A dieta mediterrânica - a criação de uma cadeia de valor multifuncional: Para
uma nova inteligência territorial no rural tradicional algarvio. Uma abordagem
exploratória
1. Introdução
Vivemos na sociedade da informação e do conhecimento onde as redes inteligentes
e a economia do imaterial desempenham, cada vez mais, um papel decisivo. A
apelação Dieta Mediterrânica, que nos foi atribuída pela UNESCO, não é, ainda,
um conceito funcional e muito menos um quadro de actuação territorial. Todavia,
a apelação "património imaterial da humanidade" encerra um complexo
de evocações, intuições, sentimentos e factos simbólicos que, uma vez
reagrupados em redor dos conceitos de cadeia de valor e economia das redes, nos
pode ajudar a desbravar um caminho muito prometedor para o desenvolvimento de
regiões mais desfavorecidas. Em grande medida, a denominação "património
imaterial" não só inverte a ordem habitual das cadeias de valor,
geralmente de montante para jusante, como nos remete para um "grande
movimento de transição" dos territórios onde a economia das redes
desempenha um papel crucial e onde a combinação entre recursos materiais e
recursos imateriais ocupa um lugar central pela forma como pode recriar uma
cadeia de valor multifuncional. A construção de um território-rede para a Dieta
Mediterrânica inscreve-se neste grande movimento de transição para a
"Sociedade CO".
2. O grande movimento de transição para a "Sociedade CO"
Na sociedade da informação e do conhecimento, a emergência, lenta mas
sustentada, de uma cultura digital e colaborativa é um sinal dos tempos e uma
evidência irrecusável nas sociedades actuais. Ela começa na inovação
tecnológica, passa para as plataformas tecnológicas e redes inteligentes e, em
seguida, para as comunidades online e redes sociais diversas que interagem com
as comunidades offlinee as pessoas concretas que habitam um território em
particular. As obras de vários autores, entre elas, as de Jeremy Rifkin (2001,
2014), Joel de Rosnay (2012, 2010, 2008, 2006, 1995), Gonçalo R. Telles, (2011,
2003), Miguel Altieri (2008, 2004), Paul Virilio (1977), Pierre Bourdieu
(2013), Zygmunt Bauman (2000), Ulrick Beck (1999, 2002, 2009), U. Beck, Anthony
Giddens e Scott Lash (2004), Karl Polanyi (2000, 1944), Michel Certeau (1990),
Mancur Olson (1999), Joan Martinéz Alier (2007), António Covas e Mercês Covas
(2014, 2014a, 2013, 2012, 2011), entre outros, alertam-nos, cada uma a seu
tempo e a seu modo, para os sinais emergentes de uma sociedade mais
"liquida, fluida e reticular". Quer dizer, no seio da sociedade da
informação e do conhecimento, nesse novo caldo de cultura, nasce
progressivamente a "Sociedade Co", um grande movimento societal e
social em redor dos valores do conhecimento, colaboração, comunidade,
comunicação, comunhão, confiança, convivialidade e congratulação. Vejamos,
neste contexto em transição, como se apresentam os candidatos a territórios-
rede (T-R) que queremos construir tendo como pano de fundo a obra Os
territórios-Rede(Covas e Covas, 2014), onde os autores fazem um primeiro
balanço dos requisitos necessários para ser território-rede.
Os territórios são cada vez menos um stock e cada vez mais um fluxo.
Por isso, não devem ser pensados exclusivamente de "dentro para
dentro", como até aqui, mas de "dentro para fora" e de
"fora para dentro". Enquanto fluxos os Territórios-Rede são,
simultaneamente, comunidades online e offline, isto é, o campo das suas
possibilidades está para lá dos seus limites e fronteiras e é esse "campo
de compossibilidade" que define os territórios-rede como espaços de
construção de arranjos colaborativos.
Os territórios parecem sofrer do paradoxo da cooperação entre vizinhos.
