Para lá do binarismo? O intersexo como desafio epistemológico e político
Introdução ' Definindo o campo
Em entrevista ao La Vanguardia (Amela, 2008), quando interrogada sobre a sua
identidade de homem ou de mulher, a filósofa Beatriz Preciado respondeu: Essa
pergunta reflete uma ansiosa obsessão ocidental [ ], a de querer reduzir a
verdade do sexo a um binómio. O sistema sexual ocidental, assim como a maioria
dos sistemas no resto do mundo, apenas admite dois sexos, sendo isso aceite
como verdade dogmática e reproduzido pela maioria das pessoas. Mas até que
ponto é esse binarismo válido? E quais são as suas consequências?
Os seres humanos são meticulosamente medidos e regulados, desde o interior ao
exterior, de modo a que ninguém fique fora das reconhecidas categorias homem
e mulher. Contudo, existem pessoas cujas características sexuais primárias ou
secundárias não preenchem os requisitos médicos ou/e sociais passíveis de
integração num desses dois grupos. Por vezes, aquando do nascimento, o sexo
genital pode suscitar dúvidas: o órgão erétil pode ser demasiado grande para um
clitóris normal ou demasiado pequeno para um pénis normal; a genitália pode
ser anatomicamente do sexo feminino, mas os lábios vaginais envolverem
testículos; ou, por outro lado, parecer ter um pénis e apresentar vagina. Mas
não só no nascimento se encontram ambiguidades. O que no início parecia ser
normal, pode revelar posteriormente discrepâncias nos órgãos genitais e/ou
nas características sexuais secundárias.
Às pessoas intersexo ' que desafiam de forma física o binarismo sexual ', o
tratamento hormonal e/ou cirúrgico,1 sem alternativas, é imposto como
necessidade (Fausto-Sterling, 2000a; Dreger, 2003). No fundo, trata-se de uma
violação do corpo2 pelas tecnologias com a pretensão de o normalizar
esteticamente e inseri-lo, em sentido butleriano (Butler, 2004), numa categoria
que tenha reconhecimento enquanto humana.3 Idealmente concretizadas em idade
precoce, essas ditas violações, mais do que serem consideradas meras
cicatrizes, imprimem um sexo que transporta consigo uma identidade que, por si
só, dita parte do destino de alguém que não teve qualquer poder de escolha, o
que pode resultar em graves consequências a nível psicológico (Dreger, 1998).
O tratamento da intersexualidade, isto é, a solução dada pelos meios médicos
para corrigir/normalizar e transformar o intersexo numa das duas categorias
sexuais reconhecidas, assenta em fundamentos ideologicamente consolidados: o
machismo e o sexismo aliados à heterossexualidade (Fonseca Santos, 2012). Os
contemporâneos modelos médicos de diferenciação sexual chegam a refletir a
tradicional conotação de masculino com atividade e feminino com passividade
(Preves, 2005: 26). O heterossexismo espelha-se no principal fator de critério
para o sucesso de um tratamento: a relação sexual com o sexo oposto (Fausto-
Sterling, 2000b). Um tratamento é considerado bem-sucedido quando o novo sexo
coincide com a identidade sexual a esse sexo associada e orientação
heteronormativa que lhe corresponde; por exemplo, quando uma pessoa redesignada
para o sexo feminino cumpre com os devidos estereótipos associados a esse sexo,
assumindo-se como mulher feminina (o que tem implicações estéticas e
comportamentais) e heterossexual. Assim, o êxito do tratamento pauta-se pela
coincidência, de uma perspetiva heterossexual, entre identidade sexual e sexo
de criação (o sexo para o qual a pessoa foi redesignada).4 Os casos em que
existe ausência congénita da vagina numa mulher testemunham também esta tripla
ideologia. A ausência congénita da vagina ou Síndrome de Rokitansky revela-se
por uma agenesia mulleriana ' não completa formação da vagina, colo do útero,
uretra, e/ou trompas de Falópio ' em pessoas de cariótipo genético 46, XX.5 As
mulheres que nascem sem vagina são submetidas a uma ou várias cirurgias
acompanhadas por um doloroso processo de dilatação. A dilatação é feita de
forma a que consigam manter relações (heteros)sexuais com penetração vaginal
por um pénis considerado de tamanho normal, mesmo que isso não provenha
qualquer prazer físico às mulheres.6
Ao observarem a genitália da criança recém-nascida, as/os obstetras estipulam o
sexo de acordo com as dimensões médias e esquemas visuais que possuem em suas
mentes, de tal modo que o sexo não depende da sua natureza nem apenas da forma
como aparece, mas da forma como é percebido. Tomemos como exemplo o tamanho do
órgão erétil ao nascimento: um pénis que tenha menos de 2,5 cm será percebido
como incapaz de penetrar uma vagina no futuro e, por conta disso, existe a
possibilidade de ser amputado e criada uma neovagina. Os sexos são, desta
forma, interpretações culturais e podem sofrer emendas se os tamanhos ou
formas não forem aceitáveis dentro do que é assumido como normal no
entendimento médico e comum. As variações sexuais não se limitam a duas; tão-
pouco a identidade sexual ou género. Caso houvesse uma relação de consequência
entre sexo anatómico e género, teria de haver espaço para uma série de
correspondências entre outras variações genitais e de géneros.
