Memórias de violências: Que futuro para o passado?
INTRODUÇÃO
Memórias de violências: Que futuro para o passado?
Maria Paula Meneses
Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra Colégio de S. Jerónimo,
Largo D. Dinis, Apartado 3087, 3000-995 Coimbra, Portugal menesesp@ces.uc.pt
Vivemos num mundo profundamente marcado por encontros culturais, pela
colonização, lutas nacionalistas e violência das guerras civis. Estes processos
não só marcam a distribuição da riqueza, do poder e do conhecimento a nível
global, como também afirmam as atuais fronteiras nacionais, influenciando os
regimes sociojurídicos que governam as vidas das pessoas, gerando novos debates
sobre o conteúdo político das narrativas fundacionais dos 'novos'
territórios políticos resultantes das lutas emancipatórias nacionalistas.
Porém, o impacto do moderno projeto colonial aconteceu não apenas a nível da
implantação do Estado moderno; pelo contrário, marcou as formas de narrar e
definir uma herança que ainda hoje se faz sentir.
A compreensão dos contornos atuais dos debates históricos sobre os Estados-
nação pós-coloniais em contexto africano abre campo para problematizar as
opções e as raízes das razões que transformam a delimitação de fronteiras e as
políticas de pertença e cidadania em espaços de conflito aberto. A utilidade
heurística de conceitos como 'nação' depende muito da forma como
estes são utilizados para explicar e justificar os processos e práticas sociais
e políticas específicas, quer hoje, quer no passado. Em contextos como os de
Moçambique, Angola ou Congo, o problema reside em saber em que consiste a
integridade nacional, em questionar os sentidos de pertença e as suas
implicações morais e materiais. Justamente porque estas questões são tão reais
e imperativas que ganham força e sentidos que impelem a uma reflexão mais
profunda.
Os textos que integram este volume da Revista Crítica de Ciências Sociais1 são
produto de reflexões desenvolvidas no âmbito de projetos de investigação que
procuram debater as possibilidades da descolonização e democratização da
moderna historiografia. No seu conjunto, estas reflexões procuram contribuir
para uma ampliação metodológica e epistemológica sobre as latências coloniais
para além das independências políticas (Santos, 2006). Estas análises, cujo
epicentro se encontra em Moçambique, nos últimos 50 anos, somam-se a um
crescente número de debates académicos e políticos que enfatizam a necessidade
de interpretar os impactos da economia política da situação colonial
(Balandier, 1951) a curto e longo prazo, numa interseção de fatores locais,
nacionais e globais.
Apesar de os textos incidirem especialmente sobre Moçambique, outros
territórios estão presentes neste volume. O facto de Moçambique, Guiné-Bissau e
Angola terem sido colónias de Portugal marca, sem dúvida, o campo das
narrativas sobre a construção destas nações, mas não termina nem se encerra
apenas nestas relações. Paralela à criação de África enquanto projeto imperial,
a apropriação de 'novos' territórios pela ação da geopolítica
moderna surge associada à emergência de um Portugal que era parte de um projeto
imperial europeu. Do outro lado, como importa sublinhar, a história,
especialmente da luta armada, mantém-se um elemento fundamental de estruturação
dos sentidos de pertença a projetos nacionais recentes. Uma avaliação de vários
eventos ligados à situação colonial e à transição para as independências
revela, em simultâneo, aspetos esquecidos e/ou silenciados sobre o passado
- como a situação dos diminuídos físicos das Forças Armadas, uma das
consequências da Guerra Colonial/Guerra de Libertação Nacional - mas
também sobre as dúvidas presentes e a realidade que as acompanha (Sarlo, 2007).
