Recensão crítica do livro de Marcelo Figueiredo: a face oculta do ouro Negro:
trabalho, saúde e segurança na indústria petrolífera offshore da Bacia de
campos (2012, Niterói: Editora da UFF)
RECENSÕES CRÍTICAS DE LIVROS
Recensão crítica do livro de Marcelo Figueiredo: a face oculta do ouro Negro:
trabalho, saúde e segurança na indústria petrolífera offshore da Bacia de
campos (2012, Niterói: Editora da UFF)
Análisis crítico de la obra de Marcelo Figueiredo: la cara oculta del oro
negro: trabajo, salud y seguridad en la industria petrolera offshore de bacia
de campos
Analyse critique de l'ouvrage de Marcelo Figueiredo: la face occulte de l'or
noir: travail, santé et sécurité dans l'industrie pétrolière offshore de la
bacia de campos
Review of the book of Marcelo Figueiredo: the hidden side of the black gold:
work, health and safety in the offshore oil industry in the campos basin
Edith Seligmann-Silva [1][1]
[1]Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo (Docente aposentada)
Avenida Doutor Arnaldo, 455 Cerqueira César, São Paulo - SP Brasil Cep 01246-
904
edisel@uol.com.br
Na competição pela acumulação de capital - feita em nome do crescimento
econômico - a dimensão humana vem sendo esquecida e invisibilizada, submersa
pelas forças que buscam o imediatismo de lucros crescentes. O deslumbramento
despertado pelo brilho da alta tecnologia, por outro lado, concorre para tirar
do foco a complexidade e os limites dos seres humanos que produzem a riqueza -
nas fábricas, nas minas e nas plataformas marítimas de petróleo, locus
produtivo de que trata este livro. Além da dimensão humana, na mesma
irresponsável regressão acionada pela hegemonia da ideologia neoliberal, a
Natureza também vem sendo ferida em seus mais importantes âmbitos e fluxos. O
livro A Face Oculta do Ouro Negro - trabalho, saúde e segurança na indústria
petrolífera offshore da Bacia de Campos, escrito pelo pesquisador brasileiro
Marcelo Figueiredo, e cuja segunda edição encontra-se em vias de ser publicada
pela editora da UFF (Universidade Federal Fluminense), ilumina essa grave
questão.
A extrema clareza com que o autor nos expõe uma temática permeada por múltiplos
entrelaçamentos de fenômenos de diferentes ordens é marcante. Marcelo
Figueiredo introduz o leitor a um amplo acervo de conhecimentos sobre as
interfaces que vinculam gestão da organização do trabalho, saúde e segurança em
sistemas de alta complexidade vinculados aos chamados processos contínuos.
Opera notáveis contextualizações, e incorpora nas análises das transformações
de uma área extremamente técnica a visão sócio-histórica e das mudanças
culturais, contemplando aspectos ergonômicos e processos psicológicos em que
confere atenção especial à subjetividade dos trabalhadores, sem deixar de lado
aspectos de ordem coletiva. É possível identificar que a consciência da
urgência de fixar parâmetros para diretrizes preventivas eficazes está no cerne
dos propósitos que mobilizaram Marcelo para a realização deste livro.
As pesquisas que fundamentaram os conhecimentos e aspectos críticos a respeito
de sistemas de produção contínua de alta complexidade foram realizadas em
diferentes países e as principais conclusões são sintetizadas pelo autor.
Resulta uma leitura esclarecedora que prepara o leitor para, após tomar
conhecimento de alguns aspectos essenciais, acompanhar Marcelo em pesquisa
coordenada por ele e pela professora Denise Alvarez [2] nas plataformas da
Bacia de Campos (situada na região norte do Estado do Rio de Janeiro e de onde
provém cerca de 70% da produção de óleo brasileira). O referencial teórico-
metodológico é multidisciplinar e constitui-se principalmente dos conhecimentos
desenvolvidos pela Ergonomia da Atividade e pela Psicodinâmica do Trabalho,
enriquecidos pela perspectiva ergológica. Nesta visão desenvolvida por Yves
Schwartz, os saberes científicos e os gerados pelas experiências dos
trabalhadores se nutrem reciprocamente.