O intersexo, assim como a incapacidade de lidar com ele, são o testemunho de
que o sistema sexual que vigora no Ocidente é insuficiente para abarcar o
variadíssimo espectro da sexualidade. Conforme sugere Anne Fausto-Sterling, no
famoso artigo The Five Sexes, publicado em 1993 pela revista The Sciences:
há várias gradações que vão de mulher a homem. A existência do intersexo
desestabiliza os modelos binários mulher/homem, feminino/masculino,
homossexual/heterossexual. A intersexualidade é normalmente dividida, de uma
forma genérica, em hermafroditismo verdadeiro e pseudo-hermafroditismo, mas
existem outras ambiguidades normativas, menos referidas porque menos comuns.
Podem ainda existir características invulgares nos genitais que não sejam
classificadas de tipo intersexo, como por exemplo o macroclitóris e a
hipospádia.7 É, por isso mesmo, difícil obter uma percentagem fiável de
nascimentos intersexo. Citando Alice Dreger:
não é possível fornecer com exatidão uma estatística da frequência de
nascimentos em que o sexo da criança seja posto em questão [ ]. Tal
estatística é sempre necessariamente específica em termos culturais.
(2003: 42)
Dreger (ibidem) explora esta problemática da impossibilidade de uma estatística
universal acerca do número de casos de intersexualidade. Recorramos ao exemplo
da chamada deficiência da enzima 5-alfa-redutase (5-AR) ' responsável por uma
das duas causas possíveis do pseudo-hermafroditismo masculino e cuja causa é
genética: em locais isolados, onde ocorrem casamentos consanguíneos, a baixa
variedade genética contribui para a presença preponderante dessa variação
enzimática nos genes, caso ela estivesse previamente presente em alguma
linhagem. Nas regiões isoladas da República Dominicana habita uma população
cuja pouca variedade genética mantém na sua linhagem precisamente esta variação
enzimática (Dreger, 2003: 40; Preves, 2005: 40), de tal modo que se pode
concluir que a tendência para este tipo de pseudo-hermafroditismo masculino
será maior aí do que em qualquer outro local. Ainda relativamente a esta
questão dos dados estatísticos, o fator cultural também é relevante: existem,
por exemplo, culturas em que o sexo é raramente examinado, o que impossibilita
o conhecimento e registo das incidências. Culturas que consideram que clitóris
grandes ou pénis pequenos constituem órgãos com tamanhos inaceitáveis,
tenderão, consequentemente, a apresentar estatisticamente mais casos de
intersexualidade do que aquelas que os consideram de tamanhos normais
(Dreger, 2003: 42). O fator geracional é igualmente relevante: recorde-se o
tratamento hormonal dado a muitas mulheres nos Estados Unidos em 1960 para
prevenir o aborto espontâneo, que teve como consequência um surto de
nascimentos de crianças com hiperplasia adrenal congénita (ibidem: 41).
Contudo, a historiadora sugere uma incidência de um a três casos de intersexo,
a cada duzentos nascimentos nos Estados Unidos (ibidem: 42). Já Sharon Preves
(2005: 2), com base numa pesquisa exaustiva em literatura médica, aponta para
um a quatro casos de intersexo, para cada cem nascimentos.
A noção e a nomeação do intersexo diferem, então, de cultura para cultura e de
geração para geração. Para Aristóteles, o hermafroditismo era a condição de
existência de um sexo extra, não funcional, que se somava, como se fosse um
tumor, ao verdadeiro sexo funcional. A causa de tais deformidades residia na
quantidade de matéria fornecida pela mãe (Long, 2006: 14).8 Até ao século xix,
a genitália masculina foi vista como sendo superior à feminina; a genitália
feminina era considerada uma formação não total da genitália masculina, um
órgão inacabado (Dreger, 2003: 34).9 Posto isto, se uma mulher tivesse os
órgãos genitais muito desenvolvidos assemelhar-se-ia a um/a hermafrodita ou a
um homem, e um homem com genitais pouco desenvolvidos assemelhar-se-ia a uma
mulher ou a um/a hermafrodita (ibidem: 35). Também na Encyclopaedia Medica
(Watson, 1900: 491) o hermafroditismo é apresentado como uma camuflagem do sexo
verdadeiro por via de malformações, sendo o termo ainda aplicado a casos cujos
indivíduos apresentam gónadas dos dois sexos.
