Violência colonial e testemunho: Para uma memória pós-abissal
Introdução
A Guerra Colonial1 constitui um momento fundador da realidade sociopolítica do
Portugal contemporâneo. Desde logo, porque a transição democrática encetada com
o 25 de Abril está intimamente ligada ao conflito que entre 1961 e 1974 opôs as
Forças Armadas portuguesas aos movimentos independentistas em Angola,
Moçambique e Guiné-Bissau. Na verdade, a revolução que em 25 de Abril de 1974
foi levada a cabo pelo Movimento das Forças Armadas resulta em grande medida do
desgaste produzido pelo arrastamento da Guerra. Estamos perante um conflito com
profundas consequências humanas, pelas marcas deixadas nos combatentes dos
diferentes lados da contenda, cujas vidas foram significativamente atravessadas
pela experiência da Guerra, e pelas incontáveis vítimas civis, sujeitas que
foram a massacres, deslocamentos forçados e a violências de toda a sorte.
A magnitude do impacto da Guerra Colonial traduz-se, face à dimensão e recursos
de Portugal, de várias formas. Em primeiro lugar, pela existência de três
frentes de combate - Angola, Guiné-Bissau e Moçambique -, distantes
de Lisboa e distantes entre si.2 Em segundo lugar, traduz-se no elevado número
de homens que foram colocados ao serviço da manutenção do império colonial,
tanto através de recrutamento na metrópole, como por via de recrutamento local
nas colónias:3
Desde o fim de 1961 até 1974, o número de pessoal do Exército em
África aumentou de 49 422 para 149 090, representando uma taxa anual
média de crescimento de cerca de 11 por cento. […] Portugal foi
forçado a mobilizar cerca de 1 por cento da sua população para
combater em África e não podia simplesmente manter esta drenagem
nacional de pessoal. Numa base percentual, tinha mais homens em armas
do que qualquer outro país, à excepção de Israel. (Cann, 2005: 109,
126)
Assim, resulta desconcertante perceber o lugar residual que a Guerra Colonial
ocupa no senso comum produzido e reproduzido sobre o que sejam a história
recente e a identidade portuguesas ou, mais amplamente, sobre o profundo
impacto do ciclo colonial no tecido social português.4 Neste texto, auscultando
os homens que viveram e fizeram a Guerra, em particular os que ficaram marcados
por uma deficiência no seu curso, refletimos sobre o lugar que a violência
colonial ocupa na memória e na experiência social em Portugal.
Compreender a disjunção que em Portugal se sedimentou entre quem fez a Guerra e
a ordem sociopolítica e cultural que a silenciou ao absurdo, implica, neste
texto, reconhecer uma política da memória que vigorou e vigora no Ocidente em
relação à experiência colonial e à violência que a instaurou e perpetuou.
Pulsamos uma memória que, descendendo da casa do "pensamento abissal
moderno" (Santos, 2007), define como princípio civilizacional, tão
desesperado como eficaz, o esquecimento das atrocidades que os países europeus
perpetraram nos territórios colonizados.
Desta forma, recrutando a noção de "pensamento abissal" de
Boaventura de Sousa Santos (2007; 2014) identificamos dois sistemas de
significado, velando sobre a Guerra Colonial em sentidos opostos: a memória
abissal e a memória pós-abissal. A memória abissal constitui um sistema de
significado, dominante, no qual, durante décadas, a violência da Guerra
Colonial foi ostensivamente apagada, silenciada e empurrada para o
esquecimento. Este sistema de significado é aquele que se concerta com as
representações míticas sobre a identidade portuguesa, nomeadamente a ideia,
ainda vigente, de Portugal como uma potência colonial não violenta ou como um
país de brandos costumes. Identificamos outro sistema de significado, a memória
pós-abissal, subalterno na sociedade portuguesa, no qual a Guerra Colonial
emerge não só como um facto incontornável da história recente de Portugal,
desalojando o lugar ocupado por "excesso mítico de interpretação"
(Santos, 1999: 49), mas como um fator que persiste marcando uma paisagem social
no presente.
