mediadores culturais na promoção/divulgação da gastronomia
do Algarve e consequentemente deter um papel no desenvolvimento de políticas no
domínio sócio-económico e cultural da região.
Para se atingir os objectivos propostos consideraram-se os restaurantes
localizados em marinas e portos de recreio, sob o pressuposto de que constituem
infra-estruturas integradas no designado cluster do mar Algarve (CCDRAlg,
2008: 119) e associadas ao produto turístico algarvio (sol e mar, náutica,
cruzeiros, eventos, subaquático) bem como à cultura, onde se inclui a
gastronomia.
As marinas e portos de recreio considerados (num total de 11 instalações de
suporte à naútica) foram: Marina de Lagos, Marina de Portimão, Marina de
Albufeira, Marina de Vilamoura, Porto de Recreio de Olhão e Porto de Recreio de
Vila Real de Santo António. O número de postos de amarração destes seis
equipamentos, em 2009, é respectivamente 465, 620, 475, 953, 246 e 347[20],
perfazendo 3106 e representando 76% (no total de 4081 postos do Algarve), com
perspectivas de crescimento de se atingir os 5000 postos em 2012 (Perna et al.,
2008: 21 e 28). Os restaurantes alvo de estudo localizam-se em concelhos do
Algarve com relevante número de dormidas e de intensidade turística[21],
nomeadamente Lagos, Portimão, Albufeira, Loulé (dados recolhidos em Vilamoura),
Olhão e Vila Real de Santo António[22].
A amostra obtida representa mais de 50% do universo (restaurantes localizados
nas marinas/portos de recreio) e é constituída por 64 restaurantes de todas as
categorias, recorrendo-se a inventários das Câmaras Municipais para determinar
os restaurantes a inquirir[23]. Foram excluídos da amostra os restaurantes de
fast-food, hamburguerias, pizzarias e étnicos. No processo de recolha da
amostra e no sentido de garantir a representatividade da mesma foi tido em
conta o peso de cada marina/porto de recreio no total de restaurantes
existentes no conjunto das 6 marinas/portos de recreio.
Em termos metodológicos, o estudo constitui-se por duas grandes fases assentes
na recolha de dados primários. Uma primeira, onde se efectua a recolha de
ementas dos restaurantes e se estabelece a sua análise, seguida da
identificação dos pratos tradicionais por eles oferecidos. Esta identificação
teve como critério o Guia de Cozinha Regional do Algarve publicado pelo
Turismo do Algarve (TP, 2008). Neste Guia constam 7 sopas, 23 pratos de peixe,
10 de carne e 21 doces. Para a identificação dos pratos tradicionais recorreu-
se ao método análise de conteúdo, ou seja, de acordo com Neuendorf (2002: 1),
a uma análise sistemática, objectiva e quantitativa da característica das
mensagens.
Uma segunda fase, onde visando determinar a receptividade dos gestores/
proprietários dos restaurantes face à gastronomia regional bem como às
potencialidades e condicionalismos deste tipo de gastronomia, procede-se a um
inquérito por entrevista aos proprietários/gestores dos restaurantes, seguindo-
se a respectiva análise de conteúdo das respostas obtidas.
A recolha de dados primários decorreu durante os anos lectivos de 2008/2009 e
2009/2010, associado à unidade curricular de Economia I e II, da Licenciatura
em Gestão Hoteleira da Escola Superior de Gestão, Hotelaria e Turismo da
Universidade do Algarve, contando com a participação dos alunos inscritos.
No referente às entrevistas, elas foram efectuadas presencialmente pelos alunos
no decurso de 2 anos lectivos. Todos os entrevistados foram informados do guião
bem como dos objectivos que estavam implícitos ao estudo, havendo a preocupação
em não descurar 3 momentos considerados por Ghiglione e Matalon (1993) no que
se refere à concretização deste instrumento metodológico: delimitação do guião
constituído por 9 questões abertas, concretização das entrevistas e tratamento
da informação proveniente das mesmas.
