O ecrã da (hiper) televisão: novos olhares a partir das emissões dedicadas ao
Euro 2012 na TV portuguesa
Introdução
Toda a construção do olhar é uma construção discursiva. Mas é também uma
remissão a lugares de partida que, por permitirem a partida, prometem sempre a
possibilidade de caminhos novos, vias alternativas. Abrem-se aos lugares da
hipótese.
São as seguintes, as hipóteses que o presente artigo quer explorar: é possível
que os olhares sobre os ecrãs da contemporaneidade estejam, muitas vezes,
contaminados por uma aparente facilidade imediata que a relação entre o
observador e o observado introduz na leitura; é possível que essa contaminação
se transmute em formulação discursiva, logo, política, e se distraia e dilua em
inapercebidos modos de dominação, em especial, de ordem técnica; é possível que
essas dominações, especialmente de ordem técnica, operem a sua própria
ocultação na imediatez luminosa do ecrã. O ecrã que vemos pode não ser, pois, o
ecrã que é.
Cruzando as reflexões que temos vindo a desenvolver em anteriores artigos,
fundadas e enquadradas pelas teorias do dispositivo, com os dados empíricos
recolhidos ao longo do período de execução do projecto de investigação em que o
presente artigo se insere, propomo-nos aprofundar uma distinção conceptual que,
em anteriores abordagens ao ecrã televisivo (a partir dos programas de
informação da televisão generalista e noticiosa portuguesa), já se vinha
evidenciando necessária: as noções, concorrentes e antagónicas, de ecrã
convergente e de ecrã centrípeto.
Ecrãs e participação:o ecrã convergente hipermoderno
Se há, de facto, um discurso recorrente sobre as novas tecnologias da
comunicação e da informação, dele faz certamente parte um refrão discursivo,
intensamente repetitivo, que não cessa de prometer uma acessibilidade
generalizada à informação em circulação global, que comporta em si, e convoca,
a possibilidade de uma nova cidadania de largo espectro social e político,
promotora da realização do que autores como Pierre Lévy (2001) vêm designando a
ciberdemocracia.
Trata-se de uma promessa que, notaremos, se vem renovando a cada nova vaga
tecnologicamente induzida, tendo tomado de assalto a produção discursiva de
esferas públicas tão diversas (e, ao mesmo tempo, tão intercomunicantes) como a
política, a social, a económica ou a académica. Tem-nos surgido renovada nos
discursos sobre a convergência dos media incluindo, concomitantemente, a
formulação conceptual do que designaríamos o ecrã convergente, para o qual
tenderão os ecrãs tecnológicos que quotidianamente utilizamos e com os quais,
de algum modo, interagimos. Entre os quais se conta, obviamente, o ecrã
televisivo.
Indiferente a um constante adiamento das suas efectivas condições de
concretização como ideia de política (Miranda, 1997: 40), esta reiterada
promessa de participação vem-se apresentando à época como palavra-chave da
sociedade(dita) da informação. No seu recorrente uso, como refrão discursivo
que emerge da fraseologia dominante acerca de ecossistemas mediáticos
aceleradamente modificados no sentido da progressiva diluição da fronteira
entre emissores e recetores (ecossistemas postos, assim, em movimento
convergente, pela ação e pelos efeitos conjugados das novas tecnologias da
comunicação e das forças do mercado), a promessa de participação surge como
horizonte desejado de um processo de abertura a novos modos de exercício da
cidadania, que se apresentam invariavelmente decorados pelas promessas de
renovação da própria democracia: o que a participação digital, potenciada pela
libertação da palavra (Lévy, 2003: 56-65), promete, é a nova ágora: uma
comunidade política de indivíduos livres e autónomos, comprometidos
individualmente nessa comunidade, ligados na e pela rede(Castells, 2004: 197).
Diríamos que, transposta e potenciada por uma cultura de convergência (Jenkins,
2006: 256), a participação devém pré-condição essencial à formulação política
do novo sujeito tecnologicamente integrado, capaz de agir a partir da sua
(tele)presença em renovadas micro-esferas públicas, elaborando-se como panos de
fundo uma nova cidadania digital (Rosas, 2010: 117-127) e uma inteligência
coletiva de carácter universalizante (Lévy, 2003: 175-182).