Assumimos uma perspetiva que, incidindo mormente na experiência dos Deficientes
das Forças Armas (DFA) que regressaram a Portugal após a Guerra, se encontra
situada por um análogo trabalho de recolha junto dos combatentes africanos
residentes em Moçambique, tanto os que lutaram pela independência de Moçambique
(combatentes da Luta de Libertação Nacional), como aqueles que, tendo feito
parte do Exército português, após a Guerra cumularam à deficiência o estigma da
traição. Não sendo este o espaço para analisar a singularidade de cada um
destes percursos, cabe sublinhar que os diferentes lados do pós-Guerra se
inscreveram em processos histórico-políticos sumamente distintos.5 Por exemplo,
no que à contextualização narrativa da deficiência diz respeito, é
suficientemente ilustrativo percebermos como nas histórias dos ex-combatentes
da FRELIMO a deficiência surge como signo de um sacrifício conducente à
conquista da autodeterminação e ao fim do jugo colonial, como um signo de uma
narrativa heroica do sangue fundador de uma nação independente (ainda que o
devido reconhecimento político desse sacrifício seja um ponto de acesa
controvérsia). Num tal quadro, em que a Guerra ganha o nome de "Luta de
Libertação Nacional", a relação entre deficiência, memória social e
narrativa pessoal encontra-se constituída em termos muito diversos daqueles que
são oferecidos pela realidade portuguesa. Neste texto, centramo-nos no contexto
português para analisar a persistência de uma construção "ainda
colonial" nos próprios mecanismos que, no presente, fazem da violência
colonial algo suficientemente longínquo ou insignificante para que se possa
menorizar ou denegar.
Os deficientes das Forças Armadas
Não é difícil supor as enormes repercussões de um conflito em que o Exército
português terá mobilizado mais de um milhão de homens ao longo de 13 anos, em
que terão morrido 8290 soldados, e em que o número de combatentes que
adquiriram deficiências permanentes (físicas e psicológicas) se estima nas
muitas dezenas de milhar (ADFA, 1999).
Nenhuma instância materializa tão bem o abandono e exclusão social vividos
pelos DFA como o invariável espaço de moratória destes ex-combatentes no seu
regresso da Guerra: o Hospital Militar, em Lisboa. Como a gravidade das
situações clínicas o justificasse, ou porque o acesso a cuidados médicos fosse
escasso, era tal a quantidade de feridos face às estruturas de resposta, que
muitos DFA ficavam longo tempo, às vezes anos, no Hospital Militar de Lisboa. A
toponímia de algumas das valências do hospital é esclarecedora. O designado
"Depósito de Indisponíveis"6 exprime bem a sensação de abandono
expressa por muitos dos ex-combatentes que ali viveram (sentindo que ali foram
literalmente depositados); já o "Texas", designação informal
popularizada do anexo do Hospital Militar Principal,7 refere o ambiente de caos
e desordem generalizada (qual Far-West) que se vivia.
Os hospitais situados nas colónias, para onde muitos dos DFA foram inicialmente
evacuados, permitiam já perceber o quadro de exaustão das estruturas médicas,
perante a intensidade da Guerra:
Eh, pá... no espaço de três, quatro horas, já estava em Bissau.
