Desenvolvimento urbano e centralidade metropolitana: Londres hoje, segundo
Peter Hall
EDITORIAL
Desenvolvimento urbano e centralidade metropolitana: Londres hoje, segundo
Peter Hall
Valença, Márcio1
1Departamento de Políticas Públicas da Universidade Federal do Rio Grande do
Norte; marciovalenca10@gmail.com
Escrever este texto não foi uma decisão fácil. Escrevi mas não sei bem como me
sinto e também não sei se o texto traduz a fala cheia de detalhes perspicazes
do grande mestre da geografia urbana, Sir, Professor Peter Hall. Este é apenas
um relato de uma conversa um tanto que informal, de pouco mais de uma hora.
Poucas semanas antes de seu falecimento, tive a boa sorte de, com ele, ter esta
conversa, gravada, uma espécie de entrevista. Queria ouvi-lo acerca de várias
questões, com as quais tenho me debruçado, que dizem respeito ao
desenvolvimento recente das grandes cidades. Nosso encontro aconteceu na hora
do almoço, na segunda-feira, dia 16 de junho de 2014, em um dos cafés da
University College London (UCL). Estando no Centro de Londres, e sendo esta
cidade também central no contexto do desenvolvimento contemporâneo, foi
inevitável que fosse ela o mote da conversa. Não vou reproduzir a entrevista na
forma de uma transcrição literal da voz do entrevistado. Ele, sempre atencioso
e cortês, havia me pedido para não utilizar aquele material bruto, que colhi,
sem que ele, primeiro, o revisasse. Por total negligência minha, não encaminhei
o material para ele em tempo ainda de receber comentários adicionais e sua
aprovação. Assim, o relato que inicio agora refere-se apenas ao material de
interesse mais geral, como compreendido, interpretado, reordenado e editado por
mim.
A entrevista se deu em torno de dois grandes temas - o papel das
políticas sociais, em particular a de habitação, no contexto do neoliberalismo,
e o papel do urbanismo na espetacularização e desenvolvimento das cidades
contemporâneas -, que derivaram em vários outros temas correlatos, ao
longo da conversa. Parece-me, no entanto, que o tema mais central e transversal
a todos os outros tratados é o da importância da terra e do mercado imobiliário
para o desenvolvimento urbano contemporâneo. Há uma crise, sem precedentes, no
sistema de provisão habitacional na Grã-Bretanha. Esta crise afeta mais
intensamente a área de Londres e o Sudeste da ilha, estranhamente as regiões
mais ricas, onde se concentram os investimentos mais produtivos e a
infraestrutura do país. Onde há atividade econômica e emprego, não há
disponibilidade de moradias acessíveis. Hall explica que as questões relativas
ao acesso à terra não são muito bem claras na Grã-Bretanha. Nem sempre se sabe
ao certo quem é o proprietário da terra e o que se deseja fazer com esta. Nem
sempre o que se pode fazer com ela está claro na legislação urbanística. Não é
raro que empreendedores imobiliários prefiram deixar a terra vazia, por pura
especulação ou para pressionar os governos para aprovação de seus projetos, do
que realizar algum investimento produtivo. Os representantes da indústria negam
que mantenham "bancos" de terras à espera de valorização. Não é o
que transparece da realidade concreta, mas, em grande medida, tais práticas
parecem ser consequência da forma de operação do próprio "mercado".
