Gestão em saúde, uma perspectiva ergológica: com quantos gestos se faz uma
gestão
RESUMO DE TESE
Gestão em saúde, uma perspectiva ergológica: com quantos gestos se faz uma
gestão
Gestión de la salud, una perspectiva "ergológica": cuántos gestos caracterizan
una gestión
Gestion dans le domaine de la santé, une perspective ergologique: combien de
gestes font une gestion
Health management, an ergological perspective: how many gestures to make a
management
Wladimir Ferreira de Souza [1]
[1]Universidade do Estado do Rio de Janeiro(UERJ) Instituto de Psicologia
Departamento de Psicologia Social e Institucional Rua São Francisco Xavier, 524
- 10º andar - Sala 10.006, bloco B Maracanã - Rio de Janeiro - RJ Brasil CEP:
20550-013
souzalandi@uol.com.br
Souza, W. F. (2009). Gestão em saúde, uma perspectiva ergológica: com quantos
gestos se faz uma gestão. Tese de Doutoramento em Psicologia Social, Instituto
de Psicologia, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro
1. INTRODUÇÃO
Na tese de doutoramento aqui apresentada analisou-se uma experiência concreta
de gerenciamento em uma organização da rede pública de saúde no Brasil,
orientada pela démarche ergológica. A tese (Souza, 2009) originou-se da
pesquisa-intervenção realizada de 2005 a 2008 em um Centro Municipal de Saúde
(CMS), localizado em um município do estado do Rio de Janeiro.
A discussão principal deu-se em torno da análise de uma modalidade gestionária,
denominada ergogerenciamento (Souza & Athayde, 2011) - tradução livre do
francês l'ergomanagement (Schwartz & Prévot-Carpentier, 2007). Entende-se
que aí se compreende e se opera o que a ergologia (Schwartz, 2000; 2010a)
denomina gestão das gestões, tendo como operador transversal o ponto de vista
da atividade (Guérin, Laville, Daniellou, Duraffourg & Kerguelen, 2001).
Havia uma peculiaridade naquele lócus de intervenção e análise:
o pesquisador, autor da tese, era também o diretor geral da unidade de saúde.
Desse modo, a pesquisa empreendeu-se conjuntamente com a experiência concreta
de gerenciamento, o que permitiu trazer à tona diversas questões. Essas
questões foram exaustivamente debatidas nas reuniões do grupo de pesquisa;
nos encontros com os trabalhadores, e também durante o estágio doutoral
realizado em 2007 com financiamento da CAPES na Universidade de Aix-Marseille,
sob a orientação de Yves Schwartz.
Entendeu-se que mantido o rigor teórico e metodológico, o desempenho da
atividade de modo híbrido (o pesquisador sendo também o diretor) poderia ser
extremamente favorável, tanto para o aprofundamento da pesquisa-intervenção,
quanto para o encaminhamento mais resolutivo das problemáticas atinentes àquele
local. Apostava-se ainda no profícuo desenvolvimento de uma experiência que se
propunha seguir as vias possíveis para um ergogerenciamento.
Buscou-se explorar, no curso da própria atividade de gerenciamento, pistas que
apontassem em que medida uma perspectiva gestionária - uma gerência ergológica
(ou ergogerenciamento) orientada pela e para a atividade de trabalho -
contribuiria para afirmar a potência de agir dos coletivos e poderia trazer à
tona algumas das reservas de alternativas presentes naquela unidade de saúde.
Algumas conquistas puderam ser vislumbradas em decorrência da experiência de
gerenciamento no CMS, como o incremento do interesse, envolvimento e
participação efetiva dos trabalhadores no processo de construção e manutenção
de um espaço de debate e deliberação coletiva, os Encontros sobre o Trabalho -
EST (Durrive, 2010). Estes decorreram de uma primeira tentativa de organização
dos próprios trabalhadores de um Grupo de Trabalho de Humanização (GTH), que
tinha como objetivo realizar debates e deliberações sobre a humanização da
atenção e da gestão, conforme proposto na Política Nacional de Humanização do
Ministério da Saúde do Brasil.
Embora o CMS constitua-se como uma unidade que goza de referências positivas no
que tange ao atendimento na localidade, essa primeira tentativa de discussão
centrada na "humanização" apresentou limites, advindo no grupo uma demanda de
análise ampliada, incorporando aspectos referentes à organização e às condições
de trabalho. A partir dessa demanda o diretor propôs e foi aceita a
participação dos pesquisadores nas reuniões seguintes, que se constituíram como
EST.