Estava em Bissau e partir daí... […] No Hospital de Bissau, e aí é
que eu tive noção de que aquilo era uma guerra a sério!... Eu quando
cheguei ao bloco operatório, no corredor - parece que estou a
ver - era só indivíduos embrulhados em cobertores, a gritar, à
espera de vaga. Entravam para os blocos os mais prementes. E quando
cheguei ao Bloco, na pedra em que me deitaram... Pronto. Ainda vi,
debaixo da pedra, alguidares de carne humana... Carne! Cortada...! E
aí fiquei, realmente traumatizado. Se já vinha traumatizado, mais
traumatizado fiquei. E depois era a toda a hora os helicópteros a
chegar com gente ferida... (Armindo,8 entrevista)
Uma vez no Hospital Militar, em Lisboa, os DFA viveram um aparatoso abandono
imposto pela escassez de recursos médicos, de pessoal e de espaço:
Olhe, o confronto com o Hospital Militar de Lisboa não podia ser pior
do que o que foi. Eu cheguei à Estrela, como lhe disse, vim de noite,
fui para as urgências... Depois, fui para a medicina de oficiais. Na
medicina de oficiais, estavam lá todos aqueles alferes milicianos
vindos da guerra sem braços, sem pernas, e tal... E cegos na altura
estávamos lá três. Três cegos. Era eu, o falecido Maurício, que tem o
nome deste auditório e o Silvério, que é um indivíduo cego e sem
mãos. Mandaram-me lá para um quarto sem me dar qualquer apoio
psicológico, sem me ensinar nomeadamente a ir da cama à casa-de-banho
para ser autónomo. Não me ensinaram nada. Pronto, parecia um…
Digamos, eu tive a sensação… Tive, tenho ainda hoje, essa sensação de
que eu era um… Pronto, era um fardo, era uma coisa que já não era
útil para a guerra, que tinha ficado cego e pronto. A retaguarda era
assim que nos tratava: um lixo. Eh pá, e uma pessoa fica cega, eu,
pelo menos, passei por isso, eu pensava que nem sabia comer, nem que
eu sabia comer sozinho, nem que conseguia andar sozinho… As
enfermeiras iam lá levar… Enfermeiras ou ajudantes, não sei. Iam-me
levar a comida e diziam assim: "Senhor alferes, está aqui a
comida." Assim ao fundo da cama havia uma mesinha, punham-me lá
a comida e depois, se eu quisesse ia comer. (Rogério, entrevista)
As histórias de desamparo vividas no Hospital Militar cruzam-se com muitos
relatos de vidas de álcool e prostitutas na noite de Lisboa, achadas por muitos
daqueles que estavam em condição de sair como a única "terapia"
realmente acessível. Neste contexto, os DFA foram igualmente sujeitos a uma
lógica deliberada de invisibilização, estratégia que o regime ditatorial usou
para minorar o impacto das sequelas da Guerra na sociedade portuguesa, tanto no
que se refere aos mortos como aos feridos. Por exemplo, as urnas com os
soldados mortos eram sempre tiradas dos barcos de noite, sendo depois
transportadas de modo discreto para as suas comunidades de origem (Maurício,
1994; Antunes, 1996). Do mesmo modo, havia regras para que os DFA que estavam
nos hospitais não saíssem para a rua em grupo, para não criarem alarme social:
Sim, sim, vamos lá ver, três ou quatro indivíduos, decidíamos ir
jantar, não podíamos sair três, quatro indivíduos de cadeira de
rodas, não é? Saía um de cada vez, chamávamos os táxis, nós tínhamos
um esquema entre nós para chamar os táxis, depois eu ia num táxi, o
taxista arrumava a cadeira atrás […] E depois encontrávamo-nos todos!
Porque, vamos lá ver, eles não deixavam que quatro de cadeira de
rodas saíssem à porta do hospital. (Eduardo, entrevista pessoal)
Num certo sentido, a invisibilidade e abandono a que os DFA foram sujeitos logo
após a Guerra, no Hospital Militar, prefigura a exclusão que viriam a sofrer no
Portugal democrático. Estamos perante uma liminaridade perpetuada pelo encontro
de duas formas de exclusão: a descontinuidade imposta pela experiência de
deslocalização produzida pela Guerra Colonial e a marca vivencial imposta pela
deficiência. No entanto, o Hospital Militar é, igualmente, o espaço de
capacitação e resistência. Foi lá que germinou a ideia de criação de uma
associação que, após o 25 de Abril, se viria a substanciar na Associação dos
Deficientes das Forças Armadas (ADFA). Estamos perante a communitasde que nos
fala Victor Turner (1967), o laço de solidariedade horizontal criado por
sujeitos liminares colocados à margem da sociedade:
Fui para a cirurgia de oficiais, na Estrela. No hospital militar da
Estrela, onde vou encontrar oficiais amputados, de pernas, de braços.
