Pesquisa comunitária sobre a segurança nas minas e na siderurgia (1962-1966)
TEXTOS HISTÓRICOS
Pesquisa comunitária sobre a segurança nas minas e na siderurgia (1962-1966)
Investigación comunitaria sobre la seguridad en las minas y la siderurgia
(1962-1966)
Recherche communautaire sur la sécurité des mines et la sidérurgie (1962-1966)
Community research on the safety in mines and in the steel industry (1962-1966)
A tradução deste artigo para português foi realizada por João Viana Jorge
(…)
B. CONCEÇÃO GERAL DE ACIDENTE NESTAS PESQUISAS
Subjaz comummente ao conjunto destas pesquisas uma conceção geral de acidente
da qual alguns traços serão relembrados.
1) Não existe em geral uma «causa» única de um acidente. O princípio, oriundo
de numerosos estudos retomados nas introduções de certos relatórios é
vigorosamente afirmado num relatório belga: «de ora em diante admite-se que um
acidente não é nunca o resultado de uma única causa, mas de diversos
determinantes traumatogénicos que concorrem simultaneamente para o acidente;
trata-se duma ação conjugada de fatores e não apenas o efeito de um só fator
tal como um movimento, uma insuficiente destreza, uma atitude ou um determinado
sinal.» Em particular, como acentua um relatório italiano, reduzir a causa à
predisposição individual constitui uma hipótese insuficiente. Um relatório
holandês contém também numerosas reflexões sobre este problema. Sublinha além
disso que a pesquisa das causas é finalmente ilimitada: «em redor do núcleo
central (do acidente) agrupam-se, em camadas sucessivamente mais alargadas, as
causas e as determinantes do acontecimento» e «a extensão do campo de
determinantes que no fim de contas provoca o acidente, é absolutamente
ilimitada».
2) As «causas» não são, em geral, nem independentes nem isoláveis. Existem
entre elas interações múltiplas e por essa razão prefere-se falar de fatores
intervenientes na génese dos acidentes do que de causas, não sendo, muito
frequentemente, suficiente um fator único para desencadear o acidente. Estes
reparos desaprovam nomeadamente as classificações dos acidentes segundo as suas
«causas» humanas ou materiais. Como acentua ainda um relatório belga é a
própria interdependência dos fatores que deverá constituir o objeto de estudo.
Um relatório holandês insiste também muito neste ponto a propósito dos
comportamentos apresentando riscos, quer dizer suscetíveis de conduzir a um
acidente. Para assinalar devidamente a multiplicidade e a interdependência dos
fatores que determinam esses comportamentos, faz-se apelo à noção de situação,
sendo esta definida como a resultante da interação de elementos relativos à
pessoa e suas envolventes.
3) Estas «causas» ou fatores, que antes foram mencionados, definem um certo
estado da empresa ou de uma parte dela num momento determinado. O acidente não
faz então mais do que expressar esse estado, reenvia-nos para ele. Estudar o
acidente será então estudar a rede de fatores (ou sistemas ou situações) no
interior da qual se processa o seu desencadeamento.
Resultam daí duas consequências importantes:
- Por analogia com o conceito médico da patologia do organismo, deveremos
considerar o acidente como sintoma. Este deve ser interpretado com referência
ao estado global do organismo; é o revelador de um mau estado de funcionamento
deste último. O acidente é não só um facto patológico em si mas também a
expressão do carácter «patológico» do sistema. Ora, tal como um tratamento
eficaz não pode isolar o sintoma da síndrome da qual não é senão parte, o
acidente não poderá ser compreendido e tratado senão em referência ao estado do
sistema no interior do qual se produz. Os acidentes formam, com os outros tipos
de incidentes, uma patologia das situações de trabalho cujo conteúdo concreto é
também tão variado quanto o da patologia médica.