Todavia, Marcelo também revê importantes aspectos biopsicossocias associados
aos reflexos do trabalho adotado nas plataformas marítimas de petróleo - o
regime de turnos alternados, por exemplo, assinalando as repercussões daí
derivadas para a saúde e a vida social que alteram os tempos do organismo e da
sociabilidade - afetando de modo especial o sono e o convívio dos trabalhadores
com os demais. Inclusive durante seus períodos de folga em que o reencontro com
a família sofre influência dessa repercussão.
O autor expõe análises de grandes acidentes, que foram estudados
internacionalmente, detendo-se de modo aprofundado nas catástrofes que
envolveram plataformas da indústria petrolífera. Além dos variados riscos
inerentes à atividade nas plataformas, aos quais todos os seus trabalhadores
estão expostos, tornou-se grave preocupação levar em conta os efeitos externos
- ambientais e populacionais, com danos humanos, bem como à fauna e à flora -
constatados como impacto dos chamados acidentes maiores ou ampliados.
Após rever e comentar as análises destes casos, Marcelo volta-se para o cenário
brasileiro e dedica especial atenção a um significativo retrospecto para depois
mergulhar na exposição do que verificou ao longo de muitos anos de pesquisa
acerca do trabalho em plataformas, em que se mostrou fundamental a interlocução
com trabalhadores que haviam ou não testemunhado acidentes de diferente porte,
inclusive os mais dramáticos.
O autor proporciona uma visão da companhia brasileira Petrobras, em que
aspectos históricos da empresa e características de sua gestão são expostos,
sem perder de vista a importância que o setor petrolífero representa na
economia nacional. No Brasil, a inquietação relacionada ao assunto remonta a
1984 - quando ocorreu um grave acidente com a plataforma de Enchova, no qual 37
petroleiros perderam a vida na Bacia de Campos - e penetra nos anos 2000,
durante os quais o autor desenvolve os achados da pesquisa já citada, sendo
reavivada recentemente pelo desastre ocorrido na costa do Espírito Santo (ES),
em fevereiro de 2015, com o navio plataforma Cidade de São Mateus, no qual 9
trabalhadores vieram a perder suas vidas, além de outros terem sofrido
ferimentos graves. Um capítulo de análise especialmente acurada é dedicado à
explosão da plataforma brasileira P-36, em 2001, que acarretou onze mortes e o
naufrágio daquela unidade.
Nesta direção, cabe não perder de vista que o perigo inerente às atividades -
produzir e processar material altamente inflamável - está imerso em um sistema
sociotécnico complexo, conforme já frisamos. Essa somatória representa elevada
demanda à vida mental de cada um - tanto no que concerne à dimensão cognitiva
quanto à dos afetos (psicoafetiva). Lembrando que a vida mental é indissociável
da social, e, portanto, no caso em foco, inseparável das relações sociais e
interpessoais vividas no cotidiano de trabalho, o que remete a diferentes
modalidades de relações e laços - desde as relações de poder que permeiam a
administração até os vários níveis da gestão, a organização do trabalho e as
comunicações internas, tanto inter-hierárquicas como interpessoais.
Acrescente-se à situação de trabalho complexo, onde existem riscos inerentes e
o perigo deve ser lembrado de modo constante, o peso exercido pelo confinamento
e pelo isolamento, sobre os quais as observações da referida pesquisa são
extremamente significativas.
O pesquisador deixa evidente a importância da liberdade quando aponta para a
imprevisibilidade de certas emergências, na qual ela se torna essencial para
mobilização da inteligência coletiva e a criação de soluções, acompanhadas de
tomadas de decisão com vista à ação imediata. O que, por sua vez, é impedido
quando a autonomia do pensamento sucumbe à rigidez das imposições e controles
da organização do trabalho - emanados da direção e veiculados pelos gestores.
Pois, em tais circunstâncias, em algumas situações abordadas no livro,
verificou-se a paralisia do pensamento e da comunicação em eventos
emergenciais, o que impediu a prontidão das ações e providências para evitar
desastres iminentes.
Em outras palavras, fica bem elucidado pelo autor, a forma pela qual, nos
contextos que engessam pensamento, comunicação e ação, surgem ressonâncias
negativas para a dimensão subjetiva e para a sociabilidade acarretando reflexos
deletérios para a prevenção, que se tornam cruciais e maximizam o perigo nos
momentos de emergência.