A cirurgia de sargentos era mesmo ao lado, onde eu vejo passar
furriéis amputados dos braços, paraplégicos, tetraplégicos, cadeira
de rodas... Na oficina de oficiais, na liga dos tetraplégicos… No
quarto ao lado do meu estava um cadete tetraplégico, mais um alferes
paraplégico, e eu disse assim "alto lá! Isto é de facto o mundo
a que eu pertenço agora! Mas é um mundo habitado!". Eu já não
estou sozinho nesse mundo, não é? Há por aqui outras pessoas! […] As
pessoas, apesar de tudo, viviam! Não é? Viviam, e brincavam, e
contavam anedotas e... enfim, e eu comecei a entrar nesse mundo
também, não é? E a viver! E a viver. Digamos que isto é um mundo
fechado. É um mundo de pessoas com ferimentos graves, profundos. E
com deficiências profundas. O pessoal hospitalar, desde os médicos
aos auxiliares, passando pelo pessoal de enfermagem, lidava connosco
de uma forma humana, não é? De uma forma, enfim, encorajadora até.
Pronto, era aquele mundo. Mas quando saio da cirurgia de oficiais e
vou para a Medicina de Oficiais, para o edifício principal da
Estrela, daí passo a sair. Portanto, enfim, já não precisava de
estar... já não estava acamado, já não precisava de estar...
(Mariano, entrevista pessoal)
Esta partilhada experiência de abandono, de falta de cuidados médicos, de
compensações, de horizontes de reinserção social, efervesceu como revolta no
Hospital Militar de Lisboa e seria materializada na Associação dos Deficientes
das Forças Armadas, criada em 14 de maio de 1974.
Após o 25 de Abril, face à continuada negligência que os deficientes de guerra
vinham percebendo, a ADFA cresce da convicção de que a revolução não alterara a
negligência do poder político. Tratava-se, pois, da luta pela inscrição de uma
nova agenda reivindicativa num clima revolucionário em que expectativas
exaltantes em relação ao futuro estabeleceram uma ordem social pouco afeita à
memória da Guerra. Nas palavras de um dos entrevistados:
Veio o 25 de Abril, foi assim uma espécie de primavera, depois de um
longo inverno e isso falar de inverno ou primavera não é muito
conveniente, então isso ficou esquecido durante muito tempo. (Heitor,
entrevista pessoal)
De facto, a evocação de momentos de conflito, em que o voo pelo passado carrega
igualmente complexos processos de atribuição de sentido ou imputação de culpa,
tende a criar resistências à evocação que, no limite, sustêm a ordem social
(Connerton, 1989; LaCapra, 2001; Barkan, 2001). Como refere Ian Hacking, a
elisão da guerra é um mecanismo muito comum: "As nações proverbialmente
gostam de esquecer os estilhaços das suas guerras passadas" (1996: 78).
No entanto, para que possamos perceber como operam estes processos de
esquecimento, importa reconhecer de que modos tais "estilhaços" são
inscritos nas histórias particulares que os ocultam. No caso de Portugal, tanto
quanto perceber os mecanismos que durante a ditadura justificaram a Guerra, ao
mesmo tempo que minimizavam a sua real dimensão, cabe entender de que forma o
25 de Abril veio a consagrar tal conflito como inexistente ou de escusada
memória.
No entanto, seja para os civis que sofreram as suas consequências, seja para
aqueles ex-combatentes mais fortemente afetados pelas consequências da Guerra
- como é o proverbial caso dos DFA - esse desejo avultava como uma
radical impossibilidade, tal o manto com que a violência da Guerra se inscreveu
nos seus corpos e nas suas memórias.9 Relativamente aos DFA, tudo se passa numa
contradição entre o "excesso de memória" destes ex-combatentes (na
medida em que carregam as marcas biográficas, psicológicas e corpóreas da
Guerra Colonial) e o manifesto silêncio da sociedade portuguesa face a um tão
significativo conflito. Assim, a fim de entendermos cabalmente este
desencontro, convém perceber alguns fatores e conjunturas que potenciaram o
ativo de apagamento da Guerra Colonial da memória social portuguesa.