O tratamento da informação assentou nos métodos de análise de conteúdo que,
segundo Quivy (2008) incluem a utilização de técnicas relativamente precisas,
como cálculo de frequências relativas ou das ocorrências dos termos utilizados,
permitindo tratar de forma organizada informações e testemunhos que apresentem
um certo grau de profundidade e complexidade, através do agrupamento dos dados
em categorias e subcategorias.
4. Discussão de resultados
A análise de conteúdo das ementas dos restaurantes integrantes da amostra
revela uma incidência modesta de pratos tradicionais do Algarve, apontando para
cerca de 6%[24]. Existem assimetrias que cabe realçar, ou seja, os portos de
recreio de Olhão e V.R.S.A evidenciam uma incidência respectivamente de 8 e 9%
de registos confrontado com Vilamoura, Albufeira, Portimão e Lagos com valores
entre os 3 e 4%. Esta assimetria corrobora a observação (aquando da recolha de
dados primários) de que os Portos de Recreio no Algarve estão mais vocacionados
para a população residente e são de gestão pública ou associativa enquanto as
Marinas possuem gestão privada e implicam uma componente imobiliária. Dadas
estas características distintivas, observa-se uma maior quantidade de
estabelecimentos de restauração associados a cadeias internacionais de fast-
food ou comida internacional nas imediações das Marinas. O facto conduz a
que no tratamento da informação se tenha agregado as Marinas de Lagos, Portimão
e Albufeira (Grupo: A). A Marina de Vilamoura (B), por ser aquela zona, cujo
número de postos de amarração é o maior (953 postos) é estudada separadamente.
Simultaneamente, é feito o tratamento conjunto dos Portos de Recreio de Olhão e
Vila Real de Santo António (Grupo: C).
Procurando a receptividade dos gestores/proprietários dos restaurantes para
providenciar pratos tradicionais, 3 questões do guião possibilitaram detectar
os pratos tradicionais mais destacados pelo grupo alvo, bem como a
sensibilidade e valorização atribuídas à gastronomia tradicional algarvia e
ainda as dinâmicas públicas e privadas na concepção e implementação de
iniciativas neste domínio.
Os pratos tradicionais mais referidos são as cataplanas, o xarém e as
caldeiradas (Caldeirada à Algarvia). Também existem referências ao arroz de
lingueirão, pratos de marisco(ex. conquilhas à algarvia, amêijoas à
Portimonense), pratos de atum (fundamentalmente em VRSA) (bife de atum, atum
estufado à algarvia, tornedó de atum, barriga de atum, etc), carapaus
alimados e peixe. Os pratos assinalados são fundamentalmente de peixe e
marisco, o que é compreensível atendendo a que as marinas/portos de recreio
estão próximos do mar. Também existe o destaque para a doçaria, nomeadamente D.
Rodrigos e morgados.
Todos os entrevistados foram unânimes em reconhecer a importância da
gastronomia tradicional do Algarve. Essa importância está fundamentalmente
associada ao contributo deste património para o conhecimento da identidade,
tradições, costumes e valores do local/região (28,9%) e ao papel que detém no
marketing/divulgação/promoção da região (21,7%) e no desenvolvimento do
turismo, da economia e da região (13,7%). Contudo, se por um lado, os
entrevistados reconhecem a gastronomia tradicional algarvia como um valor, por
outro, não deixam de assinalar condicionalismos na oferta de pratos
tradicionais, devido à fraca procura e aos preços mais elevados (vide gráfico
1).
Gráfico 1. Considera importante a oferta de gastronomia tradicional numa
região turística como a algarvia? Porquê?.
No respeitante às iniciativas por parte da restauração e de outras entidades
concelhias e regionais que tenham contribuído para a valorização da gastronomia
tradicional algarvia, as respostas são mais generalistas referenciando
Festivais/Feiras/Workshops (31%). Simultaneamente, também cabe realçar que os
entrevistados salientaram a inexistência de iniciativas (18%) e
desconhecimento (10%). Existem ainda os entrevistados que fazem referência a
eventos que ocorrem no seu concelho, por exemplo, os gestores/proprietários de
restaurantes em Olhão tendem a referenciar o Festival do marisco, enquanto os
de VRSA a referenciar o Memorial Gastronómico, Festas das Tapas, Rota do Atum
[25].