O paradoxo da cooperação é visível na baixa interacção/intensidade das redes
convencionais de vizinhança e pode ser descrito desta forma: a cooperação entre
vizinhos e entre interesses semelhantes é mais superficial e corporativa por
comparação com a cooperação dissemelhante ou complementar que é mais intensa e
colaborativa; ora, o Território-Rede, como nós o entendemos, pertence a esta
segunda categoria (Covas e Covas, 2014).
A cooperação social não é um produto virtuoso de circunstâncias especialmente
favoráveis ou uma característica ou atributo dos actores em presença.
A cooperação territorial é mais processo e procedimento do que output e input
no jogo de forças entre grupos sociais para moldar as regras do jogo à sua
vontade; ao interferir directamente na formação dos significados em torno dos
quais se organiza a acção, a regulação do processo de cooperação exige
especiais competências ao actor-rede, o pivotdo território-rede.
A grande questão dos Territórios-Rede é a forma e o processo de ligação entre
recursos tangíveis e recursos intangíveis.
A grande questão já não são as velhas polarizações, dicotomias, binómios,
dualidades, (entre rural e urbano, entre moderno e tradicional, entre cidade e
campo); a grande questão dos T-R é despertar a inteligência colectiva do
território e criar uma economia colaborativa onde as comunidades virtuais
estejam ao serviço da comunidade e da economia reais; estamos a falar do
Paradigma da Iconomia feito de internet, informação, inteligência, inovação,
imaterial e intangível.
No plano metodológico e operativo, os T-R têm a obrigação de conhecer a
distinção entre territórios normativos e territórios cognitivos.
Os territórios, tal como os conhecemos e praticamos, estão muito assentes no
problem-solvinge napolicy, isto é, são mais normativistas; pelo contrário, os
territórios cognitivos assentam mais no problem-saving, ou seja, numa abordagem
assente mais na politics e na polity. Os T-R e o actor-rede que os administra
têm de possuir a sabedoria de uma dosagem apropriada entre factores normativos
e factores cognitivos.
Os T-R serão o instrumento de uma economia criativa e colaborativa com um
suporte avançado na cultura digital.
A "cooperação dissemelhante" de geometria variável promovida pelos
T-R pode mobilizar de forma criativa e colaborativa os recursos imateriais e
intangíveis que valorizam muito o cabaz de produtos de uma região; doravante,
passaremos a ouvir falar mais de sharing economy, crowd economy, peer to peer
production, collaborative commons, territorial networking, moedas criativas e
sociais, internet das coisas, etc.
Estes atributos fazem parte do movimento de transição para a "Sociedade
CO" que, de forma muito esquemática, se apresenta na Figura_1.
Acreditamos que a transição para a "Sociedade CO" é o enquadramento
adequado para o desenvolvimento da Dieta Mediterrânica, em toda a sua densidade
e complexidade, material e imaterial, em especial pelo modo como entende a
formação da cadeia de valor. Com efeito, estamos habituados a cadeias de valor
do tipo "silo", completamente verticalizadas e debaixo de um
complexo de relação de forças que, com frequência, produz externalidades
negativas sobre o ambiente e o território e esmaga margens comerciais já
reduzidas de pequenos produtores. Por isso, a criação de uma cadeia de valor
multifuncional que seja a expressão da utilidade social do respeito interpares,
assente em valores e redes colaborativos e numa economia circular 4R (redução,
reparação, reciclagem e reutilização) de produção conjunta de bens agro-
industriais e serviços ecossistémicos remunerados, é um imperativo de sociedade
e cultura que a Dieta Mediterrânica deverá observar como veremos mais adiante.
3. Dieta Mediterrânica, uma apelação imaterial de prestígio
A Dieta Mediterrânica, recentemente proclamada património imaterial da
humanidade pela UNESCO, foi uma candidatura transnacional de sete países
(Portugal, Espanha, Itália Grécia, Chipre, Croácia e Marrocos) liderada pela
cidade algarvia de Tavira. A aprovação recente desta candidatura em Dezembro de
2013 é uma excelente ocasião para provar a pertinência da construção social de
um território-rede que seja a retaguarda e o suporte territorial desta
prestigiada apelação internacional e que funcione como um laboratório de ensaio
de muitas especificações contidas nesta denominação territorial.