No âmbito da biologia, o primeiro uso do termo intersexualidade deve-se ao
geneticista Richard Goldschmidt no artigo Intersexuality and the Endocrine
Aspect of Sex, para o jornal Endocrinology, em 1917, onde são feitas
referências a uma série de ambiguidades sexuais, incluindo o hermafroditismo
(Dreger, 2003: 31). Contudo, o termo já tinha sido usado por outros autores
para mencionar a homo- e bissexualidade, sendo que o próprio Goldschmidt
admitira que a homossexualidade seria uma forma de intersexualidade. A palavra
ganhou popularidade a partir do artigo supracitado como substituta do termo
hermafroditismo, prevalecendo na literatura médica a partir de meados do século
xx.
Atualmente, a noção é usada na biomedicina para designar variações sexuais em
relação à genitália externa ou a outras. De uma forma sucinta, pode dizer-se
que intersexo é a circunstância em que a harmonia entre cromossomas sexuais,
hormonas sexuais, genitália, gónadas (testículos e ovários) e características
sexuais secundárias foge aos critérios estipulados para a categorização de uma
pessoa como masculina ou feminina, o que torna impossível determinar o sexo
global dessa mesma pessoa.
Este artigo começa por desvelar os processos de regulação sexual no Ocidente,
com especial atenção ao modo como o intersexo é submetido a esses processos e
ao mesmo tempo os desafia. A História da sexualidade de Foucault servirá para
demonstrar o paralelismo que percorre nos corpos intersexo desde a Idade Média
até à contemporaneidade, com enfoque no seu poder de transgressão das leis.
Também a noção de biopoder acompanha o entendimento do controlo de vida,
especificamente o controlo sexual da população que se iniciou a partir do
século xviii e que se mantém até aos dias de hoje. Para falar em regulação
sexual será útil prosseguir com a noção de reconhecimento, operada por Judith
Butler em Undoing Gender(2004), porque apenas as pessoas submetidas aos
processos de regulação são reconhecidas enquanto seres humanos e têm uma vida
possível de ser vivida ' vida habitável. Por fim, uma leitura em torno da noção
de hospitalidade proclamada por Derrida tenta demonstrar uma possível solução
para uma vida habitável daquela categoria que ainda não alcançou reconhecimento
' a categoria do intersexo.
1. Regulação sexual e normatividades
Sempre existiram pessoas transexuais, assim como homossexuais e intersexo.10
Contudo, de forma consistente ao longo da história verifica-se uma tendência
para classificar estas pessoas como anómalas e doentes. Vejamos que elementos
nos ajudam a perceber as razões subjacentes a esta regularidade.
A diferença sexual e a aparente verdade anatómica servem apenas para legitimar
a organização política (Preciado, 2008: 61-62) e perpetuar as relações de
poder.11 Quando um corpo se apresenta ambíguo, tudo se fará para que este entre
na normalidade da diferença sexual, para tal fazendo valer as tecnologias, de
modo a evitar que este corpo cause um desequilíbrio na organização da
sociedade. Os corpos sexualmente ambíguos são controlados pela medicina,
submetidos a processos de normalização no intuito de que sexo, corpo,
comportamento, sexualidade e caracteres secundários funcionem em harmonia entre
si e conforme a ideologia de uma sociedade heterossexista. À semelhança dos
corpos dóceis de Foucault (2001), estes deverão ser produtivos e submissos.
Por isso, a intersexualidade deixou de ser objeto de estudo apenas da medicina
e biologia, passando também a ser abordada por áreas como a sociologia, a
antropologia, o feminismo e os estudos queer.
