Sobre periferia: Novos conflitos no Brasil contemporâneo
RECENSÃO
Vieira da Cunha, Neiva; Feltran, Gabriel de Santis (orgs.) (2013), Sobre
periferia. Novos conflitos no Brasil contemporâneo
Susana Durão
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas,
UNICAMP. Rua Cora Coralina, 100, CEP 13083-896 ' Cidade Universitária Zeferino
Vaz ' B. Geraldo. Campinas ' São Paulo, Brasil ssbdurao@gmail.com
Sobre periferia. Novos conflitos no Brasil contemporâneo
Neiva Vieira da Cunha, Gabriel de Santis Feltran Vieira da Cunha, Neiva;
Feltran, Gabriel de Santis (orgs.) (2013), Sobre periferia. Novos conflitos no
Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Lamparina/Faperj, 224 pp. 2013
Favela, periferia, margem são, por vezes, sinónimos intercambiáveis da
histórica precariedade urbana brasileira. Mas são também nomes defendidos,
definidos. O termo favela existe há mais de um século no plano social e na
geografia urbana e há mais de duas décadas no domínio da reflexão acadêmica.
Continua saindo da sombra.
Sobre periferia. Novos conflitos no Brasil contemporâneo busca desvelar, tal
como uma boa camada de obras e de artigos, um dos temas mais promissores de
certo estilo de antropologia urbana que vem sendo realizada no Brasil. Não
tendo sido o primeiro e nem sendo com certeza o último, o livro reúne nomes que
vêm marcando passo nos debates sobre margens urbanas. Após a sua leitura a
proposta fica clara: caminhar da reflexão sobre fronteiras sociogeográficas '
das periferias ' em direção a uma proposta de cartografia de perspetivas
analíticas ' de margens.
A obra é composta por três partes diferentes: i) drogas, crime, violência e
política; ii) expressividade, religiosidade e gestão social; iii) Estado,
território, moradia e ação social.
A discussão inicia-se com as fronteiras dos espaços urbanos do crack, pela mão
de Taniele Rui. A autora convence-nos de que diferentes lugares não são meros
invólucros e cenários do consumo; diferentes territórios criam parâmetros de
interação e novas relações. Três territorialidades distintas no uso do crack,
em cidades do estado de São Paulo, apontam contrastes nas tensões que conjugam
pessoas, socialidade e cidade, tensões com agentes que ora acolhem, ora punem
esses corpos abjetos. O espaço do consumo faz diferença, diz Rui. Passamos em
seguida à leitura possível do limite (ou tensão liminar) com uma circulação
intermitente de pessoas dentro e fora de albergues na cidade de São Paulo.
Aqui, a aparente desespecificidade' do público é, paradoxalmente, a
especificidade do albergue. Daniel De Lucca Costa sintetiza: esta é uma
instituição tão hostil quanto hospitaleira; ela acolhe enquanto expulsa. Diogo
Lyra explora o tema da punição entre jovens traficantes, conferindo
inteligibilidade ao que seria do plano (moral) do ininteligível: a coesão na
tensão e na violência. O caminho é trilhado no nível das palavras trocadas,
ajudando o autor a esclarecer uma miríade de noções emicque dão sentido ao que
designa como subjetividades do sujeito-homem. A primeira parte termina com
uma cartografia da margem, proposta por Leilah Landim, que ruma através da
leitura de organizações civis, elegendo como campo de atuação o tema-problema
violência urbana no Rio de Janeiro.
Artes da periferia, por Rose Hikiji e Carolina Caffé, continua evidenciando a
proliferação de expressões e de desempenhos culturais que parece oferecer novo
contexto a disputas pela representação de lugares e pessoas na margem. O
Estado, associações e a gestão começam a ganhar textura analítica por
intermédio da análise etnográfica de políticas públicas (Ana Paula Galdeano),
mas também já estavam nos espaços urbanos do crack, intersectados por uma
pletora de atores institucionais (Taniele Rui). Galdeano descreve, num texto
rigoroso e criativo, como a política de segurança pública vai colonizando as
políticas de habitação, reforma e lazer em São Paulo na década de 2000.