Em primeiro lugar, importa perceber que o Movimento das Forças Armadas,
responsável pela revolução, nasce do descontentamento de oficiais de patente
intermédia em relação à Guerra. Ou seja, o poder que se estabelece no 25 de
Abril é fortemente marcado pela presença de militares que, a despeito das suas
posições críticas - corporativas ou políticas - em relação à
Guerra, foram parte ativa no esforço de guerra. Assim, o tema da guerra
implicava os mesmos agentes que se tornaram responsáveis pela revolução e que
assumiram inequívoco protagonismo na transição democrática. Se ao regime
ditatorial cabe, inequivocamente, a responsabilidade política pela assunção de
guerra, o regime democrático nasce pela mão de um movimento de militares que,
tendo estado implicados na Guerra, estavam longe de a poder ver de um modo
inteiramente distanciado.
Em segundo lugar, sendo verdade que a evocação condenatória da Guerra estava
constrangida pelas figuras que protagonizaram a mudança de regime, pouco espaço
haveria para a sua evocação através da reivindicação heroica. Vários fatores
explicam este facto, a saber: a noção de que, mesmo do ponto de vista
estratégico-militar, se tratou de uma guerra perdida10 (ou, pelo menos, que não
poderia ser ganha);11 a deposição dos poderes políticos que sustentaram a
bondade patriótica da Guerra; e a condenação internacional de uma Guerra que,
no seu esforço de deter a vaga de descolonizações, percebidas como inevitáveis,
se veio conceber, quase consensualmente, como absurda e anacrónica. Portanto, a
"comunidade imaginada" (Anderson, 1983) que em Portugal se
constituiu após o 25 de Abril extirpou a Guerra do seu passado, não obstante
ser um facto recente com enorme impacto ou, se quisermos, talvez exatamente por
causa da magnitude do impacto traumático que dela resultou.
Paul Ricoeur exprime bem o desafio que o testemunho coloca conquanto nos remete
para "testemunhas históricas" cuja capacidade de demover os lugares
comuns - acerca da sociedade e do seu passado - muitas vezes
corresponde à solidão da memória:
[…] em última análise, o nível elementar da segurança da linguagem
numa sociedade depende da confiabilidade, e portanto na prova
biográfica de cada testemunha, caso a caso. É contra este fundo de
suposta confiança que emerge, tragicamente, a solidão das
"testemunhas históricas" cuja experiências
extraordinárias dificultam a capacidade para uma compreensão habitual
e ordinária. Mas existem também testemunhas que nunca encontram uma
audiência capaz de as ouvir ou de escutar o que têm a dizer.
(Ricoeur, 2004: 167)
A solidão das testemunhas, neste caso, resulta do modo como o silenciamento da
Guerra produz como "extraordinárias" as experiências - afinal
tão comuns - daqueles cujas biografias ficaram marcadas pelo irremediável
da guerra. Mais do que a confiabilidade, o que aqui avulta é, pois, a falta de
interlocutores que validem as violências impostas pela Guerra. A possibilidade
de partilha do trauma e da violência é, assim, um elemento essencial para a
ressignificação do sujeito isolado pelo excesso de memória:
O trauma partilhado por uma comunidade inteira cria um espaço público
potencial para reenunciação. Se uma comunidade concorda que os
eventos traumáticos aconteceram e incorpora este facto na sua
identidade, então a memória coletiva sobrevive e a memória individual
pode encontrar um lugar (ainda que transformado) dentro dessa
paisagem. (Kirmayer, 1996: 189-190)
Estamos perante a busca de hospitalidade à memória e ao reconhecimento das
identidades passíveis de se afirmarem dentro de uma comunidade, numa
transformação recursiva entre sujeito e narrativa social:
O espaço social ocupado por histórias de populações marcadas por
feridas pode permitir que se quebrem os códigos culturais rotineiros
veiculando contradiscursos que ponham em causa os significados
adquiridos acerca de como as coisas são. Dessas histórias
desesperadas e subjugadas pode bem surgir o apelo que altere os
lugares comuns - tanto ao nível da experiência coletiva como da
subjetividade individual. (Das e Kleinman, 2001: 21)
A memória da Guerra Colonial constitui um espectro que assola, ainda, a
sociedade portuguesa. Para as representações hegemónicas sobre o Portugal pós-
imperial os DFA constituem algo de uma presença fantasmática, corpos estranhos
à narrativa social dominante cujas vozes remetem para um tempo, radicalmente
inscrito no passado ou determinado como não existente.