Foucault (2001: 83-85) considerava privilegiados os monstros hermafroditas da
Idade Clássica quando colocados em relação aos que viveram entre a Idade Média
e inícios do século xvii, uma vez que estes eram queimados vivos pelo facto de
possuírem dois sexos (alegadamente um dos sexos ser-lhes-ia atribuído por
Satanás, depois de um coito com este). A partir do século xvii ninguém mais foi
condenado por hermafroditismo, mas antes por ter relações sexuais com pessoas
do mesmo sexo, uma vez imposta a obrigatoriedade de escolha por um dos sexos '
à semelhança do que ainda hoje acontece em muitos países. A condenação era
então motivada não pela natureza do corpo mas pelo comportamento, reflexo do
que aconteceu, principalmente, partir do século xix: a monstruosidade perdera o
estatuto jurídico-natural para ganhar o de jurídico-moral. A escolha por um dos
sexos servia apenas para se saber que roupas usar, se se teria obrigatoriedade
de casar e com quem (alguém do sexo oposto ao escolhido) (Riolan apud Foucault,
2001: 89). Este tipo de monstruosidade perturbava as regularidades jurídicas,
não só no âmbito do casamento mas também no do batismo ou nas regras de
sucessão. Hoje em dia, e à semelhança do que aconteceu a partir da Idade Média,
os casos de pessoas intersexo ainda desestabilizam o princípio considerado
natural, o princípio moral, e as leis. Eles colocam em questão o sistema
médico, o sistema jurídico e a organização das instituições. Veja-se o caso do
atletismo, cujas competições viram as suas regras alteradas em termos de
determinação de sexo para admissão de atletas femininas (IAAF, 2012). Ou ainda
o caso de Halterina Hofan, pessoa intersexo que foi presa na Indonésia em 2010,
acusada de falsificação de documentos, e cuja estadia na prisão foi conturbada,
tendo passando de uma cadeia masculina para uma feminina e finalmente para uma
cela solitária, devido à incerteza de ser homem ou mulher por parte das
entidades policiais (Yessir, 2010).
Segundo Foucault (1994), foi a partir do século xviii que se iniciou um
processo de racionalização, classificação e regulação do sexo. Também foi nesse
período que prosperou o interesse pela sexualidade das crianças, das pessoas
loucas, criminosas e homossexuais ' ou seja, o interesse por sexualidades
desviantes. Estes discursos multiplicaram-se durante os séculos xix e xx e,
com eles, as perversões.12 Foram estipuladas normas de desenvolvimento sexual
de acordo com as idades; as perversões eram condenadas nos tribunais; quem
praticasse as irregularidades sexuais era considerado/a doente mental, sendo as
mesmas controladas pedagogicamente ou através de tratamentos médicos (ibidem).
Os discursos sobre o comportamento tornaram-se objeto de análise e
interpretação ' por parte de instituições como a medicina, psiquiatria, justiça
penal ', analisaram-se os comportamentos sexuais, que se pretendiam
comportamentos económicos e políticos. As instituições de saber e poder
controlavam a sexualidade, o que tornou os discursos sobre o sexo lugares de
poder que se viam perturbados por sexos ambíguos. Por exemplo, pessoas
hermafroditas eram consideradas criminosas ou filhas de criminosos/as, devido à
anatomia que confundia a lei que distinguia os sexos e prescrevia a sua
conjunção (ibidem: 42).
Dada a racionalização dos discursos sobre o sexo e, subsequentemente, o aumento
do acesso aos cuidados médicos (incluindo ginecológicos), assistiu-se a uma
multiplicação dos discursos e narrativas, sobretudo publicações médicas, que
fizeram com que o século xix experimentasse um súbito e aparente aumento de
casos de sexo atípico. Para tal contribuiu também a proliferação de feministas
e homossexuais assumidos/as, considerados/as hermafroditas comportamentais,
que desafiavam os limites da sexualidade (Dreger, 2003: 26). As consequências
desta diversidade refletiram-se numa delimitação demasiado rigorosa de
masculinidade e feminilidade por parte das comunidades médica e científica,
qualificando-se como raro, imoral e não natural tudo o que não encaixasse nos
padrões. Tornou-se inconcebível ver nascer um/a hermafrodita e não regularizar
a situação. Assim, a partir de meados do século xx iniciaram-se as primeiras
cirurgias de redesignação sexual. A forma como se realizavam estas cirurgias
obedecia a procedimentos médicos precários e arriscados (Dreger, 2003; Fausto-
Sterling, 2000a).
A necessidade de controlar a vida da população remonta ao século xviii, quando
os esforços que até então existiam em prol da defesa de vida do soberano
passaram a existir em prol da defesa da população. A defesa que até então se
situara ao nível da existência jurídica (soberano) deslocou-se para a
existência biológica, ao exercer-se positivamente sobre a população: ao velho
direito de fazer morrer ou de deixar viver se substitui um poder de fazer viver
ou rejeitar a morte (Foucault, 1994: 140). O poder dedicou-se à manutenção e
gestão da vida e criou-se uma série de teorias para a obtenção da sujeição dos
corpos e do controlo da população ' iniciando-se, assim, a era do Biopoder.