Sucede, porém, que para se verificar, uma tal promessa de participação tem de
convocar e se concretizar nos dispositivos sociotécnicos que a operacionalizam
e esses resumem-se, na conversa contemporânea, àquilo que pretendemos descrever
como o ecrã convergente: um ecrã sociotecnicamente constituído pelas promessas
da convergência tecnológica que, para se concretizarem politicamente, implicam
um processo concomitante de empowermentdo espectador-utilizador, ou seja, um
processo que eleva o utilizador individual à categoria de sujeito político.
Na formulação virtuosa do ecrã convergente é para esse espectador-utilizador
que converge toda a centralidade conceptual do dispositivo1. Trata-se, contudo,
de uma convergência que, na verdade, opera como desfasamento e fragmentação:
dirige-se, antes de mais, à figura do espectador não como cidadão mas como
consumidor, oferecendo-se à individualização espácio-temporal dos usos como
usufruto, ou seja, elaborando o ecrã como dispositivo libidinoso (Loureiro,
2007: 163-172), simultaneamente público e íntimo, que se faz consumir através
da realização do desejo. E é aqui que se revelam as suas contradições
constitutivas. Como pode um dispositivo que, na sua dinâmica convergente,
individualiza e isola, promover o reencontro político da comunidade? Como pode
a satisfação do desejo reverter-se num fazer parte de? Poderá, em tais
condições, o empowerment prometido corresponder ao empowermentefectivamente
alcançado?
A nossa proposta analítica passa por um exame crítico da própria noção de
empowerment e ao modo como se vem impondo à época. De facto, deve observar-se
que na reiterada utilização discursiva do empowerment se está a promover uma
substituição política fundamental: nela, o espectador moderno vem sendo
definitivamente arrumado como sujeito passivo. Do espectador moderno, sujeito
separado do objecto a que é sujeito, já só se espera um fraco participante no
espectáculo, um cidadão diminuído, domado e dominado. O novo sujeito empowered
que supletivamente surge em seu auxílio já não é, pois, esse espectador passivo
e separado, mas aqueloutro sujeito flexível, imersível e mobilizável que,
emergindo da efectualidade quotidiana, ancora nas capacidades e valências aí
adquiridas (e inevitavelmente promovidas pelas tecnologias), a sua
autonomização e, consequentemente, a sua capacidade de intervenção individual
num mundo comum. Este já não é mais o espectador separado do espectáculo, mas
um sujeito novo capaz de intervir e mudar, capacitado para a acção política
transformadora. Trata-se da concretização da moderna promessa de tomada, pelo
indivíduo assim autonomizado, do poder de agir, através da consumação de uma
erótica técnica na qual a vontade de controlo se constitui como o problema
político por excelência (Miranda, 2007: 151). O empowerment promete, pois, a
realização do que Hannah Arendt designa a ilusão do mito popular do homem forte
que, isolado dos outros, deve a sua força ao facto de estar só (Arendt, 2001:
238). Atente-se como o mito se afirma, por exemplo, nas distinções propostas
pelo tecnólogo do MIT e teórico da cultura da convergência, o norte-americano
Henry Jenkins, quando define as relações que opõem a variante quotidiana do
empowered user, o empowered consumer, à versão do consumidor-espectador que o
originou: Se os antigos consumidores eram considerados passivos, os novos
consumidores são activos. Se os antigos consumidores eram previsíveis, imóveis
e obedientes, os novos consumidores são migratórios e demonstram uma cada vez
menor lealdade para com as grandes redes e os media. Se os antigos consumidores
eram indivíduos isolados, os novos consumidores possuem mais conexões sociais.
Se o trabalho dos consumidores de media era silencioso e invisível, os novos
consumidores são agora barulhentos e públicos (Jenkins, 2008: 18-19).
Note-se, ainda, a propósito da prometida tomada do poder de acção pelos
consumidores e utilizadores, o modo como autores profusamente citados como os
já referidos Manuel Castells ou Pierre Lévy descartam totalmente a noção do
espectador nas suas reflexões sobre o que poderíamos designar as novas ágoras
virtuais. Em A Galáxia Internet (original de 2001), o sociólogo da sociedade em
rede distingue apenas entre os produtores-utilizadores, responsáveis pela
realimentação da rede, e os utilizadores-consumidores, que se situam no lado da
recepção (Castells, 2004: 55). É tanto aos primeiros como aos últimos que
Castells lança o controlo dessa ágora pública como o desafio político mais
importante que a Internet apresenta (Castells, 2004: 197). Lévy vai ainda mais
longe naquilo a que tem chamado as utopias realizáveis, escrevendo em
Ciberdemocracia (de 2002) que os cibercidadãos, os internautas com capacidade
de agir na ágora virtual, têm muita coisa a dizer (Lévy, 2003: 57) e que a
Internet é um extraordinário vector de libertação da palavra (Lévy, 2003: 64).