Avalia-se que esse movimento desde o GTH até a sua culminância com os EST teve
repercussões na melhoria de algumas condições de trabalho, de saúde e segurança
dos trabalhadores e em modificações positivas no funcionamento da unidade de
saúde, manifestamente reconhecidas nas conversas e encontros com os
trabalhadores, nas reuniões com clientes/usuários dos serviços e com a
hierarquia (representantes da Secretaria Municipal de Saúde).
2. REFERENCIAIS TEÓRICOS
O prefixo Ergon (do grego) destaca a relevância da atividade, categoria central
para a análise do trabalho em ergologia e em ergonomia da atividade.
A ergologia (Schwartz, 2000; 2010a) pode ser entendida como uma postura, uma
forma de pensar a atividade humana que nos ajuda a entender que trabalhar é
pensar, trabalhar é gerir a atividade, as dramáticas de uso do corpo-si (do ser
humano em sua integralidade). Contribui também para que se intervenha de forma
cuidadosa (com rigor, método e afeto) nas situações de trabalho.
A démarche (perspectiva) ergológica pode ser compreendida como um rastreamento
das situações reais de atividade humana, onde as pessoas vivem e trabalham. "Ir
ao encontro" das atividades humanas, especialmente das atividades de trabalho.
A influência da ergonomia da atividade (Guérin et al., 2001) − abordagem
orientada para uma análise sistêmica da atividade humana no trabalho − deu-se
ao longo de todo o processo de pesquisa-intervenção conduzindo a análise
situada do trabalho. Encontrou-se também uma importante fonte de inspiração na
psicodinâmica do trabalho (Dejours, 1992; 1995; Dejours, Abdoucheli &
Jayet, 1994), a qual norteou a atenção para os recursos da inteligência da
prática e para os sistemas defensivos mobilizados diante dos desafios que
poderiam produzir sofrimento patogênico ou criativo.
Os contributos de outros autores permitiram discutir as possibilidades de
estabelecerem-se naquele local relações não bancárias/ depositárias de saberes
e prescrições no outro (Freire, 1974), de lá construir-se um ambiente de
trabalho "facilitador", possibilitador de suporte ("holding") (Winnicott, 1975)
e tornar-se espaço "matrístico", matriz de desenvolvimentos (Maturana, 2004).
Explorou-se também o debate sobre o modelo da competência presente em Zarifian
(2001).
3. METODOLOGIA
Tendo o ponto de vista da atividade como operador transversal, a opção
metodológica contemplou diferentes inspirações de métodos e técnicas das
ciências do trabalho.
A pesquisa empírica encaminhou-se através do dispositivo que contempla
conversas e Encontros sobre o Trabalho (EST), o que possibilitou confrontar
alguns pontos de vista, alguns modos de trabalhar e de gerir, em busca da
constituição do ponto de vista da atividade (Guérin et al., 2001).
Além dos encontros que foram se dando no cotidiano informal da pesquisa, foram
realizados cinco EST, dos quais participaram profissionais do CMS de diferentes
formações e níveis de escolaridade e os pesquisadores profissionais. Dentre os
pesquisadores estavam o autor da tese, o professor-pesquisador orientador da
tese, outro professor-pesquisador e um auxiliar de pesquisa, graduando em
Psicologia.
Os EST foram realizados no CMS em horário normal de expediente e o critério
para participação foi a adesão voluntária ao convite feito por cartazes ou
pessoalmente, pelos pesquisadores ou por outros trabalhadores. O grupo não era
fixo, podendo receber novos participantes a cada encontro.
4. DISCUSSÃO SOBRE AS VIAS PARA UM (ERGO)GERENCIAMENTO
Destaca-se o "chegar junto" (expressão popular no Brasil) como estratégia
adotada pelo diretor-pesquisador. Esta remete ao dispositivo dinâmico de três
polos - DD3P (Schwartz, 2000; 1996/2004) e suas exigências para a construção de
um espaço dialógico e de confrontação de saberes. O primeiro polo refere-se aos
conceitos, aos saberes sistematizados, organizados, formalizados nas diversas
disciplinas. O segundo polo refere-se à atividade, aos saberes singulares
gerados nas atividades. O terceiro polo, das exigências éticas e epistêmicas é
necessário para que se dê o encontro, o diálogo, o debate, a deliberação, o
reconhecimento das zonas de cultura e incultura recíprocas que envolvem os dois
outros polos.
A direção do CMS procurou assumir uma postura marcada pelo seu caráter situado
e por uma configuração e uma confluência que possibilitam trabalhar junto,
viver junto, "pensar junto", buscando compreender a atividade juntamente com
aqueles (as) com quem se trabalha.