- O acidente não é o único revelador do carácter «patológico» do funcionamento
do sistema. Constitui um sinal particular relativo à componente humana desse
sistema já que a sua integridade é atingida. Mas existem evidentemente muitos
outros índices que permitirão diagnosticar as inadaptações do sistema. O
acidente pode ser considerado como o termo de um processo e os critérios de
segurança são detetáveis a distâncias maiores ou menores desse termo. Indicando
somente três momentos característicos desse processo, teríamos em primeiro
lugar os desfasamentos no funcionamento normal do homem e da máquina
(comportamentos perigosos, defeitos de funcionamento); esses seriam suscetíveis
de desencadear incidentes, definíveis como roturas não desejadas e observáveis
do processo de trabalho. Os acidentes resultariam não necessariamente mas com
alguma probabilidade, desses incidentes.
4) Estendendo o estudo dos acidentes aos incidentes e aos comportamentos
perigosos pode assim ultrapassar-se uma limitação importante para as pesquisas
sobre segurança, a saber, a (feliz!) raridade dos acidentes. Além disso,
remetendo o estudo do acidente para o sistema no interior do qual ele gerado,
será mais fácil explorar os resultados com objetivos de prevenção.
Este modo de pensar encontra-se em todas as pesquisas, todavia com algumas
variantes. Assim, nas pesquisas belga e francesa do grupo «minas» a tendência a
alargar o campo de estudo do fenómeno acidente conduz a designar como acidente
«todo o acontecimento precedido de uma fase de disfuncionamento do sistema
estudado e arrastando a paragem de uma ou mais células da organização». O termo
célula é evidentemente sugerido pela aproximação, já mencionada, entre a
estrutura dinâmica do sistema e a de um organismo vivo. Permite designar
qualquer elemento, humano ou material, que assuma uma função prevista no
sistema de produção (operários, equipas, ferramentas, máquinas, etc.).
Nesta ótica, observa-se que o ferimento de um trabalhador (o acidente no
sentido usual) sobrevém frequentemente no final de uma sucessão de paragens de
células (os acidentes em sentido lato), podendo ou não uma paragem ser seguida
de uma tentativa de recuperação destinada a recolocar a célula atingida em
condições de funcionar normalmente. O processo que leva de um primeiro
disfuncionamento do sistema ao abalo corporal de um indivíduo, passando por um
número variável de acontecimentos intermediários, é chamado uma cadeia de
acidentes da qual um exemplo é dado na figura_1.
C. ESCOLHA DO CRITÉRIO DE SEGURANÇA
Se a escolha do critério de segurança foi alargada a partir da conceção acabada
de expor não é por isso que se tornou mais facilitada. Constituindo os
acidentes registados o critério mais imediatamente disponível, a eles se faz
frequentemente apelo. E em muitos casos a empresa dispunha de abundante
informação sobre os acidentes ocorridos. Na fase do diagnóstico a sua
exploração pôde fornecer indicações úteis para o desenvolvimento da pesquisa
conforme testemunho, por exemplo, da pesquisa francesa. Um outro critério
adotado em múltiplas pesquisas foi o desfasamento entre o comportamento do
operário no trabalho e a norma definida pela empresa. Foi então avançada a
hipótese de que um comportamento não conforme à norma não podia senão
apresentar um grau de segurança inferior (ou, no máximo, equivalente) ao do
recomendado (pela norma). Pode-se constatar, lendo os relatórios, que esta
hipótese se impõe frequentemente como evidente. Os incidentes e a sua análise
foram igualmente utilizados em certos casos para caracterizar as inadaptações
do sistema ligadas à segurança. O problema do próprio critério foi diretamente
abordado pela equipa alemã que procurou uma medida objetiva do comportamento
perigoso e pela equipa italiana que propôs e utilizou um índice permitindo
combinar várias categorias de critérios independentes.
(…)
D. ESCOLHA DOS SISTEMAS DE REFERÊNCIA
Uma empresa, ou uma unidade operacional pode ser estudada sob muito diferentes
pontos de vista. Diferentes conjuntos ou sistemas de variáveis podem com efeito
caracterizá-la: variáveis respeitantes ao trabalhador (idade, carácter,
potencialidades físicas e intelectuais, etc.), o grupo (coesão, satisfação,
atitude face ao chefe, etc.), o material (dispositivos de sinalização, de
comando, rapidez, atravancamento), as instalações, etc.