Investidos, pela tecnologia, deste novo poder do discurso global, os
cibercidadãos criariam as condições de acção para concretizar a previsão do
filósofo francês: as ditaduras cairão ao ritmo da expansão da cibercultura
(Lévy, 2004: 65). Verifica-se, assim, nestas formulações, o que afirmamos: ao
proscreverem, pelo esquecimento, o espectador, o que nelas se apresenta é,
invariavelmente, a promessa da potenciação do utilizador e do consumidor,
através das novas tecnologias da informação e da comunicação, com a consequente
elevação da sua capacidade de agir como cidadão. O que daqui emerge,
conceptualmente é, pois, um utilizador-actor ou um consumidor-actor,
apresentados sob o modo do empowerment do user ou do consumer. Ou seja: a
formulação de um ecrã convergente implica um dispositivo centrado, elaborado
mesmo, a partir de um sujeito político autonomizado que já não corresponde à
noção do espectador moderno, separado do espectáculo, tornado passivo pelo
dispositivo espectacular. O novo sujeito, o empowered user ou empowered
consumer produz e comanda, ele mesmo, o espectáculo. Ele é o conteúdo. Ele é o
ponto de convergência do dispositivo. O que terá de ter como consequência o
apagamento do dispositivo técnico separador em nome do dispositivo sociotécnico
integrador.
Televisão e participação: a revelação totalizante do ecrã centrípeto
Apesar de, à superfície, se assumir a aparência de uma evolução no sentido
integrador do espectador-utilizador, elaborado como consumidor, o dispositivo
digital, analogicamente configurado, que elabora socialmente o ecrã televisivo
contemporâneo, mantém um conjunto de características sociotécnicas que só
excepcionalmente o poderão definir como interactivo'2. Será relativamente
incontroversa a noção de que, apesar de toda a panóplia de novas
potencialidades tecnológicas, o zapping síncrono e a possibilidade de
dessincronização decorrente da gravação de programas permanecem como modos
preferenciais de intervenção do receptor sobre os conteúdos programáticos de
som e imagem que lhe chegam (Uricchio, 2004: 171)3. A emissão é ainda fornecida
como fluxo contínuo de conteúdos sobre o qual este receptor-espectador possui,
assim, poucas ou nenhumas possibilidades de intervenção efectiva, limitando-se
a pouco mais do que meros actos de ligação ou desligação. Diríamos, assim, que,
pelo uso do comando à distância e de outras ferramentas técnicas de disrupção
do fluxo, esse espectador-zapper é investido, tecnicamente, de um poder
eufemístico, revelando-se nele a situação paradoxal que, noutra ocasião,
designámos a história incompleta do empowered user' (Lopes & Loureiro,
2011: 207-211)4.
Ou seja, apesar do constante e constantemente afirmado acréscimo de
potencialidades tecnológicas do ecrã televisivo, será ainda demasiado cedo para
que a sociologia dos media possa arrumar em definitivo a teorização proposta na
década de 1970 por Raymond Williams, que define a programação televisiva como
broadcast, precisamente, a partir de noções como sequênciaefluxo (1990: 87-96).
A televisão digital desenvolveu-se certamente como tecnologia mas,
características propriamente digitais, como a interactividade ' que, no limite,
hibridizaria dispositivos dispensando os usos sociais de outros ecrãs além do
televisivo, transformando esse ecrã convergente num horizonte sociotécnico
agenciado pela internet (Negroponte, 1996: 192), produzindo alterações
profundas, tanto na indústria dos conteúdos (Elmer-Dewitt apud Poster, 2000:
39) como na condição passiva de um espectador que deviria um activo utilizador-
produtor', persistem em registar uma apropriação social difusa. Na verdade, a
própria interactividade é, de tal modo, difícil de delimitar e definir, que
autores de referência no estudo dos novos media como Lev Manovich chegam mesmo
a manifestar dúvidas acerca do seu uso conceptual corrente. No limite, como
afirma Manovich, aplicar a interactividade como conceito analítico aos media
fundados na cultura informática não significa mais do que afirmar o mais
básico que há para dizer sobre os computadores(Manovich, 2001: 55).