Visando percepcionar potencialidades e condicionalismos associados à oferta de
pratos tradicionais, as respostas dos entrevistados deixaram implícito que nas
ementas o número de pratos fica aquém do desejável (incidência da categoria
não na tabela 1).
Tabela 1. Considera que o número de pratos tradicionais oferecidos nas ementas
dos restaurantes é adequado ao desenvolvimento do património gastronómico?
Justifique
_____________________________________________________________________________
|Categorias|_______________Subcategorias________________|A_|B_|_C__|Total|_%__|
| Sim |Adequação entre oferta e procura de pratos|1 |1 | 8 | 10 |15,4|
| |tradicionais________________________________|__|__|____|_____|____|
|__________|Falta_de_interesse_pelos_pratos_tradicionais|4_|4_|_1__|__9__|13,8|
| Não |Desadequação_entre_oferta_e_procura_______|9_|5_|_4__|_18__|27,7|
| |Necessidade de adaptação aos gostos da |7 |4 | 2 | 13 | 20 |
| |clientela___________________________________|__|__|____|_____|____|
| |Necessidade de restaurantes serem |6 |4 | 5 | 15 |23,1|
|__________|competitivos________________________________|__|__|____|_____|____|
Fonte: Autoras
O facto deve-se a um conjunto de condicionalismos que têm sobretudo a ver com a
desadequação entre a oferta e procura (27,7%), ou seja, os gestores/
proprietários referem a existência de uma procura modesta e reduzida[26].
Paralelamente, também salientam que o número pouco expressivo de pratos nas
ementas se deve à necessidade dos restaurantes serem competitivos (23%). Para
o grupo alvo a competitividade exige fundamentalmente preços baixos e pratos de
comida internacional, com o intento da adaptação aos gostos da clientela (20%)
(tabela 1).
Esta necessidade de equilíbrio entre oferta e procura pode associar-se ao facto
do Algarve captar muitos turistas estrangeiros, e como tal estes não estarem
familiarizados com a gastronomia regional/nacional[27].
Esse facto materializa-se num interesse limitado pela gastronomia tradicional
algarvia manifesto no desconhecimento face à existência, designação e
confecção de pratos tradicionais (12,4%), no desinteresse em experimentar
(9,4%) e na desconfiança face a sugestões (7,3%) para provarem novos
sabores, preferindo comida conhecida, rápida e barata (16,1%) (vide tabela
2).
Tabela 2. Os turistas que frequentam o seu restaurante revelam interesse pela
gastronomia tradicional algarvia? Justifique.
______________________________________________________________________________________________________
|Categorias|Subcategorias___________________________________________________________|A_|B|C_|Total|_%__|
| Sim |Vontade_em_experimentar_novos_sabores,_coisas_novas_____________________|9_|5|17|_31__|22,6|
| |Curiosidade em saber como os pratos são confeccionados e seus |0 |1|12| 13 |9,4 |
| |ingredientes____________________________________________________________|__|_|__|_____|____|
| |Interesse_em_saber_como_se_come_________________________________________|1_|1|2_|__4__|2,9_|
| |Interesse_apenas_nos_pratos_mais_divulgados_e_conhecidos________________|5_|6|5_|_16__|11,7|
| |Motivação associada a consulta de guias gastronómicos, conselhos de |1 |4|6 | 11 |8,0 |
|__________|empregados_de_hotel,_taxistas,_moradores,_ ____________________________|__|_|__|_____|____|
| Não |Desconfiança_face_a_sugestões_________________________________________|3_|3|4_|_10__|7,3_|
| |Desinteresse_em_experimentar____________________________________________|6_|4|3_|_13__|9,4_|
| |Apetência_por_comida_conhecida,_rápida_e_barata_(bitoques)____________|10|6|6_|_22__|16,1|
| |Desconhecimento face à existência, designação, confecção de pratos|8 |5|4 | 17 |12,4|
|__________|tradicionais____________________________________________________________|__|_|__|_____|____|
Fonte: Autoras
Contudo, as respostas dos entrevistados também evidenciam potencialidades
relativamente à gastronomia tradicional, uma vez que muitos identificam o
interesse dos turistas em experimentar novos sabores, coisas novas (22,6%), a
sua curiosidade em saber como os pratos são confeccionados e seus
ingredientes (9,4%) e como se come (2,9%). Porém este interesse está muitas
vezes restringido aos pratos mais divulgados e conhecidos (11,7%), o que nos
remete para a importância dos ícones gastronómicos e para as políticas de
marketing dos destinos (tabela 2).