Hall cita como exemplo o caso de Ebbsfleet International Station, localizada na
pequena cidade de Dartford, no condado de Kent, a apenas 17 minutos do Centro
de Londres, por trem. Há 20 anos atrás, quando o Eurostar (que liga Londres a
Paris e Bruxelas) foi inaugurado, havia planos para que o trem fizesse uma
parada no local, o que só veio a acontecer em 2007 (alegadamente, por problemas
técnicos). Dada a proximidade a Londres e sendo tal parada estratégica, foi
planejada a construção de uma "cidade jardim" e de um complexo de
escritórios. A ideia era a de que para lá fossem destinados os backoffices, ou
seja, aqueles espaços de trabalho para serviços de apoio ou funções de rotina
das e para as empresas, que, para baratear custos com aluguéis e outros,
poderiam ficar fora das áreas mais centrais de Londres. São empresas ou seus
escritórios que complementam (e não competem) com as de Londres. O
empreendimento nunca foi realizado e lá permanece uma enorme gleba à espera de
investimento. A empresa proprietária nega que não tenha dado início ao projeto
por especulação e argumenta que tem como característica realizar os seus
empreendimentos em apenas quatro anos, do início, com o planejamento e compra
do terreno, ao fim, com a entrega e venda final ("in and out in four
years"). Muitos podem ter sido os motivos para que este e os demais
empreendimentos planejados para o local não tivessem sido iniciados, como o
atraso da inauguração da estação do Eurostar. Mas é certo que os empreendedores
colocaram muita pressão no governo, argumentando que os montantes necessários
para instalação de infraestruturas era expressivo e só compensaria se, e
quando, os preços dos terrenos subissem. Hall também explica que os backoffices
parecem ter perdido alguma importância na era das comunicações eletrônicas. E
muitos, com a internet, ao invés de buscar novas localizações mais próximas da
capital, foram se situar em cidades do entorno, como Reading e Milton Keynes,
onde também há boa infraestrutura viária e de transportes. Com o passar do
tempo, outra explicação plausível é que os vultosos investimentos subsidiados
realizados em Stratford por ocasião das Olimpíadas de 2012 tornaram aquele
destino mais atrativo do que Dartford. A Olympic Village, agora denominada East
Village, é um enorme empreendimento residencial de alto padrão. Muitas grandes
empresas, como a Transport for London, se transferiram para as proximidades. As
pessoas preferem se localizar em Stratford, que é mais perto ainda do Centro de
Londres e mais bem servida de transporte público (underground, Docklands Light
Train - DLT, ônibus, overground).
Um outro exemplo que é também agravante dos problemas por que passa a capital
no que diz respeito à oferta de moradia adequada e acessível é a produção de
empreendimentos icônicos. Hall diz não compreender bem o processo, mas tal
oferta está relacionada à natureza do mercado imobiliário em algumas áreas da
capital. Fala-se muito - na academia e na mídia - que este mercado
serve a investidores estrangeiros (talvez árabes e chineses), que deixam os
imóveis fechados, sem utilização. Ele questiona, porém, o quanto isso pode ser
verdadeiro. Acha haver um exagero. Quantos imóveis são de fato vendidos para
investidores estrangeiros (alguns, supostamente, com maletas cheias de dinheiro
sujo)? Este mercado de edifícios icônicos, sempre com design de arquitetos do
starsystem, é dominado por edifícios comerciais, corporativos e públicos, além
dos residenciais. E, em muitos projetos, os edifícios nem sempre são fáceis de
alugar, ou porque são muito caros, ou porque não são bons lugares para se
viver, ou por terem problemas estruturais graves. É valorizada mais a aparência
desses edifícios do que a sua função. Assim, o The Shard, mais alto edifício da
Europa, que fica no lado sul do Tâmisa, permanece em muito desocupado, e
também, "dizem", no caríssimo hotel que ocupa vários de seus
andares, pode-se ver o quarto abaixo devido à sua forma piramidal. O Walkie-
Talkie, outro edifício icônico, na City, também teve problemas estruturais, com
sua fachada de vidro refletindo o sol sobre a rua e outras fachadas, elevando
em demasiado a temperatura das superfícies. Acha ele que, talvez, os
"estúpidos" devam ser nós mesmos. Os empreendedores imobiliários
são mais "sabidos" e pode ser que obtenham mais riquezas mantendo
os edifícios parcialmente vazios, uma prática que não é de hoje. Lembra, para
exemplificar, o caso do Centre Point, construído em meados da década de 1960,
na interseção da Oxford Street e Tottenham Court Road, na época o edifício mais
alto da cidade, e que permaneceu parcialmente vazio por anos. No entanto, o
proprietário pôde obter empréstimos vultosos junto aos bancos e entidades
financeiras, tendo o edifício como garantia. A lógica que rege os negócios
imobiliários nem sempre é a mesma que rege outras atividades econômicas ou o
interesse público em geral.