Adaptando esta teoria à atualidade: quando nasce uma pessoa intersexo, o poder
político inscreve-se no bios e altera-lhe o corpo. Esta alteração mais não é do
que a defesa dos interesses da população em geral disfarçada em nome da
defesa do bem-estar da pessoa intersexo, uma vez que a organização da maioria
das sociedades não está preparada para incluir corpos intersexo nem identidades
genderqueers. O que parece ser um poder positivo para o bem-estar da pessoa
intersexo é, afinal, a única solução que as entidades médicas encontram para
colmatar a sua própria incapacidade, e a da maioria das instituições, em lidar
com um sexo diferente, por não saberem posicioná-lo na sociedade.13 As
cirurgias de redesignação sexual fazem-se em nome do bem-estar da população, de
forma a resguardar o seu sistema organizacional. A transmissão do poder para a
manutenção da vida da população, que se fez sentir no século xviii, ainda
persiste. No entanto, esta manutenção da vida continua a fazer morrer, ou em
termos butlerianos, continua a desfazer (Butler, 2004) outras possibilidades de
existência, outras formas de ser.
2. Reconhecimento e humanidade
De acordo com Judith Butler (1999), o sujeito (enquanto género) é definido na
sequência dos atos que realiza, em sucessivas performances, resultando num
efeito dos mesmos e não na causa. Isto significa que a identidade sexual (ou de
género) é um efeito da reiteração dos atos no corpo. Por outras palavras, é a
repetição de atos no corpo que dota o sujeito de uma identidade sexual, sendo
essa identidade uma categoria resultante do efeito de instituições, práticas e
discursos. Essa repetição levará ao reconhecimento do sujeito enquanto mulher
ou homem (porque o género enquanto prática ocorre num cenário de
constrangimentos), e em última análise enquanto humano, porque apenas estas
duas categorias são reconhecidas como dotadas de humanidade. Influenciada pela
importância atribuída por Hegel à questão do desejo de reconhecimento, Butler
(2004: 2) considera que a identidade sexual é movida pelo desejo na procura do
reconhecimento, tornando-se este um lugar de poder. Interroga-se: Se eu
desejar determinadas formas, serei capaz de viver? Esta questão constitui o
cerne do seu argumento, pois a autora chama a atenção para a mutabilidade das
condições pelas quais cada indivíduo é reconhecido enquanto ser humano: se
existem condições que conferem humanidade a certas pessoas, essas
circunstâncias podem destituir outras do mesmo estatuto, lançando-as para o
anonimato, e, em última análise, para uma não existência. Posso sentir que sem
algum reconhecimento não consigo viver. Mas também posso sentir que os termos
pelos quais sou reconhecida tornam a minha vida inabitável. (ibidem: 4). Se,
por um lado, existem pessoas que reivindicam um reconhecimento enquanto homens
ou mulheres, por outro, há as que reivindicam um reconhecimento que escape a
essas categorias limitadoras, ambicionando reconhecimento enquanto seres
humanos com autonomia sobre os seus corpos, libertos de manipulações médicas e
de constrangimentos discursivos. Enquanto as normas que regem o mundo não forem
repensadas e este reorganizado, os lugares de poder serão sempre codificados
pelo binarismo, e todos os corpos, não só os intersexo, suas vítimas. Em
Undoing Gender (2004: 1), Judith Butler reflete sobre as consequências de uma
vida vivida à margem dos padrões sexuais dualistas vigentes na sociedade, que
tem no seu expoente o não reconhecimento da pessoa enquanto ser humano, uma vez
que as conceções normativas do sexo podem impedir alguém de ter uma vida
habitável,14 a que Butler chama devir desfeita/o. É a vulnerabilidade que
define o humano, a condição humana. Uma vez inserido na sociedade, o ser humano
vê-se determinado pelas normas e deixa-se definir pelo que estas ditam, caso
contrário será excluído. Portanto, em conformidade com um dos dois sexos que
nos foi designado, ou redesignado, haverá um padrão de práticas sociais a
seguir e que pouco tem a ver com as do sexo oposto. São as normas que
constituem o sexo e nos determinam, já que o nosso destino será estabelecido em
função dele. Se, por um lado, as normas permitem a construção do sujeito, sendo
essa construção impositiva, ela vai impossibilitar que ele se construa de outra
forma. No caso da pessoa intersexo, ela precisa de se desfazer daquilo que é,
para se ir construindo de outra forma; deixa de ser intersexo para ser sexo (e
género) feminino ou sexo (e género) masculino. Nas palavras de Butler, são as
normas que nos fazem, construindo-nos de determinada forma, e por outro lado,
nos desfazem, impedindo-nos de nos constituirmos de outra forma não
correspondente. O pensamento de uma vida possível é apenas uma indulgência
para aquelas/es que se sabem possíveis. Para aquelas/es que ainda procuram
tornar-se possíveis, a possibilidade é uma necessidade. (Butler, 2004: 219).
Pessoas intersexo são aquelas que ainda estão à espera de se tornarem
possíveis, de existirem, isto é, de terem reconhecimento. Fazendo uma
aproximação a Beatriz Preciado (2008), é necessária intervenção política para
uma reprogramação do sexo. Esta intervenção não é utópica. A definição de
humano difere de cultura para cultura, não existem definições imutáveis nem no
espaço nem no tempo, os conceitos estão sempre sujeitos a ressignificações, as
categorias sempre sujeitas a mudanças. O mesmo acontece às pessoas e ao mundo.