3.1. Dieta Mediterrânica, uma apelação territorial de prestígio.
A Dieta Mediterrânica é uma construção social e cultural milenar. Desde sempre,
o homem mediterrânico necessitou de todo o seu engenho e arte para lutar contra
a escassez de água e alimentos. É deste relacionamento intenso e através desta
aprendizagem constante que se vão modelar os hábitos alimentares dos diferentes
povos desta região. A dieta mediterrânica é, portanto, uma cultura alimentar
adaptada à escassez, é um modo de produção e conservação de alimentos ajustado
a uma natureza hostil, é, finalmente, um modo de viver a vida, pela sua
convivialidade e especial sociabilidade.
No artigo 2º da Convenção da UNESCO sobre património cultural imaterial pode
ler-se:
1. Entende-se por "património cultural imaterial" as
práticas, representações, expressões, conhecimentos e aptidões
- bem como os instrumentos, objectos, artefactos e espaços
culturais que lhes estão associados - que as comunidades, os
grupos e, sendo o caso, os indivíduos reconheçam como fazendo parte
integrante do seu património cultural. Esse património cultural
imaterial, transmitido de geração em geração, é constantemente
recriado pelas comunidades e grupos em função do seu meio, da sua
interacção com a natureza e da sua história, incutindo-lhes um
sentimento de identidade e de continuidade, contribuindo, desse modo,
para a promoção do respeito pela diversidade cultural e pela
criatividade humana. Para os efeitos da presente Convenção, tomar-se-
á em consideração apenas o património cultural imaterial que seja
compatível com os instrumentos internacionais existentes em matéria
de direitos do homem, bem como com as exigências de respeito mútuo
entre comunidades, grupos e indivíduos.
2. O "património cultural imaterial", tal como definido
no número anterior, manifesta-se nomeadamente nos seguintes domínios:
a) Tradições e expressões orais, incluindo a língua como vector do
património cultural imaterial;
b) Artes do espectáculo;
c) Práticas sociais, rituais e eventos festivos;
d) Conhecimentos e práticas relacionadas com a natureza e o universo;
e) Aptidões ligadas ao artesanato tradicional.
3. Entende-se por "salvaguarda" as medidas que visem
assegurar a viabilidade do património cultural imaterial, incluindo a
identificação, documentação, pesquisa, preservação, protecção,
promoção, valorização, transmissão, essencialmente através da
educação formal e não formal, bem como a revitalização dos diferentes
aspectos desse património.
Como se pode observar, as definições da Convenção reportam-se a um conceito de
património imaterial que não se reduz a um mero acto conservacionista. Estamos
a falar de um património imaterial que poderíamos designar de comunitário ou
comunitarista, um património do quotidiano e, como tal, um património dinâmico,
criativo e em permanente mutação. Todavia, esta perspectiva abrangente do
património imaterial levanta sérias questões científicas, técnicas, processuais
e procedimentais que colocarão grandes dificuldades ao trabalho de
intermediação e cooperação da própria UNESCO, em especial, a harmonização
mínima necessária a uma base comum de inventariação e classificação dos bens e
serviços culturais e patrimoniais.
De acordo, ainda, com a decisão da UNESCO de Dezembro de 2013:
A dieta mediterrânica envolve uma série de competências,
conhecimentos, rituais, símbolos e tradições ligadas às colheitas, à
safra, à pesca, à pecuária, à conservação, processamento, confecção
e, em particular, à partilha, à convivialidade e ao consumo dos
alimentos. Comer em conjunto é a base da identidade cultural e da
sobrevivência das comunidades por toda a bacia do Mediterrâneo.