Continua, assim, por demonstrar uma relação causal entre as intensificadas
potencialidades tecnológicas e uma constantemente prometida mudança profunda
dos usos sociais da televisão, que se daria no sentido da integração totaldo
espectador no dispositivo. A evidência científica tem demonstrado, pelo
contrário, a resiliência da televisão como instituição (Caldwell, 2004: 43) e a
persistência de um modelo de broadcast que se manifesta sob modos mais ou menos
novos (Gripsrud, 2004: 219; Tay & Turner, 2009: 37), o que dificulta a
plausibilidade dos anúncios de uma nova era televisiva, potenciada por um
ambiente de convergência dos media, quando não torna mesmo improváveis as
narrativas recorrentes sobre um inevitável fim da televisão (Caldwell, 2004:
70).
Apesar de considerarem tratar-se de um facto que passa, muitas vezes,
despercebido, os investigadores australianos Jinna Tay e Graeme Turner
constatam a existência de um alinhamento entre algumas narrativas académicas
tecnocentradas e os discursos produzidos pelo mercado sobre os modelos
económicos emergentes da TV (Tay & Turner, 2009: 32). Propondo uma pesquisa
aos conteúdos discursivos e às respectivas relações de origem e sincronicidade,
os autores concluem tratar-se de narrativas com especificidade geográfica, isto
é, não aplicáveis fora do contexto dos países ocidentais. E, mesmo neste
contexto, Tay e Turner consideram de difícil tradução empírica o que descrevem
como um certo wishful thinking produzido académica e economicamente em torno
dos futuros revolucionários da TV' (2009: 57). De facto, poderemos remeter a
estes ambientes cientifico-económicos tecnoentusiasmados a elaboração
discursiva de autores como Amanda D. Lotz que consideram necessária uma revisão
significativa do conceito de fluxo de Raymond Williams, pelo menos, nos termos
em que atribui a outrém, que não o receptor individual, o controlo do fluxo
(Lotz, 2007: 34), propondo a ideia de que as sociedades tecnologicamente
avançadas já se encontram numa era post-network,ao declarar ultrapassadas as
redes tradicionais de televisão (Lotz, 2007: 7-8). Apesar disso, a
investigadora americana reconhece a persistência de dados contraditórios, que
insistem em demonstrar a prevalência de uma audiência relativamente estável nos
programas de prime-time sobre todos os restantes modos de visionamento
televisivo (Lotz, 2007: 22). A proposta de Lotz, de uma era post-network, perde
consistência quando confrontada com o cenário europeu, no qual a emissão
televisiva broadcast significa, não apenas, a resiliência das noções de
sequência e fluxo, mas possui também significado cultural, social,
institucional e político como serviço público 'o que a vem transformando em
tema recorrente de debate público, em torno de noções modernas como a do acesso
universal (Harrisson & Vessels, 2005: 835), e lhe confere uma acentuada
centralidade nas sociedades europeias (Moe, 2008: 221). Asserções, como as do
investigador norueguês Jostein Gripsrud, emergem, assim, como cientificamente
mais rigorosas. A análise demonstrará que estamos ainda numa situação social
que parece remeter para o conjunto de pré-condições para o broadcast, descritas
por Raymond Williams(Gripsrud, 2004: 221). Podemos, pois, afirmar que o
dispositivo televisivo, configurado a partir do broadcast tradicional, apesar
de ter registado evoluções, parece resistir ainda aos continuados anúncios do
seu desaparecimento.
Assim, a questão que se nos coloca é: o que é que estamos, de facto, a ver nos
ecrãs de televisão? Assumindo a tese de um processo evolutivo que mantém, na
origem, o enquadramento conceptual do broadcast, julgamos viável avançar com a
seguinte hipótese: é possível que, como dispositivo, o ecrã televisivo
contemporâneo esteja a compensar uma certa perda de centralidade social,
através de um processo de metamorfose, cuja cinética intrínseca se alimenta de
um magnetismo progressivo. Observado através desse campo de forças, o ecrã de
televisão emerge não como participante sociotécnico de um cenário de
convergência, mas como ecrã centrípeto que atrai, acomoda e combina em si todo
o tipo de recursos espácio-temporais e socio-semióticos, de modo a assegurar a
manutenção da sua posição central nas sociedades contemporâneas.