Mas isto não quer dizer que estas diferentes lógicas, em disputa, não impactem
no desenvolvimento urbano. Muitas decisões empresariais, em muito, consideram o
estado do mercado imobiliário na escolha de sua localização. Assim, Hall
explica que, muito estranhamente, as economias de aglomeração do tipo face a
face são mais importantes hoje, na era da informática, dando origem a uma
distribuição nada aleatória de clusters nos centros, ao redor dos centros e no
entorno das grandes cidades, como Londres, Nova Iorque, Los Angeles, São
Francisco e Hong Kong. Isto é muito evidente, digamos, nas 20 principais
cidades do mundo. No entanto, o face a face é mais importante hoje para as
atividades de nível superior do que para as atividades de nível inferior. (Um
aspecto curioso da cultura dos executivos em Londres, por exemplo, é o
prolongado horário de almoço nos pubs e restaurantes da cidade.) Assim, nas
áreas mais centrais, a oferta não atendida de empregos de um certo tipo convive
com o desemprego de muitos. Os clusters, em formação e uma vez formados, fazem
aumentar o custo da terra e dos imóveis. Sobem os aluguéis. A cidade, aqui no
sentido dos poderes públicos por ela responsáveis, tem de se adaptar e
responder a todo este movimento, em muito o produto de decisões das próprias
empresas, acompanhando a dinâmica do mercado. Hall apresenta alguns exemplos em
Londres. Um dos casos interessantes é o da City, o burgo financeiro. Em meados
da década de 1980, com o big bang, ou a desregulação financeira, muitas
empresas (como as de Hedge Funds) se mudaram para burgos vizinhos no chamado
West End, área predominantemente de entretenimento e residencial. Eram pequenas
empresas e assim necessitavam de edifícios menores. Outras empresas também
saíram da City para outras localizações, como as Docklands. A fuga das empresas
desta área tradicional de negócios da cidade deveu-se aos altos custos dos
aluguéis, que subiram com a demanda das novas empresas internacionais que
passaram o operar na City após a desregulação financeira. Até então, sendo a
área mais antiga da cidade, a City era avessa à verticalização e modernização
de seu tecido urbano tradicional. Nos últimos 30 anos, a liberalização
urbanística permitida pela "Corporation" alterou sobremaneira o
burgo. [Segundo informação de Peter Rees, que foi o Chefe de Planejamento da
City, nos últimos 30 anos, e é hoje Professor na UCL, a área de negócios da
City mais do que duplicou, com a demolição e construção de mais e maiores
edifícios.]
Uma ampla área que o setor imobiliário chama de Midtown, que se estende de
King's Cross, engloba o West End, até o South Bank, tem também sofrido
grandes modificações em sua dinâmica econômica e imobiliária. A BBC de Londres,
por exemplo, construiu novas instalações em White City, a oeste, levando todas
as suas operações de rádio e TV para lá. Porém, teve de manter algumas
atividades - como a transmissão dos noticiários - em sua
tradicional localização no West End porque políticos, executivos e outros
potenciais entrevistados passaram a se recusar, mesmo com transporte da BBC, a
se deslocar para o novo complexo. O deslocamento, considerando o trânsito da
capital e a maior distância, resultaria em muita perda de tempo. Também, para a
BBC, não seria interessante realizar entrevistas por telefone: nas palavras de
um conhecido entrevistador, é necessário olhar nos olhos dos políticos para
saber se estão mentindo. Com isso, a BBC manteve as atividades de transmissão
dos noticiários em sua antiga sede no Centro (West End), que sofreu uma ampla
reforma e ampliação. Em outro cluster, nas proximidades de Old Street -
vizinha à City, entre King's Cross e Stratford -, há muitos
pequenos negócios de serviços. De lá, estende-se a área do setor de TMT
(technology, media and telecommunications), que também inclui algumas grandes
empresas, como a Google, que está construindo nova sede em King's Cross,
e a própria BBC, com sua sede ampliada do West End, entre outras.
Londres, destaca Hall, como algumas outras capitais europeias, tem uma
peculiaridade. É o que ele chama de "complete capital", ou seja,
uma capital nacional que concentra o mundo dos negócios, o da política, o da
mídia e o do entretenimento. Londres, desta forma, concentraria - como no
sistema americano, por exemplo -, as funções de Nova Iorque (serviços
financeiros e legais), Washington (governo) e Los Angeles (mídia). Para que
todas essas funções possam ser realizadas num mesmo espaço urbano, é necessário
o desenvolvimento de uma infraestrutura adequada e serviços avançados (cabos de
fibra ótica, transporte público e de cargas sofisticado, formando hubs rápidos,
estruturas de entretenimento, educação e saúde, espaços públicos de qualidade,
além dos serviços e infraestruturas básicas).