Numa entrevista de Samuel Silva a Pedro Graça, no Jornal Público, em 4/12/2014,
"Alimentação desequilibrada tem impacto negativo no rendimento escolar
dos estudantes" (Graça, 2014), pode ler-se:
… Assim, não é de estranhar a referência constante à recolecção de
produtos silvestres (os caracóis, moluscos, cogumelos), a tradição na
recolha de produtos vegetais selvagens (beldroegas, espargos e
agriões), o estatuto da caça, a existência de uma enorme tradição de
pastoreio para fornecer a proteína animal e o recurso a alimentos
sazonais frescos ou conservados que forneciam a energia necessária
quando faltavam as outras fontes de energia (figos secos, amêndoas,
grão, favas e outras leguminosas, alfarroba, bolotas, etc.) (Graça,
2014).
… Esta constante adaptação à escassez está na origem de uma arte
culinária muito rica que é, afinal, um desafio vegetariano à escassez
de proteína animal. Devido às temperaturas elevadas, a arte culinária
do mediterrâneo utiliza a cozedura com frequência nas sopas,
ensopados, estufados, jardineiras e caldeiradas. Outra forma de
reduzir a contaminação dos frescos e das saladas é através da
utilização frequente de substâncias ácidas como o vinagre, o limão ou
a laranja amarga. Nas bebidas, o vinho, simples ou traçado, tem o
equivalente no chá de hortelã ou de outras ervas aromáticas do sul da
bacia mediterrânica. Nas carnes e no pescado o sal é o conservante.
Nas frutas é a presença do açúcar e do mel que funcionam como
conservante (Graça, 2014).
Estamos na região do Algarve, sede da candidatura à UNESCO através da cidade de
Tavira. Entretanto, o ano 2014 foi considerado o Ano Internacional da
Agricultura Familiar. A associação íntima entre a promoção da Dieta
Mediterrânica e o relançamento da agricultura familiar levanta-nos as seguintes
interrogações:
Como é que a apelação "património imaterial da humanidade",
proveniente de uma organização internacional como a UNESCO, pode aproveitar à
agricultura familiar e promover as pequenas economias locais da região
algarvia?
Como é que as especificações e o plano de salvaguarda desta certificação
internacional podem ajudar a modernizar e a promover a agricultura familiar e
as pequenas economias da região do Algarve sem as segregar ou excluir?
Que estratégias, regional e multilocal, podemos desenhar para levar a cabo a
"grande aliança" entre educação para a saúde alimentar, o
desenvolvimento da agricultura familiar e das pequenas economias locais do
interior e a promoção do património imaterial das suas culturas respectivas?
Como proceder, desde já, para evitar que a erosão do padrão alimentar da dieta
mediterrânica se acentue, que uma apelação internacional de prestígio seja
trocada, com ligeireza, por festivais de culinária mediterrânica, que as
economias locais e a agricultura familiar sejam abandonadas à sua sorte e os
pequenos aglomerados do interior desertificados, que as culturas locais sejam
abastardadas ainda mais dando lugar ao mau gosto e ao kitch mediterrânico para
"turista ver"?
3.2. Dieta Mediterrânica, uma promessa de futuro.
Para lá dos aspectos mais utilitários, produtivos e comerciais, a classificação
de património imaterial da humanidade é, antes de mais, uma promessa de futuro
para uma região, o Algarve, se quisermos, um crédito por conta do que falta
fazer na região se, para tanto, seguirmos o caderno de encargos e
especificações que acompanha a classificação atribuída. A Dieta Mediterrânica
é, digamos, um conceito que atravessa a região em toda a sua extensão, do
património imaterial como representação simbólica até ao património material
como suporte da dieta mediterrânica. É preciso, pois, perceber que não se trata
de duas realidades distintas, mas de duas faces da mesma realidade e que
preservar o património imaterial equivale a conservar e desenvolver o
património material.