Não é, no entanto, apenas devido a um carácter simulacional - sendo incapaz de
ser efectivamente interactivo, o ecrã fusional da televisão revela-se, contudo,
capaz de simular a interactividade (Scolari, 2008: 7) -, que nele identificamos
uma gravítica centrípeta. É, igualmente, devido ao facto de ser um ecrã que
mobiliza o seu espectador ou, como defende Jean-Louis Missika (2006: 29), o
convida constantemente a entrar, fazendo com que o espectador sinta que (não
está apenas no, mas) é, efectivamente, o centro. E também porque, tal como já
arguimos noutra ocasião, é um dispositivo que tende a reunir, substituir e
totalizar uma ideia de espaço público (Lopes et al, 2011: 229, 237-238).
Autorizando uma predominância do ego (Loureiro, 2007: 315-338), este ecrã
centrípeto, que mantém o broadcasting no seu núcleo operativo, convoca, assim,
o indivíduo para uma multitude de opções que incluem a possibilidade de
inserção nas referências e representações comunitárias tradicionais,
características de uma televisão de massas que cedo se constituiu como promessa
de sincronicidade e comunhão social, participação democrática e identidade
partilhada (Wolton, 2000: 60-63), além de, obviamente, incluírem também as
possibilidades em que se jogam as promessas modernas de autonomia e emancipação
individuais.
O problema, que no presente trabalho se transforma em hipótese sob nova
inquirição, é que sempre que a pesquisa questiona as promessas de participação,
isto é, as promessas que, pela evolução dos dispositivos técnicos, afirmam a
renovada possibilidade do cidadão, o máximo que tem encontrado é,
invariavelmente, a noção de uma falsa integração (Lopes & Loureiro, 2011b:
149-161): no lugar do cidadão e dos sinais de uma participação autónoma, livre
e democratizante, o ecrã devolve o consumidor, sujeito sujeitado, mero
respondente à audiência estatística, um sujeito eufemisticamente integrado pela
força centrípeta do dispositivo.
Euro 2012: Tabelas e notas
O presente estudo tem como referência um total de 498 emissões informativas,
que foram para o ar na televisão portuguesa entre os dias 8 de Junho e 1 de
Julho de 2012, datas coincidentes com a realização do Euro 2012, o campeonato
da Europa de futebol, disputado na Polónia e na Ucrânia. Neste sentido foram
analisados os canais generalistas (RTP 1, SIC e TVI) e os temáticos de
informação (RTP Informação, SIC Notícias e TVI 2). Em relação aos canais
generalistas, a análise incidiu em todos os espaços de informação emitidos,
excluindo do estudo os blocos de entretenimento. No que diz respeito à
investigação desenvolvida no contexto dos canais temáticos de informação, e
tendo em conta que são canais com emissões informativas contínuas, foram apenas
seleccionados os espaços dedicados ao Euro 2012 mais os fóruns do
telespectador.
Cada uma das 498 emissões informativas estudadas incidiu depois em dois níveis:
* Em primeiro lugar procuramos compreender o espaço que os responsáveis pela
informação televisiva concedem ao telespectador. Neste sentido, procuramos
saber se existem canais abertos para a integração dos telespectadores e
através de que veículos tecnológicos quem está do outro' lado do ecrã tem
acesso à palavra televisiva.
* No segundo ponto da análise o objectivo é estudar a composição do plateau,
através da aplicação das seguintes variáveis: Origem, ocupação profissional,
sexo, mote do convite e ligação ao tema em discussão.
*
A RTP Informação foi o canal que registou um maior número de emissões sujeitas
a análise, somando o total de 130 espaços informativos. A RTP1 contribuiu com
109, seguindo-se a SIC com 74. TVI e SIC Notícias somaram 66 cada. Finalmente,
na TVI24 foram para o ar 53 emissões especialmente dedicadas ao Euro 2012.5
O futebol é alvo de um acompanhamento minucioso por parte dos media e o Euro
2012 ocupou grande parte dos espaços informativos durante o mês de Junho. Para
além dos habituais espaços de informação que foram moldados para seguir a maior
competição desportiva por selecções no velho continente, foram também criados
programas especialmente dedicados a este evento desportivo. A RTP Informação
foi o canal que mais programas emitiu exclusivamente dedicados à competição.