Por outro lado, o autor demonstra que a segurança nas atividades em sistemas de
alta complexidade exige que o ambiente seja propício à densidade do trabalho
mental e à qualidade de relacionamentos interpessoais cimentados pela
confiança. Esta confiança é construída ao longo da participação em um coletivo
no qual estejam incorporados o sentido do trabalho e o respeito à vida e
integridade de quem o realiza. Assim, torna-se essencial que os responsáveis
pela administração - direção e gestores - definam situações e formas de
organização do trabalho que favoreçam tal harmonização. Igualmente
indispensável à prevenção, é o diálogo permanente e a participação de todos os
trabalhadores nas definições e escolhas referentes às transformações na
organização do trabalho nestes processos complexos de produção, em que as
interdependências se fazem sentir de modo permanente.
Numerosos estudos já mostraram que inadequações da organização do trabalho
influem de forma decisiva na degradação da saúde mental e dos relacionamentos
humanos - o que leva a prejuízos da comunicação e da cooperação, bem como da
rapidez nas deliberações e acionamento de intervenções nas situações de
emergência. Essa é uma das vias pelas quais essas inadequações assumem papel
relevante e, às vezes, decisivo na deterioração da segurança e na origem de
acidentes. Confrontando as antigas e preconceituosas atitudes de culpabilização
das vitimas em acidentes de trabalho, o autor nos alerta: "o que poderia ser
classificado como irresponsabilidade ou desatenção em relação à segurança,
muitas vezes, revela-se como consequência do desgaste físico e mental
ocasionado pelas condições de trabalho aliado aos conflitos que se exacerbam em
meio à multiplicidade de fatores de risco aí presentes".
Marcelo Figueiredo chama a atenção para o fato de que, nas plataformas
marítimas da Petrobras, os terceirizados estão expostos a maiores riscos de
acidente e morte em uma indústria que, por sua natureza, já configura elevados
riscos para todos os que nela trabalham. Essa vulnerabilidade dos
subcontratados é evidenciada pelas cifras apresentadas. Por exemplo, entre as
309 mortes ocorridas entre 1995 e setembro de 2011 na Petrobrás, 250 foram de
trabalhadores terceirizados. A análise de diferentes peculiaridades da condição
de terceirizado revela, entre outras desvantagens, a que atinge a duração das
folgas - bastante inferior a dos funcionários efetivos. Algo que deveria
interessar aos planejadores e gestores também é colocado em foco pelo autor: a
terceirização e a elevada rotatividade do trabalho subcontratado, além de serem
problemáticos pela sobrecarga de trabalho, falta de aquisição do conhecimento
dos detalhes e variabilidade dos sistemas complexos, são também incompatíveis
com um comprometimento em que o eu profundo esteja realmente "engajado".
Uma consideração do autor, de ordem mais abrangente, merece profunda atenção:
"A gravidade do contexto aqui retratado, embora obscurecida na 'face oculta do
ouro negro', infelizmente, não se configura como exceção ante a condição
degradante que ainda acomete, dia após dia, um segmento expressivo de
trabalhadores no Brasil."
A este alerta, vale acrescentar algo que Marcelo Figueiredo, recentemente,
voltou a enfatizar: "Entende-se que uma alteração substantiva do contexto
vigente, em que inúmeros acidentes graves e fatais continuam a ocorrer, demanda
a instauração de um amplo debate entre os representantes das grandes empresas
que atuam no setor, os sindicatos de trabalhadores e o poder público. Frente à
adversidade do quadro conjuntural, o desafio maior é desenvolver meios e
estratégias para que este debate se traduza em avanços concretos" (Figueiredo,
2015).
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
Figueiredo, M. G. (2015). Trabalho, saúde e ação sindical na atividade
petrolífera offshore da Bacia de Campos (artigo inédito).
COMO REFERENCIAR ESTE ARTIGO?
Seligman-Silva, E. (2015). Recensão crítica do livro de Marcelo Figueiredo: A
face oculta do ouro negro: trabalho, saúde e segurança na indústria petrolífera
offshore da Bacia de Campos (2012, Niterói: Editora da UFF). Laboreal, 11 (1),
103-105. http://dx.doi.org/10.15667/laborealxi0115ess
Manuscrito recebido em: junho/2015
NOTAS
[1] Médica psiquiatra e sanitarista. Pesquisadora na área de Saúde Mental
relacionada ao trabalho desde 1980.
[2] Professora do Departamento e do Programa de Pós-graduação em Engenharia de
Produção/UFF.