Este registo e esta exigência são tanto mais importantes quanto sabemos que, em
nome do progresso económico e social, se observam, com frequência, ocorrências
preocupantes: uma edificação dispersa recorta o território de forma desordenada
e degrada a utilização do capital fundiário; o poder de controlo do capital
imobiliário afecta a conservação e o uso múltiplo do capital natural; uma
intensificação técnica e tecnológica empobrece os atributos biofísicos dos
ecossistemas e do território, ao mesmo tempo que reduz a provisão de serviços
ambientais na região. No final, a crescente velocidade de rotação do capital
financeiro acaba por entrar em rota de colisão com os ritmos de regeneração
própria dos sistemas biofísicos. É preciso que nos preocupemos mais com a
temporalidade das tecnologias porque o planeta não está em condições de ser
indefinidamente reconstituído pelos ritmos que elas impõem.
A Dieta Mediterrânica, como promessa de futuro, é a expressão cultural e
simbólica de um equilíbrio delicado entre a natureza e a actividade humana, que
o tempo porfiou e o homem confiou. No cerne da questão, em nome do progresso e
da tecnologia, teremos a disseminação de monoculturas, a monotonia biofísica e
a redução da diversidade social, as diversas facetas do mesmo problema. A cada
velocidade a sua cultura. Ora, a Dieta Mediterrânica precisa, com alguma
urgência, de um plano de preservação que a proteja dos "riscos
morais" de curto prazo, pois há sempre alguém disposta a sacrificá-la no
altar da hipervelocidade e do consumo indiscriminado.
A Dieta Mediterrânica tem aqui um dos seus maiores desafios. Depois da
biopolítica do século XX feita de limpeza, higiene, rastreabilidade e
certificação, na biopolítica do século XXI a engenharia genética e a
biotecnologia molecular, as terapias genéticas mas, também, os alimentos
nutricêuticos, a bioética e os novos códigos da vida, adquirem uma condição
política elevada. Ao mesmo tempo, a natureza é um imenso campo de
possibilidades de manipulação à nossa disposição. O mundo natural e biológico
torna-se, portanto, um universo cultural, isto é, pode ser produzido e
reproduzido. Cuidado, pois, com a diversidade de biologias de acordo com
diferentes programas de investigação, cuidado, pois, com a domesticação de
plantas e animais, cuidado, pois, com a fabricação da vida por via de
alimentos, fármacos e intervenções de inspiração muito diversa.
Neste contexto, que lugar pode ocupar a Dieta Mediterrânica? Uma presa fácil da
política de velocidade e das tecnologias de substituição, um local de refúgio
para os mais avisados, ou, um estilo de vida e um padrão alimentar geralmente
aceites pela população? Escapará a dieta mediterrânica à política de
normalização do capitalismo actual que visa transformar-nos a todos numa
espécie de "proletários do sistema capitalista em modo
monocultural"?
O capitalismo está, por razões imanentes ao seu funcionamento, obrigado a criar
permanentemente novas oportunidades de negócio. A Dieta Mediterrânica pode
emergir, portanto, como mais uma oportunidade de negócio interessante. Neste
contexto, a dieta mediterrânica pode já estar, sem o saber, em rota de colisão
com o capitalismo regional e internacional. Ela é uma espécie de contracultura
e contra-racionalidade, em luta muito desigual contra o "regime
estabelecido" que, entretanto, aproveita para fazer o elogio público de
"uma nova promessa" de desenvolvimento regional.
A atribuição desta apelação internacional pela UNESCO é, pois, um desafio muito
interessante para a "sociologia política local e regional" e, nesse
sentido, ninguém aprovaria que a dieta mediterrânica fosse conhecida como a
história de uma captura e de uma enorme dissimulação, por mais sucesso e
brilhantismo de que a operação fosse coroada. Resta, então, a possibilidade que
todos aguardam, a saber, a Dieta Mediterrânica como o exemplo eloquente de uma
produção social de qualidade, que melhora o bem-estar material das populações
locais e valoriza o património material em que assenta, justificando, dessa
forma, a apelação internacional que lhe foi concedida. Este é o desafio que
temos pela frente, um desafio para uma nova inteligência territorial no rural
tradicional algarvio.