Como os textos sugerem, as narrativas contemporâneas encerram vários
paradigmas, por vezes conflituais entre si: o paradigma colonial, o
anticolonial e o nacionalista. Em tempos modernos, a expressão mais visível das
narrativas opostas à oferecida pelos colonizadores foi a grande narrativa
gerada pela luta nacionalista, centrada na denúncia do colonialismo e dos seus
vícios e na elaboração de um projeto nacional de futuro (Andrade, 1998). Esta
narrativa, repleta de promessas para o futuro, evitou e continua a evitar
diálogos com o passado. É este o projeto que está, como vários textos analisam,
na origem da ideia de Moçambique para os moçambicanos e moçambicanas. Este
projeto, apelando à igualdade, provocou, de forma dramática, o apagamento das
diferenças culturais e políticas que formavam o tecido social do país, gerando
profundas contradições, sinónimo de continuidades com mecanismos de dominação
modernos, cuja ação se continua a fazer sentir (Meneses, 2008).
Os artigos estão organizados de forma a interligar os fios fornecidos pelos
sujeitos e temas que abordam, e que se repetem e repercutem em vários momentos.
A partir de locais múltiplos de construção e interpretação histórica, estes
textos procuram reabilitar sujeitos - individuais ou coletivos - e
eventos, de acordo com a especificidade da sua relação com as várias facetas
dos projetos políticos em confronto. As histórias plurais em diálogo relatam-
nos contactos e continuidades, e são tanto mais credíveis quanto construídas
através de debates e análises escrupulosas de várias perspetivas e situações,
alargando o reconhecimento da diversidade epistémica do mundo, quando, em
simultâneo, põem um fim a qualquer das teleologias existentes.
Em "Xiconhoca, o inimigo: Quem eram (são) os inimigos da revolução
moçambicana?" Maria Paula Meneses analisa vários eventos, violentos,
sobre os quais assenta o projeto de nação em Moçambique. O artigo discute a
tentativa da criação do 'homem novo' no contexto de um jovem país
independente, avaliando a continuidade da presença da figura do inimigo
interno, representado pelo Xiconhoca. O artigo aborda igualmente a centralidade
da figura do inimigo interno a partir da análise de várias reuniões de busca de
verdade e de reconciliação realizadas em Moçambique entre 1975 e 1982,
discutindo em detalhe o contexto político-ideológico em que estas reuniões
aconteceram, assim como as suas implicações no contexto da construção da
cidadania e da história oficial de Moçambique.
Benedito Machava debate, no seu artigo sobre o episódio do 7 de Setembro de
1974, o papel de um grupo de resistência africana, abrindo caminho para uma
reflexão mais ampla em torno da dialética dos processos de descolonização. A
solução deste episódio menos conhecido do processo de transição para a
independência em Moçambique foi possível, entre outros aspetos, graças à
participação ativa das elites africanas urbanas. Analisando o imaginário
político destas elites urbanas, o artigo descreve o papel que estas
desempenharam no desarmar de uma tentativa de golpe - 7 de setembro
- e na proteção das populações africanas, evitando deste modo o escalar
da violência em Lourenço Marques.
A ligação entre a literatura, o cinema e a história está no centro do artigo de
Fabrice Schurmans, cuja análise se centra nas obras Une Saison au Congo, de
Aimé Césaire, e Lumumba, de Raoul Peck. Para o autor, a relação íntima entre a
história e a ficção permite que a literatura possa, num patamar mais amplo,
relatar a história, tocando no cerne de um debate central às ciências sociais e
humanas. A literatura e o cinema desempenham um papel importante não apenas na
transmissão de uma memória truncada, dominada durante muito tempo por uma
historiografia de origem colonial, mas também na edificação de um outro
discurso histórico. Como Schurmans sublinha, não se trata de pôr em evidência a
relação entre literatura/cinema e história, mas de questionar especificamente a
natureza desta relação na atualidade.
O tema da memória é retomado por Bruno Sena Martins, num texto intitulado
"Violência colonial e testemunho: para uma memória pós-abissal".
Partindo da problematização dos silenciamentos presentes em histórias de vida
de "deficientes das Forças Armadas", o autor desafia as modernas
narrativas nacionais, analisando as lutas pelo sentido trazidas pelas suas
narrativas. O texto procura, por um lado, dar a perceber os termos de um
confronto entre uma memória da violência, corporalmente inscrita, e a denegação
da violência colonial no senso comum do Portugal democrático. Por outro lado,
procura compreender de que modo a noção de uma guerra evitável e injusta,
crescentemente sedimentada após o seu ocaso, cria um paradoxo para aqueles que,
tendo sido parte de uma força agressora, se configuram como vítimas.