Para os DFA, a deficiência emerge como o segundo fator na produção de uma
exterioridade em relação à sociedade portuguesa. Conforme fica patente nos
diversos relatos sobre o regresso a Portugal e sobre a busca de itinerários de
inclusão social, os Deficientes das Forças Armadas, não obstante algumas
garantias que foram conquistadas na legislação compensatória, confrontaram-se e
confrontam-se com a fortíssima discriminação social a que as pessoas com
deficiência estão expostas na nossa sociedade. Assim, mesmo após uma
reconstrução pessoal e coletiva em que a difícil herança da Guerra é assumida
como parte de percurso a ser empreendido, permanece uma linha de desigualdade
social que junta, excluindo, os DFA às demais pessoas com deficiência. A
realidade das pessoas com deficiência em Portugal persiste marcada por
fortíssimas condições de marginalização social e exclusão económica (Martins,
2006). Tal perpetuação acontece a despeito das sucessivas transformações
legislativas e das políticas sociais que foram sendo introduzidas nas últimas
décadas.
Reside esse entrave numa conceção de deficiência que se encontra profundamente
ancorada a uma "narrativa da tragédia pessoal" (Oliver, 1990), uma
gramática cultural que permeia as vidas das pessoas com deficiência qual
poderoso referente que cria as condições da sua verdade:
[…] de um momento para o outro apanho-me cá fora, deparo com todas as
barreiras possíveis e imaginárias, barreiras arquitetónicas,
barreiras humanas, de pessoas que encaravam a nossa situação
chamando-nos "coitadinho" "desgraçadinho",
isto custava um bocadinho a ouvir, quer dizer, e depois quando
chegávamos a algum edifício ficávamos a olhar para os degraus, quando
não há barreiras arquitetónicas - ainda hoje isso acontece
- uma pessoa parece que se "esquece" da
deficiência, mas quando as encontra parece que há ali um sininho logo
a trabalhar […] era muito difícil e mesmo os próprios táxis para me
levarem daqui para acolá, havia um ou outro taxista que punha
objeções por causa da cadeira… (João, entrevista)
À semelhança do que acontece noutras sociedades, as pessoas com deficiência em
Portugal estão sujeitas a enormes obstáculos à sua participação social:
atitudes e conceções discriminatórias, barreiras arquitetónicas e
comunicativas, apoio inadequado no acesso à educação, critérios excludentes no
acesso ao mercado de trabalho, salários baixos e condições de trabalho
precárias. Se é verdade que as estruturas e valores excludentes das pessoas com
deficiência são comuns em muitas sociedades, este aspeto - relativamente
a outros países - é agravado em Portugal pela fragilidade do movimento
social de pessoas com deficiência (Martins, 2006; Fontes, 2009). Trata-se de um
movimento cuja capacidade reivindicativa é, ainda, muito reduzida, porventura
uma duradoura consequência do controlo que o Estado exerceu sobre a sociedade
civil durante a longa ditadura do século xx (Santos e Nunes, 2004). Ao
contrário do que acontece, por exemplo, no Reino Unido ou nos Estados Unidos da
América, onde a politização da deficiência tem tido um importante impacto
(Barnes, 2003; Hahn, 2002), em Portugal prevalecem as abordagens fatalistas que
individualizam a deficiência e naturalizam as suas implicações. Dadas as
condições de vida das pessoas com deficiência, as organizações que as
representam, desde o início, têm investido mais na provisão de serviços,
funcionando como uma extensão do Estado social. Desse modo, os recursos humanos
disponíveis nas organizações tendem a ser desviados de um posicionamento
político passível de transformar a sociedade - naquilo que são as suas
estruturas discriminatórias das pessoas com deficiência.