4. A formação da cadeia de valor multifuncional do território-rede da Dieta
Mediterrânica
Se a dieta mediterrânica, pelo valor potencial que encerra, é uma promessa de
futuro, então a nossa pergunta de partida é a seguinte: como fazer a conversão
de uma "expectativa positiva", a Dieta Mediterrânica, num processo
participativo de sucesso e numa produção social de qualidade e como operar essa
conversão através de uma cadeia de valor que liga um património imaterial da
Humanidade a um património material regional, de tal modo que pode transformar,
de forma relevante, a estrutura económica, social e empresarial de uma
comunidade ou região? (Covas e Covas, 2014: 204).
4.1.Uma produção social de qualidade.
Sabemos que a produção de qualidade não existe em abstracto e duas abordagens
são possíveis. Na primeira, o "mercado sabe" melhor do que ninguém
o que o cliente precisa. Mercado e cliente, duas noções abstractas ao serviço
de uma "ideologia da qualidade". Na segunda, a qualidade é um
atributo que pode ser negociado por sucessivas "convenções ou regras de
procedimento", desde a produção até ao consumo e num processo interactivo e
negocial em que estão implicados diversos actores com estratégias
diferenciadas. O que se pretende é que a qualidade passe a ser o resultado de
um consenso social e de um processo de aprendizagem com implicações políticas e
organizacionais, no sentido em que existem e são reconhecidos diversos modos
alternativos de "produzir socialmente qualidade" (Covas e Covas,
2014: 205).
Sabemos já que a economia de mercado, ela própria, usa inúmeras convenções ou
regras, desde as normas técnicas às marcas e certificações, já para não falar
do próprio mecanismo de preços. Também sabemos que estas regras e procedimentos
convencionais já não são suficientes para assegurar a qualidade e a
tranquilidade dos consumidores. A pergunta que se impõe é a seguinte: pode a
Dieta Mediterrânica estar na origem de uma "economia convencional
emergente", de um "inovador sistema produtivo local", de um
"território-rede de alto valor acrescentado" com base em mercados
de proximidade e circuitos curtos, mas, também, em relações interpessoais e nos
valores e princípios de uma economia solidária e colaborativa? (Covas e Covas,
2014: 205).
Ou, ainda, ao criar uma "contra-racionalidade socio-territorial
protegida" por uma apelação internacional de prestígio, pode a Dieta
Mediterrânica estar na origem de um contra ou alter-movimento local e regional
que alargue o campo de possibilidades do território e estenda a "produção
social de qualidade" para outras áreas de produção e consumo que até aí
estavam quase blindadas pela "ordem local" do capitalismo reinante?
(Covas e Covas, 2014: 205).
A produção e o consumo são sempre localizados e realizados por produtores e
consumidores concretos em algum lugar, o que permite estabelecer convenções ou
procedimentos sempre que a qualidade seja considerada um "bem
comum" repartido e baseado na confiança mútua. Neste sentido, a
"produção social de qualidade" pode ser usada para promover uma
estratégia de desenvolvimento rural, feita de uma pluralidade de agriculturas
com base em produtos tradicionais de alto valor biológico, ecossistémico e
paisagístico. Evidentemente, levamos em conta o arsenal disponível no local
como sejam as indicações geográficas, denominações, marcas colectivas, selos,
etiquetas, de processo e qualidade, que, elas também, podem ser objecto de
negociação e convenção. (Covas e Covas, 2014: 205).
Em síntese, uma "produção social de qualidade" pode e deve ser um
excelente pretexto, não apenas para rever os programas de desenvolvimento,
investigação e extensão agro-rurais, mas, sobretudo, para relançar a economia e
a sociedade locais. A Dieta Mediterrânica é um excelente pretexto para inovar
localmente em matéria de inteligência territorial, por intermédio do
instrumento "economia das convenções", um pacto territorial para
dar à luz um sistema agro-alimentar local e uma cultura simbólica assertiva que
respeitem e valorizem a apelação de prestígio internacional que lhe foi
concedida (Covas e Covas, 2014: 206).