Entre os dias 8 de Junho e 1 de Julho, a estação pública de informação passou
um total de 127 emissões informativas. A SIC Notícias colocou no ar 44 emissões
e a TVI24 26. Entre as generalistas foi possível assistir a 19 emissões na
RTP1, 12 na SIC e três na TVI.6
Entre os programas que mais vezes foram emitidos com o propósito de analisar a
competição desportiva, o destaque vai para o Diário do Euro, com 70 emissões
contabilizadas, que durante o Euro 2012 foi para o ar várias vezes por dia na
RTP Informação. Ainda no canal de notícias da RTP, o programa Antena Aberta:
Euro Selecção, um fórum do telespectador especialmente desenvolvido para o
evento, contabilizou oito emissões.
Em relação às possibilidades de integração dos telespectadores, e tal como é
recorrente em estudos desenvolvidos anteriormente tendo como base este mesmo
projecto de investigação, existem mais programas que não permitem o acesso dos
telespectadores à palavra televisiva. Entre as 498 emissões informativas
analisadas, apenas 86 (82,7%) contemplaram esta possibilidade.
Em relação às estações que permitiram a participação dos telespectadores, foi a
RTP Informação, com 35 emissões, o canal que mais vezes abriu a janela a esta
possibilidade. A TVI24 permitiu a integração dos telespectadores em 27
emissões, seguindo-se a SIC Notícias com 22. Entre as generalistas, apenas na
RTP1, e só em dois casos, é que os telespectadores tiveram a possibilidade de
participar activamente como telespectadores. 7
Quando observamos os programas que permitiram a participação dos
telespectadores em destaque encontra-se o Missão Euro, da RTP Informação, que
em 25 emissões contemplou a participação dos telespectadores. Nesta lista, há
ainda espaço para os fóruns do telespectador, como o Discurso Directo, 23
emissões, na TVI24, e o Opinião Pública, 16 emissões, na SIC Notícias.
Em relação às plataformas de integração dos telespectadores, o importante é
compreender quais as tecnologias utilizadas para dar voz a quem está do outro
lado do ecrã. Estas ferramentas podem ser directas ' como o telefone ' ou
indirectas ' como as redes sociais, os emails ou os sites, onde a mensagem do
telespectador pode ser apresentada durante a emissão. Apesar da evolução
tecnológica verificada, o telefone, que foi utilizado em 59 casos, continua a
ser a plataforma mais vezes usada. As plataformas de acesso através da
internet, como as redes sociais digitais ou os sites dos programas, registaram
51 utilizações, o email, 47, e o rodapé, quatro.
O Antena Aberta: Euro Selecção e o Missão Euro foram os únicos programas
criados exclusivamente para o Euro 2012 que permitiam a integração dos
telespectadores. O primeiro seguia a lógica do fórum do telespectador, com a
possibilidade de participação via telefone. Por seu lado, o Missão Euro, com a
criação de uma página na rede social digital Facebook, desenvolveu um espaço
conduzido pelo jornalista Álvaro Costa, a Janela Digital, onde eram mostrados
comentários e lançadas perguntas feitas pelos telespectadores.
Análise dos convidados
No que diz respeito ao número de convidados em estúdio, nos programas
analisados, é possível verificar um grande equilíbrio entre as emissões
informativas que não apresentaram convidados em estúdio, 262 (53%), e as
emissões com convidados, 236 (47%)
Entre os programas que permitiram a entrada de convidados nos seus plateaux o
número mais comum foi de apenas um convidado, em 119 casos (50,4%). Entre 2 e 5
convidados contabilizaram-se 91 (38,6%) emissões e 26 (11%) com mais de cinco
convidados.
De que se compuseram, então, os plateaux televisivos, cuja base foram os 504
convidados que foram chamados aos estúdios da televisão portuguesa para
comentar o Euro 2012?