No entanto, foi preciso um longo período, marcado por aproximações e
distanciamentos, por delegação e assunção de responsabilidades, estabelecimento
de condições razoáveis de trabalho, atendimento de algumas reivindicações mais
contundentes (relacionadas às necessidades mais prementes), para que fosse
possível estabelecer autoridade, respeitabilidade e as condições favoráveis
para construir o momento oportuno, as ocasiões em que o encontro com o coletivo
dos trabalhadores e com os usuários pudesse ser demandado e viesse a acontecer.
Considera-se que os questionamentos com os quais se deparou o diretor nesses
encontros agiram como poderosas forças de convocação de novos atores e de novos
questionamentos, possibilitando outros férteis encaminhamentos, contribuindo
para desenvolver e não para emperrar o movimento em vias de ergogerenciamento.
A disponibilidade para a confrontação de ideias, para o debate sinérgico, a
busca de tornar aquele um ambiente facilitador e matrístico contribuiu para um
encaminhamento mais fértil dos recursos da inteligência da prática (Dejours,
1995), para dar visibilidade a ingredientes da competência e a reservas de
alternativas, a estratégias criativas para lidar com as dificuldades
cotidianas, possibilitando encontrar a nobreza da atividade ali presente, o
agir em competência (Schwartz, 1998; 2000; 2010b), o "assumir responsabilidades
e tomar iniciativa" em situações de trabalho (Zarifian, 2001) em um espaço
público de discussão/deliberação coletiva (Dejours, Abdoucheli & Jayet,
1994).
Alguns casos citados a seguir demonstram esse movimento.
Sugeriu-se a um funcionário a sua transferência para o setor de almoxarifado,
um setor que necessitava ser reorganizado. Ele aceitou de imediato e passou a
utilizar os seus ingredientes da competência de modo bastante eficiente e
eficaz, declarando-se bastante satisfeito com a mudança.
Porém, no início, essa mudança gerou algumas reclamações de outros
funcionários, pois com ela passou a haver maior controle sobre a quantidade de
materiais liberados. Posteriormente, nos EST chegou-se à conclusão de que o
maior controle favorecia a todos, pois passaram a ter maior garantia de que
receberiam os materiais de que precisavam, não havendo, mais a necessidade de
fazerem pequenos estoques em cada setor, o que faziam por receio de lhes faltar
material imprescindível às suas atividades.
Outra funcionária que atuava na recepção relatou que utilizava uma estratégia
para lidar com usuários mais exaltados. Nas raras vezes em que não obtinha
sucesso em acalmar a pessoa e conseguir ser ouvida, utilizava outra estratégia
que envolvia o coletivo de trabalhadores do setor: sair de cena e convocar
outro colega para assumir o atendimento.
Esses e outros relatos foram feitos durante os EST corroborando a hipótese de
que contribuiriam para a troca de experiências, para o diálogo sobre a
atividade e para a mudança de ponto de vista de alguns trabalhadores acerca
daquele ambiente de trabalho.
Se nos primeiros EST o CMS foi ressaltado como sujo, feio, desconfortável,
lentificante, no decorrer dos encontros emergiram outras de suas
características, como a sua importância histórica no tratamento das questões da
saúde da população e dos próprios trabalhadores, a qualificação da equipe, o
diálogo e a proximidade com os usuários. Um espaço antes visto como imutável,
adoecedor e que desvalorizava os profissionais teve, por meio dos encontros e
conversas, sua potencialidade realçada pelos próprios trabalhadores e usuários,
tornando-se então um espaço potencial e analítico.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nas experiências analisadas verificou-se a busca de um gerenciamento sensível
às gestões desenvolvidas pelos trabalhadores no curso das ações situadas e ao
ponto de vista dos usuários. Alguns procedimentos, que a princípio pareceriam
óbvios, revelavam de fato uma aposta nas possibilidades de um encaminhamento
conjunto e eficaz do trabalhar e do viver, procurando-se evitar que estes
tomassem um rumo ineficaz, improdutivo, desagregador, adoecedor.
Destaca-se aqui que o debate em torno do ergogerenciamento aponta pistas
importantes para o desenvolvimento do Sistema Único de Saúde no Brasil.
É necessário assumir os riscos e desafios nesse campo, pois, apesar de alguns
possíveis dissabores, também há sabores a desfrutar, há o prazer de descobrir
em cada situação singular um encaminhamento promissor para um trabalhar de
outro modo, transformando e afirmando o trabalho na direção da saúde e da
vitalidade dos humanos.