Ungulani Ba Ka Khosa procura com o seu texto contribuir para o debate sobre as
políticas identitárias no Moçambique contemporâneo. Contrapondo a diversidade
identitária do tecido social do país à altivez ignorante das estruturas de
poder presentes no mesmo país, o texto problematiza, em vários momentos
históricos, a fratura cognitiva entre o projeto político nacional,
conceptualizado a partir das elites que controlam o Estado, e o plurilinguismo
e a polifonia que constroem o tecido social real.
No seu texto sobre memória, história e narrativa, Teresa Cruz e Silva expande
os desafios à escrita biográfica no contexto da luta nacionalista em
Moçambique. Centrando-se nas figuras de Zedequias Manganhela e Eduardo
Mondlane, a autora situa o seu trabalho na configuração e reconfiguração dos
discursos no contexto da 'recuperação' de uma história nacional,
relacionando-o também com o debate em torno da construção de figuras de heróis
nacionais. O artigo situa-se quer no quadro de uma história oficial de
Moçambique, quer no quadro da história institucional da Igreja Presbiteriana de
Moçambique/Missão Suíça, à qual os dois protagonistas se encontravam ligados,
desafiando o leitor a enfrentar as armadilhas da escrita biográfica.
João Paulo Borges Coelho, ao problematizar no seu texto como abrir a fábula,
propõe-nos uma discussão sobre as complexidades associadas ao uso político do
passado na construção da história em Moçambique. Como o autor sublinha, a
narrativa fundadora da nação moçambicana permanece ancorada em episódios
efabulados sobre a luta de libertação. Esta narrativa, desenvolvida a partir de
um conjunto de oposições binárias e em noções específicas de experiência e
subjetividade, está enraizada no depoimento de um conjunto de testemunhas desta
luta, cuja autoridade moral nunca é questionada. Esta narrativa efabulada,
refém de aliança íntima entre o poder e o conhecimento sobre o passado recente,
continua a procurar legitimar o exercício da autoridade em Moçambique,
desafiando qualquer ação em prol da democratização da história.
O número encerra com um depoimento pessoal de Aniceto Afonso, membro do
Movimento das Forças Armadas de Portugal, estacionado na frente de guerra em
Moçambique, à altura do golpe de 25 de abril de 1974. A análise atenta dos
acontecimentos e atores envolvidos no golpe é reveladora da importância
política deste, embora a consistência militar do grupo do MFA fosse mais
frágil, como o autor argumenta. Uma leitura incontornável para uma melhor
compreensão dos processos de descolonização que marcaram a transferência de
poderes para os novos países independentes em 1975.
A rutura com o passado colonial está, como este número da revista expõe,
repleta de episódios de continuidade com relações e projetos forjados nos anos
que antecederam as independências. Estas reflexões, no seu conjunto, ecoam um
apelo ao revisitar da história, sinal inequívoco do fracasso de qualquer
metanarrativa nacional. Estes debates chamam a atenção para fraturas que
atravessam as sociedades pós-coloniais e para a necessidade de um amplo
processo de desvendamento de memórias de violência. O estudo dos processos que
geraram estas fraturas é uma condição para a reconciliação e reconstituição dos
países, e para um futuro de paz e progresso social. Como estes textos espelham,
um conhecimento detalhado da história, assente em detalhes texturizados, e não
apenas em generalizações ou versões higienizadas dos processos históricos, abre
espaço para uma releitura e mesmo reinvenção destes processos, para imaginar o
futuro de uma forma que evita a repetição dos erros e a imposição de uma
leitura singular e simplista dos passados. As múltiplas memórias e
esquecimentos sobre os episódios de violência colonial e das resistências
nacionalistas permitem a afirmação de outras narrativas que desafiam as
leituras hegemónicas, reacionárias, que paralisam qualquer vontade de mudança.