(…)
Um primeiro modo de caracterizar as pesquisas que serão apresentadas neste
relatório será o de definir as categorias de variáveis que tomam em
consideração, isto é o sistema de referência. A escolha de um sistema de
referência foi determinada pela análise prévia do trabalho da unidade e pelos
resultados oriundos de pesquisas anteriores, nomeadamente das do programa-
quadro «Fatores humanos - Segurança» [1]. O diagnóstico consecutivo a uma
primeira análise do trabalho desempenhou frequentemente um papel fundamental na
determinação das variáveis mais essenciais na segurança, aliás a pesquisa
francesa oferece múltiplos exemplos.
(…)
1) O sistema caracterizado pelas variáveis do grupo e pelas das instalações
Este sistema reúne as variáveis que são geralmente consideradas nos estudos da
organização do trabalho. Procura-se neste caso caracterizar as interações entre
os sistemas homem-máquina ou entre conjuntos de tais sistemas. Os acidentes são
então relacionados com perturbações da organização, quer dizer a uma má
coordenação dos sistemas elementares.
2) O sistema constituído pelos grupos de trabalho
Nesta categoria de pesquisa a tónica é colocada nas interações das variáveis
que caracterizam o grupo (coesão, pressão social, antiguidade, efetivos, etc.).
Tenta-se evidenciar a ligação existente entre tais características e os
comportamentos dos membros do grupo que tenham incidência no surgimento dos
acidentes
3) O sistema homem-máquina
O sistema foi tomado como referência cada vez que o diagnóstico faz aparecer
inadaptações do material. A tónica é aqui colocada nas interações entre o homem
e a máquina (figura_3). O acidente será então interpretado em termos de
perturbações nas comunicações recíprocas entre o homem e a máquina.
4) O sistema caracterizado pelas variáveis individuais
Deste sistema constam as variáveis adequadas à definição do indivíduo:
motivação, atitudes, traços de carácter, capacidades motoras e intelectuais,
etc. O acidente será então considerado como sendo fundamentalmente a resultante
do comportamento individual.
Este primeiro modo de classificar as pesquisas acaba finalmente por as
categorizar de acordo com o seu conteúdo, quer dizer de acordo com as variáveis
ou categorias de variáveis consideradas. Como observa uma equipa italiana no
seu relatório, que esboça uma classificação do mesmo género, essas diferentes
«orientações são válidas e nenhuma delas leva logicamente a melhor sobre as
outras visto que partem de pontos de vista diferentes». A sua justificação não
pode ser interna, apenas externa, quer dizer relativa ao valor explicativo do
sistema escolhido no que respeita à segurança. Este valor não pode ser
apreciado senão por referência a critérios que exprimam o nível de segurança
(acidentes, incidentes, comportamentos de risco).
E. ESCOLHA DOS MÉTODOS DE PESQUISA
Um segundo modo de apresentar as pesquisas e de evidenciar as suas
características é o de referir os métodos que implementaram. Esses métodos não
são totalmente independentes do quadro de referência escolhido porque,
praticamente, a escolha de um determinado sistema de variáveis implica uma
preferência por determinadas categorias de métodos. Por outro lado, elas não se
excluem e devem mesmo ser utilizadas em conjunto.
Podem distinguir-se três categorias principais:
1) O método clínico
Este método consiste, no caso presente, em analisar casos específicos de
acidentes, de incidentes ou de comportamentos de risco de modo a pôr em
evidência as configurações das variáveis pertencentes à sua génese. Este método
foi usado nomeadamente numa pesquisa holandesa sob a forma de «análises
descritivas de acontecimentos concretos». Trata-se, para empregar os termos
desse relatório, de constituir uma espécie de «história natural do acidente e
do comportamento arriscado». Reconstituindo assim o vivenciado do acidente,
explorando as circunstâncias em que apareceu e organizando cuidadosamente a sua
descrição, pode-se esperar descobrir as variáveis importantes e os mecanismos
intervenientes na sua génese.