4.2. A formação da cadeia de valor multifuncional.
A formação da cadeia de valor da dieta mediterrânica deverá ocorrer na zona de
interface entre a economia dos agroecossistemas, a montante, a economia do
imaterial e do simbólico, a jusante, e a economia do lazer e da visitação em
vários pontos da cadeia. Na Figura_2 o "silo vertical" próprio das
cadeias agro-industriais convencionais, com produção de externalidades
positivas e negativas em todas as direcções, dá lugar a uma economia circular
de redes inteligentes e colaborativas (bens comuns colaborativos) em que as
externalidades e internalidades são uma "produção conjunta" do
território-rede que estamos a considerar.
A título de exemplo, pensemos na verticalização da cadeia de valor da cabra
algarvia e nas tarefas que essa opção acarreta, sempre numa perspectiva de
valorização das economias locais e dos seus ecossistemas mais sensíveis, lá
onde a cabra algarvia tem o seu nicho ecológico preferido (quem diz cabra diz
mel, medronho, frutos silvestres, pomar tradicional de sequeiro, citrinos,
flores, cogumelos, cortiça, caça, etc.).
No que diz respeito às tarefas a realizar, a verticalização da cadeia de valor
exige:
- Em primeiro lugar, trata-se de reagrupar os produtores da raça autóctone da
cabra algarvia tendo em vista apurar e valorizar a biodiversidade local da
espécie e do seu nicho ecológico;
- Em segundo lugar, trata-se de organizar a assistência técnica, associativa e
pública, nessa linha de abordagem mais agroecológica e ecossistémica;
- Em terceiro lugar, trata-se de rejuvenescer o capital social envolvido, seja
no plano familiar dos produtores, seja convidando "novas entradas"
para o agrupamento;
- Em quarto lugar, trata-se de melhorar o processo de produção, de alargar as
funções da cadeia de valor e de acrescentar as suas internalidades tendo em
vista reduzir os seus custos de transacção internos: raça, pastagem,
biodiversidade, limpeza de matos, compostagem, etc.;
- Em quinto lugar, trata-se de diversificar a linha de produtos finais da cabra
algarvia e de diversificar os mercados-alvo por via de uma comercialização e
marketingmais inteligentes;
- Finalmente, trata-se de capitalizar a fileira de produção e de articular a
cadeia de valor da cabra algarvia com a exploração florestal das zonas de
intervenção florestal (ZIF), acrescentando, por essa via, a massa, o músculo e
o sistema nervoso deste sistema produtivo local regional.
Porém, esta metodologia multissectorial para a verticalização da fileira da
cabra algarvia só será inteiramente bem-sucedida se, ao mesmo tempo, tivermos
em mãos um projecto de território-rede em construção, inspirado nos princípios
de desenvolvimento territorial que sustentam a filosofia da Dieta
Mediterrânica. Nesta segunda linha de actuação, mais circular, estamos a
robustecer a ecosocioeconomia rural e local e a estruturar as áreas de trabalho
que, em si mesmas, constituem o tecido privilegiado para a formação das redes
colaborativas e as amenidades locais:
- O alargamento das áreas da agroecologia e da agricultura biológica;
- O alargamento das actividades criativas e culturais, desde as artes culinária
e gastronómica, à artesania tradicional, os materiais locais e as oficinas de
artes e ofícios;
- A consideração das artes da paisagem e da terra associadas ao turismo de
natureza mas, também, à provisão dos serviços ecossistémicos;
- O desenvolvimento dos produtos e serviços turísticos nas tipologias do
turismo de saúde e bem-estar para a sociedade sénior;
- O desenvolvimento das actividades de ecodesign, associadas à economia verde e
às artes dos 4R, (redução, reparação, reciclagem e reutilização);
- A promoção das artes do lazer e do recreio, dos espaços pedagógicos, lúdicos
e terapêuticos, por exemplo, para a sociedade sénior, onde se incluem os campos
de férias e as residências seniores;
- O desenvolvimento das artes multimédia e performativas e a criação de
residências artísticas e culturais, assim como os eventos ligados à história
local, a literatura oral, a poesia, as paisagens literárias, etc.