5. Conclusão
O turismo é um agente de mudança e transformação sócio-económica, tecnológica e
cultural indutor de um conjunto de controvérsias que cabe compreender.
Uma dessas controvérsias está patente na relação que se estabelece entre
turismo e gastronomia. De facto, se por um lado, a gastronomia é reconhecida
enquanto património valorizador da identidade do destino e da experiencia
turística, por outro, o turismo (através de terminadas tipologias/segmentos/
motivações/comportamentos de turistas) pode comprometer a identidade
gastronómica, fundamentalmente nas suas dimensões de autenticidade e
simbolização, no contexto de processos de mercantilização/turistificação da
cultura.
No Algarve, existe o reconhecimento a nível do planeamento e gestão turísticos
(PENT) de que a gastronomia tem grande relevância enquanto produto associado a
motivações secundárias e de que propicia conhecimento da identidade, tradição,
valores, raízes. No entanto, detecta-se uma oferta modesta (6%) de pratos
tradicionais nas ementas (no total da oferta de pratos), fundamentalmente
justificada pelo limitado interesse de alguns turistas em conhecer e
experimentar os sabores da tradição gastronómica algarvia.
O estudo de caso desenvolvido nas marinas/portos de recreio evidencia que
gestores/proprietários de restaurantes aí localizados identificam distintos
segmentos comportamentais de turistas. Um ' o neofilico ' interessado na
gastronomia tradicional e receptivo à participação noutra cultura, com turistas
a experimentar novos sabores/gostos, enquanto marca da autenticidade do
destino. Outro segmento ' o neofóbico ' pouco interessado em experimentar
comidas estranhas, diferentes e com ingredientes muitas vezes desconhecidos.
Os turistas de nacionalidade estrangeira têm maior representatividade neste
último segmento, sob o pressuposto de que desejam uma relação mais estreita com
a sua própria cultura (mesmo em termos gastronómicos) do que com a cultura do
outro. Daí que alguns entrevistados destaquem que muitos turistas procuram
comida internacional, fast-food e estabelecimentos com maior orientação para o
turista, ou seja mais adaptados ao paladar do turista e capazes de minorar
eventuais problemas comunicacionais.
Neste contexto, verifica-se que os turistas viajam motivados pela diferença de
outra cultura, mas acabam muitas vezes por se resguardar na sua própria
cultura através de comportamentos neofóbicos. Esses comportamentos reprodutores
da familiaridade, segurança, conforto ontológico de casa, expressos em
termos de consumo, conduzem o destino a adaptar-se à cultura do turista, o que
em última instância pode significar a perda da diferença que estava na origem
do acto turístico.
Confrontando os restaurantes das marinas com os dos portos de recreio tende a
verificar-se ser nas marinas que os neofóbicos têm mais expressão. Ao facto não
é alheio ser também nestes espaços que a intensidade turística é mais elevada e
com maior proporção de estrangeiros. Simultaneamente, são também aqueles onde o
número de restaurantes de comida internacional e fast-food é maior. Quanto aos
portos de recreio de Olhão e VRSA detêm uma maior oferta gastronómica
tradicional algarvia, o que pode ser induzido por se enquadrarem mais
estreitamente com as dinâmicas das cidades que os acolhem, captando um maior
peso relativo de residentes e turistas nacionais.