(…)
Encontram-se igualmente exemplos deste método na pesquisa francesa. Esta
fornece análises detalhadas de alguns acidentes apresentando resumos sob a
forma de modelo de diagnóstico (figura_4)
(…)
Ver-se-á depois que a aplicação deste método permitiu obter resultados
precisos. Forneceu elementos que poderão ser utilmente explorados a seguir na
análise das situações no terreno. Contudo, poder-se-á lamentar que dificuldades
práticas tenham impedido uma validação destes resultados que teria permitido
avaliar o seu campo de aplicação.
2) O método experimental
Sob o seu formato clássico consiste em controlar as variáveis que definem uma
situação e em não fazer variar senão aquelas (variáveis independentes) que se
pretende estudar o seu efeito sobre um dado critério (variável dependente). O
campo de aplicação privilegiado do método experimental é o laboratório mas
também se pode em certos casos aplicá-lo no terreno. A variável critério não
será em todo o caso constituída pelo acidente mas por variáveis intermediárias
tais como os erros, os comportamentos de risco ou determinadas modificações
qualitativas do comportamento.
Encontraremos a utilização deste método em diversas pesquisas, nomeadamente na
alemã que serviu para pôr à prova, em tarefas de laboratório, uma hipótese
sugerida pelos trabalhos da equipa holandesa e por análises de acidentes. Essa
hipótese exprime-se assim: «a interrupção de acções complexas orientadas para
um objectivo preciso modifica o rendimento de actividades motrizes simples,
consecutivas». Esta hipótese geral foi especificada de diversas maneiras e deu
assim lugar a uma série de trabalhos experimentais.
Um exemplo de aplicação no terreno do método experimental é fornecido pelo
relatório francês. Graças à colaboração do pessoal, certas modificações da
situação de trabalho puderam ser levadas a cabo e os seus efeitos no
comportamento dos operários puderam assim ser estudados.
3) O método «estatístico» [2]
Quando se estuda directamente o meio ambiente de trabalho é difícil e
frequentemente impossível controlar as variáveis que nos interessam. Dado isto,
a utilização do método experimental é geralmente limitada. Daí que se seja
levado a construir um modêlo e a pô-lo à prova com os dados recolhidos no
terreno (…).
Foi assim que a equipa italiana desenvolveu um modelo teórico «que engloba nos
riscos dos postos de trabalho não só aqueles que são inerentes à tecnologia mas
também os que relevam da organização da empresa e do comportamento humano no
que respeita à segurança». O método assim esquematizado aparenta-se com os
métodos da pesquisa operacional; requer um estudo detalhado de cada uma das
variáveis e das suas relações integrando essas variáveis num modêlo geral em
que a sua influência no critério de segurança pode ser analisada com precisão.
A teoria dos processos de acontecimentos que se apresentam aleatoriamente,
correntemente denominados processos estocásticos, pode, pelo seu lado, fornecer
«um instrumento válido para examinar a estrutura de um sistema no seu devir».
COMO REFERENCIAR ESTE ARTIGO?
CECA. (1969). Recherche communautaire sur la sécurité des mines et la
sidérurgie (1962-1966). Laboreal, 11 (1), 109-114.
NOTAS
[1] Ver: Les facteurs humains et la sécurité dans les mines et la sidérurgie
(Os fatores humanos e a segurança nas minas e na siderurgia, Resultados das
pesquisas sobre a segurança incentivadas pela Alta Autoridade CECA de 1961 a
1964). Collection d'études de physiologie et de psychologie du travail
(Colecção de estudos de fisiologia e de psicologia do trabalho), nº 2, Service
de publications des Communautés Européennes (Serviço de publicações das
Comunidades Europeias), Luxembourg, 1967.
[2] A expressão «método estatístico» não é aqui inteiramente satisfatória no
sentido em que o emprego da estatística nem é adequado a este método nem sua
única caraterística (…).