O mosaico urbano de Londres [e seus clusters especializados que, muitas vezes,
se sobrepõem espacialmente e, até mesmo, na divisão dos espaços dos edifícios]
assim se desenvolve de acordo com as funções complexas da cidade como centro do
poder político e dos negócios. A capital tem de ser constantemente adaptada,
considerando, inclusive, a internacionalização de sua economia e o papel do
Estado britânico no mundo. Hall fornece uma visão gráfica - feita de
próprio punho, no meu caderno de notas de pesquisa (ver figura_1) -
quanto à dinâmica dos clusters em Londres. Diz não haver uma explicação fácil
para a sua formação, mas argumenta que há, hoje, no Centro e em seu entorno
imediato, o que no passado chamava-se CBD (ou central business district), só
que hoje este está espacialmente mais disperso. Para o planejamento da cidade,
foi estabelecido um novo termo: CAZ (ou central activity zone), definido por
vários espaços, integrados por sistema rápido de transportes (hubs), chamados
de áreas de oportunidade (OAS, ou opportunity areas). Ele cita algumas dessas
áreas (em sentido anti-horário): Paddington, White City, West End (WE),
Battersea, Nine Elms, South Bank (SB), Canary Wharf, Stratford e, fechando o
círculo, King's Cross. Essas áreas têm sido muito bem sucedidas na
atração de negócios. Por exemplo, a nova embaixada dos EUA, já em construção, é
localizada em Nine Elms, a BBC já concluiu seu novo complexo em White City e o
Imperial College (University of London) está construindo um novo campus
(Imperial West) em White City. O CAZ não define uma forma de desenvolvimento
urbano contínuo, mas uma série de desenvolvimentos específicos que, juntos,
formam um mosaico.
Mas não é só isso. Na figura_2, Hall representa o desenvolvimento de algumas
OAS, no entorno da área central de Londres (ou da CAZ), o que ele chama de
outer areas. Há várias destas OAS externas, mas cita os casos de Harrow
(noroeste), Ealing Broadway (oeste) e Croydon (sul) para explicar uma mudança
paradigmática, tanto em relação ao que acontece na CAZ, como em relação às
características que estas localidades (as OAS externas) tinham em décadas
passadas. Antes, esses espaços eram dominados por outras atividades, como os
backoffices(Croydon) e os pequenos serviços e comércio (Ealing Broadway). Estas
localizações formam grandes hubs de transporte público e, mais recentemente,
devido inclusive à sua relativa proximidade ao Centro da cidade, têm servido
para localização de novos empreendimentos residenciais.
Para finalizar, Hall também explica a dinâmica urbana na Grã-Bretanha. Londres,
sua região metropolitana e o Sudeste da Inglaterra contêm um-terço da população
e dos empregos da Grã-Bretanha. No entanto, gera muito mais do que isso em
termos de Produto Interno Bruto porque a economia nessas regiões é muito mais
produtiva do que aquela do resto do Reino Unido. Há uma enorme concentração de
renda em favor de Londres e de seu entorno. Boa parte da economia está
conectada num corredor central de, no máximo, 350 km, de sul a norte. E é
preciso considerar que, com o Eurostar, Londres está a 2 horas de distância de
Paris e de Bruxelas. Toda esta concentração de renda, poder e infraestrutura
coloca uma sombra sobre a competitividade das outras cidades britânicas. Os
planos de conexão da rede rápida de trens com o norte do país falharam. O
próprio Eurostar deveria ter uma conexão com Manchester, nunca executada. O
investimento em educação universitária concentra-se nas principais
universidades, no chamado triângulo dourado (golden triangle), formado por
universidades de Londres, a Universidade de Cambridge e a Universidade de
Oxford. As demais são relegadas ao segundo plano em termos de investimentos
públicos. A discussão atual sobre o desenvolvimento das outras regiões do país
tem de levar essa desigualdade de renda e investimentos públicos e privados em
consideração, mas é também pertinente questionar quantas cidades de
"segunda ordem", como as denomina Hall, poderiam ser desenvolvidas
num contexto de 60 milhões de habitantes. De qualquer forma, Hall enumera as
poucas cidades que mais têm avançado nas últimas décadas: Manchester, é claro,
mas também Leeds e Edimburgo (mais do que Glasgow). Liverpool e Sheffield
tentam, mas têm dificuldades para acompanhar este cenário competitivo.
Birmingham está muito próxima a Londres e se beneficia, de certa forma, dessa
proximidade. Hall pensa que, para melhorar as chances de sucesso, algumas
dessas cidades, como Liverpool, Manchester, Leeds e Sheffield, devem formar um
cluster, desenvolvendo maior conectividade geográfica e política.
A entrevista com Peter Hall cobriu vários outros pontos que, entendo, não são
de interesse geral, por isso não são relatados aqui. Tentei aqui recriar a
análise que ele fez do desenvolvimento urbano recente de Londres, por servir de
referência também para a análise de outras grandes cidades internacionais.
Hall, como poucos outros, deixou um enorme legado intelectual, que deverá
servir de referência para os estudiosos do urbano, em todo o mundo, por muitas
décadas vindouras.