3. Recuperação da diferença pela hospitalidade derridiana
Recordando Rosi Braidotti (2011: 138), a noção de diferença foi desenvolvida
na história da filosofia europeia, a qual, a partir de oposições binárias,
criou categorias de alteridade com conotação de inferioridade. Esta noção de
diferença foi adotada por modos de pensamento hierárquicos e excludentes,
sobretudo pelos regimes políticos totalitários que, encarando a diferença como
biologicamente determinada, a tomaram como mote para o extermínio de milhares
de humanos. Hoje em dia, em vez de exterminada, a diferença é sobretudo
transformada em mesmidade. À semelhança do que sucedia em regimes ditatoriais
relativamente à diferença, o intersexo é tomado por uma diferença pejorativa,
censurado na sociedade, manipulado pela medicina e pelos discursos que
sustentam a ordem social. O intersexo toma agora o lugar de outro que até então
pertencia, no registo europeu, à população judia, homossexual, cigana, do sexo
feminino, deficiente, entre outras minorias. O intersexo é o outro sexo e o
outro ser, destituído de reconhecimento enquanto humano. Não obstante, este
outro' pode ser recuperado e enaltecido pela hospitalidade, alcançando o
estatuto de condição humana enquanto tal.
De Sófocles a Derrida, o alcance da palavra hospitalidade sofreu várias
alterações: enquanto para Platão e Kant é merecedor de hospitalidade o ser
humano na condição de cidadão, portanto, o sujeito jurídico-político, para
Levinas e Derrida, é-o todo e qualquer sujeito na condição humana, sendo o
dever de acolher não jurídico mas absoluto. Esta questão liga-se diretamente à
questão do reconhecimento, discutida por Butler (2004), que possibilita uma
vida habitável. Butler proclama por uma maior abrangência do termo humano, de
modo a que ao ser reconhecida enquanto tal, a pessoa tenha uma vida habitável,
aproximando-se à ética de Derrida que proclama o acolhimento (que poderia ser
análogo a uma forma de habitabilidade) a todo e qualquer outro. A
hospitalidade, tal como é tratada por Derrida em Da hospitalidade(2008b),
permite-nos colocar o intersexo em analogia com o estrangeiro da hospitalidade
em sede grega, que o autor desenvolve recorrendo às obras de Platão, e com o
outro15 da hospitalidade em sede bíblica, desenvolvida a partir da cena Bíblica
do Génesis, em que Sara e Abraão acolhem três visitantes não convidados.
A hospitalidade no regime do absoluto é a hospitalidade incondicional, de lei
anómica acima das leis, que clama a cada momento por justiça. Se por um lado
temos a pessoa convidada, cuja vinda é à partida prevista, por outro temos a
pessoa visitante que interrompe a normatividade sem aviso, causando perturbação
' é um evento. A hospitalidade incondicional é aquela prestada ao/à outro/a,
todo/a e qualquer outro/a independentemente de sexo, religião, nacionalidade,
nome, etc., contrariamente à hospitalidade condicional (de Platão e Kant), que,
sendo regida por leis, é prestada apenas ao indivíduo convidado ' ao
estrangeiro (alguém que vem de fora) ou cidadão da polis, ' e não a um/a outro/
a absoluto/a, enigmático/a.
A palavra hospitalidade tem na sua etimologia a latina hospitalitate, que
designa o ato de hospedar. Daqui deriva a expressão hospes(hôte em francês) a
qual apresenta, como atenta Benveniste (1969: 87-89), um caráter ambíguo. A
expressão francesa hôte, quando traduzida para português, significa
simultaneamente hospedeiro (indivíduo que acolhe) e hóspede (indivíduo
acolhido) e é um acusativo de hostise hospes(ou hosti-pet).16 Hostissignifica
hostil, inimigo, e hospessignifica convidado, hóspede. Esta aglutinação, hosti-
pet,é um aviso à ameaça que a hospitalidade aporta, ou seja, a hostilidade no
seio da hospitalidade alerta para o seu próprio perigo. Não há, é impossível,
hospitalidade pura ' na sua incondicionalidade, ela só é possível (já)
contaminada pela hostilidade (Bernardo, 2002: 443).17 Ao acolher alguém em
nossa casa, não estamos livres do risco de esse alguém afetar negativamente a
nossa interioridade. Ainda assim, enquanto hospedeiras/os, temos a obrigação de
cuidar da pessoa acolhida, de igual para igual.