O canal que apresentou mais convidados nos seus estúdios foi a RTP Informação
com 195. Ainda nos temáticos de informação, a TVI24 contou com 134 e a SIC
Notícias com 101. Entre as generalistas, a RTP 1 foi a que mais personalidades
chamou a comentar os principais tópicos relacionados com a competição: um total
de 52 convidados. A TVI chamou 18 e a SIC, quatro.8
O primeiro ponto a analisar no perfil dos convidados chamados a estúdio é a sua
ocupação profissional. Nesta perspectiva, constata-se que o domínio está do
lado dos jornalistas, com 308 convidados. Depois dos jornalistas surgem os ex-
futebolistas com 85 chamadas. A presença de um número tão elevado de
personalidades com ligação ao universo futebolístico demonstra o efeito que a
cobertura informativa do Euro 2012 teve na composição dos plateaux televisivos
em Portugal. Apesar de as análises realizadas ao longo do ano demonstrarem que
os convidados ligados ao futebol têm uma presença regular nos estúdios
televisivos, nunca como no mês de Junho este tipo de convidados esteve tantas
vezes presente na TV portuguesa.9
Na análise relativa ao género dos convidados chamados a estúdio, verifica-se
que a presença de mulheres para comentar futebol é quase inexistente. A
supremacia dos homens, com 499 convidados para apenas cinco mulheres, reforça o
facto de o futebol ser um tema mais popular junto do público masculino. Para
além disso, o Euro 2012 foi uma competição masculina e as personalidades de
referência ligadas a este desporto são maioritariamente homens.
Entre as mulheres, a jornalista Cláudia Lopes, da TVI, foi integrada em directo
em quatro ocasiões. Mónica Jorge, que foi treinadora da selecção feminina de
futebol de Portugal e é hoje dirigente na Federação Portuguesa de Futebol, foi
a outra convidada mulher identificada no estudo.
Apesar de o futebol ser um desporto global, os convidados chamados a estúdio
para comentar o Euro 2012 na televisão portuguesa são provenientes apenas de
três grandes zonas geográficas: a Grande Lisboa, com 320 representantes, o
Norte, com 174, e a Europa, com 10. 10
Analisando a distribuição geográfica dos convidados por cada um dos canais que
compõem este estudo, a Grande Lisboa emerge como a região mais representada em
todos os canais, com a excepção da RTP1 e a RTP Informação. Os dois canais do
Estado contaram com um maior número de convidados do Norte de Portugal.
No próximo ponto, o objecto de estudo passa por compreender o mote dos
convidados chamados a estúdio para analisar a actualidade informativa. Aqui, o
objectivo é o de compreendermos se os convidados são actores, caso exerçam uma
influência directa sobre o assunto em questão, ou se são meros observadores
desse mesmo tópico.O único convidado-actor encontrado foi Paulo Bento, que
esteve presente na Grande Entrevista, da RTP1, para fazer o rescaldo da
participação da selecção portuguesa de futebol no Euro 2012.
Outra das variáveis que apresenta grande discrepância é a ligação dos
convidados ao tema para o qual foram convidados a intervir. Neste ponto, o
objectivo era compreender se os convidados possuem habilitações, quer pela sua
formação académica quer pela experiência profissional, para falar sobre o
assunto abordado no programa, neste caso o futebol, ou se, pelo contrário, não
têm conhecimentos para tal.
Todos os convidados analisados tinham ligação ao tema futebol. Para além de
treinadores, jogadores, ex-jogadores e árbitros que possuíam, ou possuíram, uma
ligação profissional, foi encontrado um grande número de jornalistas habituados
a comentar o jogo. Para além disso, os representantes de outras áreas
profissionais que marcaram presença neste estudo são também eles comentadores
de futebol em espaços semanais de debate desportivo.
Para além das equipas de futebol que se defrontaram em campo, a televisão viu
surgir verdadeiras equipas de comentadores, tal o número de convidados
repetidos nos seus plateaux informativos. Neste ponto, faz-se um destaque aos
convidados mais repetidos. Desta forma, destacamos os 11 convidados mais vezes
presentes nos plateaux da televisão portuguesa para comentarem o Euro 2012,
entre os dias 8 de Junho e 1 de Julho de 2012. Entre o grupo dos convidados
mais vezes repetidos conseguimos destacar nove jornalistas e dois antigos
internacionais pela selecção portuguesa de futebol - Pedro Barbosa e Dani.
Conclusões
Em termos meramente empíricos, o presente estudo não nos traz, propriamente,
informação nova. Diríamos, porém, que a informação que nele se recolhe,
confirmando tendências já antes observadas, nos permite afirmar uma certa
resiliência do ecrã televisivo, cujo dispositivo produtivo permanece fundado
nos seus princípios funcionais tradicionais. Notamos que até mesmo as
designações que usamos no estudo se misturam, e acabam por, naturalmente, se
substituir para revelar a sua verdadeira natureza semântica. Falar de
integração do telespectador afigura-se-nos, perante as repetidas evidências
empíricas, como muito mais apropriado do que tratar dessa integração como
participação. Na verdade, uma e outra estão longe de significar o mesmo.