Para serem bem-sucedidas, todas estas actividades podem e devem ser objecto de
uma "convenção territorial" que passará a ser a lei fundamental da
construção social do futuro território-rede (Covas e Covas, 2014). Esta
abordagem da cadeia de valor multifuncional exige, porém, uma "ecologia
institucional e comunitária" muito complexa, sobretudo no que diz
respeito à constituição do actor-rede (Covas e Covas, 2014: 179-184).
5. Discussão e Conclusões
Voltamos aqui à emergência dos valores da "Sociedade CO"
inicialmente referidos. Desde logo, no plano local, municipal e intermunicipal.
A este nível, esta nova ecologia institucional das redes inteligentes e
colaborativas faz exigências muito rigorosas. Assim, no futuro próximo, iremos,
muito provavelmente, revisitar o conceito de "poder autárquico" no
sentido de um poder mais lateral e colaborativo, de um par interpares, agindo,
simultaneamente, em comunidades reais, em plataformas digitais, redes sociais e
comunidades online. Esta abertura aumentará o espaço de liberdade e o campo das
possibilidades e soluções do município do século XXI, em direcção à composição
de territórios-rede de geometria mais variável. Teremos, assim, um município
"sem fronteiras" e mais cosmopolita, mais interactivo com os seus
concidadãos, com mais economia verde e economia azul, mais criativo e cultural,
menos fiscalista e mais contratualista no plano financeiro. Em consequência, a
sua organização interna e a sua gestão sofrerão uma "pequena
revolução", não apenas na estrutura orgânico-funcional e na relação entre
o back office e o front office mas, sobretudo, na sua cultura digital e
colaborativa, isto é, na estratégia de informação, comunicação e interacção
face às redes colaborativas de que fará parte e que, doravante, constituirão o
seu novo ecossistema institucional de acolhimento.
No plano do desenvolvimento territorial, esta nova ecologia institucional e
comunitária dos territórios-rede faz, igualmente, muitas exigências. Diz
respeito, em primeiro lugar, à aprendizagem da cultura digital e colaborativa,
logo, à capacitação de comunidades cognitivas de autogoverno e autogestão e de
clubes de produtores e consumidores; diz respeito, também, a mercados
solidários e sociais, à criação de moedas paralelas, à interacção de
comunidades online e offline, à formação de mercados de trabalho para lá dos
"mercados oficiais do emprego", à formação de amenidades em íntima
articulação com a provisão de serviços ecossistémicos, finalmente, à formação
de actividades criativas e culturais a coroar todo o edifício do território-
rede.
Em conclusão, a apelação "Dieta Mediterrânica, património imaterial da
humanidade" afigura-se como uma oportunidade única para realizar o up-
grade da economia local e regional algarvia, em especial a promoção da economia
do barrocal algarvio e da economia serrana. Esta convicção deve, porém, conter
uma expectativa contida e moderada. Para o efeito, a região precisa
urgentemente, no plano da microgeoeconomia territorial e dos territórios-rede,
de levar a cabo um ensaio experimental, uma rede temática e territorial, que
possa lançar as primeiras sementes do que será, no futuro próximo, uma política
de certificação regional da dieta mediterrânica. Este é um desafio de longo
alcance e um bem comum inestimável para o país e a região do Algarve. Os
valores culturais, patrimoniais, naturais e paisagísticos do mundo rural são um
bem público inestimável cuja fragilidade e vulnerabilidade importa contrariar a
todo o custo. A desertificação, as secas prolongadas, os incêndios florestais,
a degradação das reservas naturais de futuro, são uma ferida a céu aberto nos
ecossistemas agro-rurais da região do Algarve. Até que ponto, o sistema
produtivo local e as cadeias de valor da Dieta Mediterrânica poderão contribuir
para mitigar e contrariar os riscos climáticos e ambientais associados a um
despovoamento destes territórios? Fica a interrogação.