Quando nasce uma criança intersexo, a entidade hospedeira (sejam as entidades
médicas, a família, a sociedade, ou o mundo em geral) exorbita da soberania
(potis) associada à sua condição, ditando as regras e estabelecendo os limites
que o intersexo, enquanto hóspede, não poderá transgredir. Nesta dinâmica, o
próprio indivíduo hospedeiro acaba por ser o hostil, ao pressentir a
hostilidade em potência do intersexo ' ou a revolução relativamente à ordem
sexual da sociedade.18
Evocando Montandon (2004), tudo começa na ombreira da porta. A ombreira da
porta representa uma linha que separa hospedeiro/a de hóspede e leva este/
a último/a a cometer a primeira violência: o ato de transgressão ao atravessar
a linha, ato esse que implica, ainda assim, a aceitação das regras da pessoa
anfitriã. Conforme Montandon (2004: 7), a sua travessia implica tacitamente
para o/a convidado/a a aceitação das regras do/a outro/a. Uma mulher biológica
dá à luz uma criança. Enquanto presa pelo cordão umbilical mantém-se no limiar
da hospitalidade, mas quando este é cortado dá-se a primeira violação. A recém-
nascida é levada a transgredir a fronteira entre a sua casa (a bolsa
amniótica), e a casa do mundo. Apresenta-se como refém19 ao curioso olhar dos/
as obstetras que, tendo em consideração o perigo subjacente do evento que vem
de fora, sem perda de tempo procuram a marca que consideram distintiva dos
humanos (o sexo); qual não é o desassossego quando observam que este ousado ser
comete outra transgressão: trazer consigo a ambiguidade. Tendo chegado sem
avisar, o inesperado rompeu com a norma binária dos sexos, mas ao mesmo tempo
apresenta-se submissa a ela.
Todos os sexos, em especial o intersexo, vêm ao mundo com o peso da sujeição às
regras, de forma a alcançar, recordando Butler (2004), uma vida habitável.
Irrompo contra esta sujeição e esta falsa hospitalidade, pois o acolhimento
feito ao intersexo não deve ser encarado como um ato de poder que estabelece à
partida uma relação de assimetria de hóspede submisso/a (pessoa intersexo) para
hospedeiro/a soberano/a (todo e qualquer outrem que o/a receba), mas antes ser
como um dom,20 respondendo incondicional e responsavelmente ao apelo urgente de
acolhimento.21 A lei da hospitalidade incondicional que Derrida dá a pensar em
Da hospitalidade, é uma lei jurídico-politicamente impossível: se o mundo deve
ser pensado como uma casa, então, o espaço geográfico deve ser pensado a partir
dessa hospitalidade, uma hospitalidade incondicional arquioriginária,22 pré-
política, pré-social e pré-jurídica. A hospitalidade condicional, por sua vez,
é jurídico-política, já que tem uma série de leis impostas ao estrangeiro, na
medida em que este é pensado a partir da pólis. Para além de uma receção em
forma de questionário, o estrangeiro é ainda obrigado a responder na língua do
outro.23 Sócrates, apesar de estar na sua cidade, assumiu-se perante os juízes
do tribunal como estrangeiro à língua do direito. O estrangeiro é, antes de
mais, estrangeiro à língua do direito na qual o dever de hospitalidade está
formulado (Derrida, 2008b: 35), e esta é a primeira violência. Tal como o
estrangeiro é obrigado a falar uma língua que não é a sua, o intersexo é
obrigado a assumir um sexo que não é o seu, nunca podendo assumir o seu sexo
enquanto tal, pois a hospitalidade incondicional está no campo da
impossibilidade, e fazer o impossível é um desafio para uma ética da
incondicionalidade.24 Mas o intersexo difere do estrangeiro na medida em que
este tem um estatuto social enquanto sujeito dotado de nome próprio e sujeito
de direito, enquanto o intersexo, até ver o seu o sexo redefinido, é um outro
absoluto, sem nome nem lei, como um bárbaro.
A hospitalidade incondicional poderia ser definida pela feminilidade biológica
enquanto corpo gestante, já que é no corpo biologicamente feminino que gera
uma criança, onde se dá o primeiro acolhimento de forma incondicional, onde se
acolhe o outro enquanto absolutamente outro, antes de qualquer conhecimento.
Uma hospitalidade incondicional no âmbito de uma organização sociossexual
binária é absolutamente impossível, uma vez que tal binarismo só existe na
medida em que é moldado a partir da multiplicidade nunca acolhida como tal. É
necessária uma hospitalidade absoluta que desafie a hospitalidade condicional,
não a contrariando nem condenando, mas fazendo-a aceitar que é preciso acolher
todo e qualquer outro. Conforme Derrida,
a hospitalidade absoluta exige que eu abra a minha casa e que dê, não
apenas ao estrangeiro (dotado de um nome de família, de um estatuto
social de estrangeiro, etc.), mas ao outro absoluto, desconhecido,
anónimo, e que lhe dê lugar [ ] sem lhe pedir reciprocidade, e sem
mesmo lhe perguntar pelo nome. (2008b: 40)
Este sem perguntar pelo nome pode já ter implícito o desinteresse pelo
conhecimento do sexo, já que o nome, apesar de considerado por Derrida como uma
marca da singularidade, é também marca da mesmidade, tendo em consideração que
a maioria dos nomes visa uma diferenciação sexual através do género gramatical.