Enquanto a primeira nos remete à noção centrípeta do dispositivo do ecrã, um
ecrã que integra, que chama a si, a segunda está contida na promessa do ecrã
convergente. Não deixa de ser, por isso, sintomático que continuemos a
verificar, estudo após estudo, que existirá, no máximo, e nem sempre, uma
integração do telespectador que não constitui, contudo, qualquer novidade de
monta no desenvolvimento do ecrã televisivo. Ou seja, falamos da possibilidade
de existir, apenas, uma integração. O que significa que nunca poderemos estar a
descrever um ecrã que converge para um novo centro, o seu espectador, mas um
ecrã que continua a funcionar de modo autorreferencial, um dispositivo cujo
controlo se mantém ferreamente detido pela instância produtora. Se é certo que
esta se apaga e oculta, tal como a tecnologia, para transmitir ao espectador a
ilusão de que o canal é seu, não é menos certo que é a instância produtora que
determina, controla e conduz o fluxo de que se continua a fazer a emissão
televisiva.
As mesmas noções surgem-nos confirmadas na segunda parte do estudo empírico no
qual pretendemos colocar a teste a noção do espaço público configurado a partir
da composição dos plateaux. Aqui também se confirmam dados que o projecto de
investigação em que se insere o presente estudo tem vindo a recolher. O espaço
público configurado pelos plateaux televisivos parte, também, muito mais, de
uma noção de integração, conduzida e controlada pela instância de produção, do
que de uma noção de participação relacionada com princípios de
representatividade gerais. O que, como já escrevemos, os afasta de quaisquer
possibilidades de representação do colectivo dos cidadãos, representando apenas
realidades e interesses circunscritos: isto é, compondo um resultado de
rarefacção do espaço público (Lopes & Loureiro, 2011). Se é certo que, pela
especificidade dos programas sobre futebol, não é directamente comparável a
composição destes plateaux aos de programas informativos dedicados ao debate
político e ao debate de assuntos de interesse geral, também não deixa de ser
possível afirmar a identificação de uma rarefacção evidenciada pela reiterada
falha de representação quer de género/sexo quer de proveniência regional dos
convidados.
Diremos, assim, para concluir e clarificar conceptualmente a nossa proposta,
que o ecrã convergente emerge como o dispositivo prometido e elaborado
discursivamente pela cultura da convergência: coloca o espectador no centro do
dispositivo (aquilo a que, em análises anteriores à situação de convergência do
ecrã televisivo, já chamámos a TV do Ego)11, prometendo-lhe a autonomia de
decisão e de participação a partir dessa posição central. Ou seja, o ecrã
convergente funda-se numa promessa de entrega, ao espectador (que, assim
formulado, devém utilizador), do controlo do dispositivo. Mas, conforme temos
vindo a constatar empiricamente, esta promessa não consegue ultrapassar o facto
de elaborar o espectador/utilizador como consumidor, o que o mobiliza já não
como cidadão mas como audiência. Na verdade, no máximo, o dispositivo integra-
o, mobilizando-o, pois, não como sujeito político, mas como mero sujeito
estatístico, índice e valor de mercado. Identifica-se aqui um paradoxo que, na
prática, torna problemática toda a noção de autonomia e de emancipação do
espectador: porque o consumo se elabora sempre da necessidade (existente ou
criada), logo, da elaboração de uma dependência ou do jogo do desejo. De facto,
como consumidores estamos sempre na dependência de. Por isso, a tese que sobra
da reflexão que vimos fazendo é a de que o ecrã convergente só pode emergir
como promessa, sendo o ecrã centrípeto o dispositivo, de facto, em operação.
Porque num dispositivo definido como ecrã centrípeto toda a convergência é
autorreferencial, remete para ele mesmo, mantendo, na prática, o espectador
fora do verdadeiro centro do dispositivo. A distinção conceptual assim
clarificada reforçará, pois, uma das propostas teóricas críticas que temos
vindo a desenvolver: o ecrã televisivo contemporâneo é um dispositivo que, na
verdade, se elabora e reelabora para manter toda a centralidade tecnológica,
social, económica e institucional que alcançou no último meio século.