Múltiplos projetos e ativismos que passam pela gestão social da violência, em
locais onde se faz presente o Primeiro Comando da Capital (PCC), passam por
novas interseções entre polícia, religião e partidos que ora forçam a
reintegração da ordem, ora a contestam. A mobilização social e política nas
periferias está longe de ser estável. Wania Mesquita apresenta formas de
entendimento, compreensão e tolerância moral entre os agentes do crime e os
pentecostais, enquanto Nina Rosas, que encerra a segunda parte da obra,
sublinha como uma massa de fiéis empobrecidos e as obras de assistência
social em geral têm sido instrumentalizadas para obtenção de sucesso pessoal e
afirmação de carreiras religiosas e partidárias.
A discussão das fronteiras e passagens fica clara no caso dos projetos de
pacificação policial de favelas, apresentado e discutido por Márcia Leite e
Machado da Silva, com novas formas de regulação que facilmente se sobrepõem à
lei. A análise tenta explicar o cruzamento entre barreiras mentais invisíveis e
a segregação socioterritorial. Os autores sugerem que a contenção e os limites
da circulação de jovens favelados na cidade carioca parecem prepará--los
para lidar com o desconforto e a insegurança das interações quotidianas
urbanas. Tal é feito através de mapas de antecipação (conceito tomado de
empréstimo de Jeganathan no texto Checkpoint: Anthropology, Identity, and the
State, in V. Das; D. Poole (orgs.), Anthropology inthe Margins of the State)
que envolvem cartografias dos estigmas e preconceitos. Por eles, polícia e
Estado são percebidos através da sua face repressiva, longe do que seria a
missão original de provisão de serviços públicos e equipamentos urbanos.
Isabel Georges e Yumi dos Santos usam a categoria beckeriana de emprendedor
moral para descrever políticas sociais terceirizadas de assistência a famílias
em São Paulo. Concluem que uma gestão sexuada pode produzir, especialmente nas
mulheres assistidas, novas formas de desigualdade. Luciana do Lago vem falar-
nos de empreendimentos autogeridos nas periferias de São Paulo e Porto Alegre e
das dificuldades manifestas deste tipo de associativismo. A autora demonstra
serem poucos os governos locais, as municipalidades, que utilizam instrumentos
legais para regular ou reduzir a ação privada que tende a alimentar a
especulação fundiária. E por fim, Marluci Menezes e Tânia Ramos apresentam um
caso em Lisboa. Descrevem minuciosamente e no tempo a edificação e as
transformações urbanas no bairro de Chelas. As autoras defendem que a
associação representacional frequente entre insegurança e um território
específico é (re)criadora de periferia urbana, demarcando-a fatalmente da
cidade, mesmo que subvertendo o plano urbanístico-social original.
No seu conjunto, esta é uma dessas coletâneas que resulta do acúmulo de
experiências, tanto empíricas quanto conceituais, que têm transformado em
objeto de pesquisa antropológica os espaços urbanos e a vida em cidades. Como
refere Birman, na abertura do livro, todos os autores da obra recusam o
dualismo que oporia centro e periferia. A aposta está na ampliação e não no
estreitamento de propostas.
Pela sua complexidade, entender as margens exige diluição de fronteiras
estanques e previamente dadas ao observador desavisado. A dicotomia cidade
partida (proposta no famoso livro de Zuenir Ventura), que se tornou uma
metáfora de uso cognitivo fácil, sobretudo para o caso do Rio de Janeiro, não
reúne consistência analítica. Ela é uma performance em si mesma (ainda que
possa ter efeitos reais) e só nessa medida requer atenção. Como bem advertem
Neiva Vieira da Cunha e Gabriel de Santis Feltran, discutir periferias
contemporâneas implica conhecer o labor do tempo no espaço social, o mundo do
trabalho, socialidades locais e circulações, configurações públicas de
conflitos sociais e políticos emergentes, mas também diferentes sentimentos
morais, demandas por respeito, reconhecimento, solidariedade. Que não restem
dúvidas depois de ler o livro: periferia é um conceito polissêmico e os
territórios da pobreza são amplamente heterogêneos. Mas dizer isto não é dizer
tudo. O trabalho teórico começa aqui.