A hospitalidade absoluta está no campo da justiça, é uma hospitalidade justa
que rompe com a hospitalidade condicional, aquela que está no campo do direito.
Entre as duas não há uma oposição delimitada; em vez disso, existe uma relação
de heterogeneidade (diferença sem oposição) e indissociabilidade. A
hospitalidade justa impulsiona a hospitalidade de direito à progressão, mas é-
lhe tão estranhamente heterogénea quanto a justiça é heterogénea ao direito
(ibidem). As leis (as normas, os direitos, os deveres) precisam da Lei (da
justiça) para que sejam mais justas; por seu lado, a Lei precisa das leis para
ter significado de existência, precisa delas para as intersetar e dizer-lhes o
que está errado. É necessário fazer do impossível a meta e retirar o Estado do
âmbito do privado sempre que ele pretenda legislar o corpo de outrem, acabar
com este biopoder. Segundo Derrida, se o Estado interfere na vida privada,
quebra-se a hospitalidade: A intervenção do Estado torna-se uma violação do
inviolável, aí onde a imunidade inviolável permanece a condição da
hospitalidade (Derrida, 2008b: 52). Também Foucault partilhava a mesma aversão
a este tipo de organização de poder sobre a vida: processos de poder e de
saber assumem os processos da vida e tentam controlá-los e modificá-los
(Foucault, 1994: 144). Uma sociedade normalizadora ' é esta a consequência dos
processos de uma tecnologia de poder centrada na vida (ibidem). Sempre que a
biopolítica opere sob a forma de disciplinas normalizadoras que tendam a
produzir corpos e identidades normais, há que rejeitar esses dispositivos por
serem mecanismos de normalização da sexualidade.
Temos assim o dever incondicional de acolher o/a outro/a sem álibis, condições
ou preconceitos. Temos de fazer o impossível de Derrida e sermos hospitaleiras/
os incondicionais, ir contra as leis do direito se for necessário, tal como o
próprio filósofo fez quando acolheu indivíduos estrangeiros sem papéis, mesmo
sabendo que isso era proibido, um crime até.25 Há que reinventar a ética, a
política, o direito. Há que acolher não só a pessoa convidada como também a
visitante, com a mesma dignidade humana de que ambas são portadoras.
Conclusão
Desmistificado o intersexo, a conclusão é que não se pode reduzir a sexualidade
a uma dicotomia. Se o século xix foi áureo em casos conhecidos de pessoas
intersexo, com as cirurgias de redesignação sexual feitas compulsoriamente
caminhamos, na contemporaneidade, para a erradicação da intersexualidade,
afunilando uma sexualidade que se quer plural. Apesar de a genitália ambígua
poder ter distúrbios metabólicos implícitos, conforme atenta Alice Dreger
(2000: 162), em si mesmos os genitais não são doentes. Os tratamentos que visam
a normalização estética e o encaixe numa categoria sexual nunca permitirão
uma emancipação do intersexo. Mais do que criar uma harmonia entre genitais e
cromossomas, o corpo deve estar em harmonia com a pessoa que o encarna. Torna-
se, por isso, imperativa e urgente a despatologização da intersexualidade, a
não realização e mesmo criminalização de qualquer cirurgia sem o consentimento
individual.
É de extrema importância discutir a intersexualidade, uma vez que este é um
assunto controverso sobre o qual pouco se sabe. A questão do intersexo coloca
em questão os outros sexos, a fronteira entre eles, os ideais de beleza, a
orientação sexual, a identidade de género, a legislação, os serviços médicos, a
ética O intersexo é, por isso, a chave para a rutura e ressignificação das
normas sexuais. Será necessário pensar o sexo, tal como o faz Fausto-Sterling
(1993), como um continuumvasto e maleável. Torna-se necessário repensar as
normas e repensar o conceito de ser humano.
Aliada à questão butleriana do reconhecimento, a hospitalidade derridiana pode
ser a chave teórica para a inclusão absoluta,26 já que sem reconhecimento as
pessoas carecem de dignidade enquanto humanas, não sendo acolhidas nem pela
família, nem pela sociedade em geral. Se uma hospitalidade incondicional é
impossível, então que se faça o impossível e se torne possível outro modo de
ser.