Neste particular, cabe reconhecer o importantíssimo papel da ADFA enquanto
parte ativa na reivindicação política. Na verdade, muitos dos direitos
legislativos adquiridos pelas pessoas com deficiência após o 25 de Abril foram
inicialmente conquistados pelos deficientes de guerra e só mais tarde alargados
à generalidade das pessoas com deficiência. No entanto, podemos dizer que a
ação da ADFA tem sido mais contundente na demanda de compensações financeiras
pelas deficiências adquiridas na Guerra, do que na construção de uma sociedade
inclusiva em que as pessoas com deficiência possam participar de uma forma
cabal.
A luta assumida pelos Deficientes das Forças Armadas entre 1974 e 1975, sob
diversas formas - manifestações, tomada de espaços públicos, etc.
-, granjeou à ADFA um reconhecimento público e político que se mostrou
essencial tanto para a legislação que viria a ser promulgada para garantir
reparações, como para a afirmação da ADFA enquanto um interlocutor merecedor da
atenção do poder político. Como dizíamos, a luta dos DFA teve, sem dúvida, um
importante efeito em muita da legislação e das estruturas de reabilitação que
depois seriam alargadas às demais pessoas com deficiência. Esta associação
detém hoje cerca de 14 mil associados e, além da representação política dos
interesses dos DFA, dos direitos e reparações, presta serviços aos associados e
suas famílias, fundamentalmente ao nível do apoio jurídico e administrativo,
mas também na vertente médico-social. Devido à especificidade das
reivindicações da ADFA, as suas conquistas e agendas não são inteiramente
transponíveis para as demais pessoas com deficiência. Ou seja, o elevado poder
reivindicativo da ADFA na defesa intransigente dos direitos dos DFA, seja pelo
modo como historicamente soube dar prova da sua capacidade de mobilização, seja
pela elevada dívida simbólica que as deficiências adquiridas ao serviço da
nação colocam ao Estado, terá feito mais pelas compensações atribuídas aos DFA
do que, propriamente, por transformação social capaz de criar uma sociedade
inclusiva para as pessoas com deficiência.
Violências na carne
Quando nos debruçamos no modo como a Guerra surge nas histórias dos DFA,
confrontamo-nos com as múltiplas instâncias da violência: violências sofridas,
violências testemunhadas ou perpetradas. Em relação à generalidade dos ex-
combatentes, os testemunhos dos DFA têm de singular a invariável existência de
um evento ou experiência que, engendrando uma deficiência, estabelece um antes
e depois nas suas vidas.12 Nas histórias a que tivemos acesso, a experiência de
um ferimento para quem o sofre surge, quase sempre, mediada ou antecipada pelo
contacto com as experiências prévias de companheiros mutilados em combate:
Quando acordei apercebi-me que estava sem uma perna, fiquei 1 segundo
ou 2 sob o efeito do sopro da explosão, mais nada do que isso, fiquei
em estado de choque, obviamente, depois havia pessoas ligeiramente
feridas, assim com estes estilhaços no rosto e tal, pela projeção da
areia, era uma mina antipessoal se não também tinha desaparecido um
ou outro. O helicóptero demorou pouco tempo a vir, diga-se, em abono
da verdade, que a força aérea fez um trabalho exemplar lá e os
helicópteros para as evacuações dos feridos demoravam muito pouco
tempo, mesmo a dezenas de quilómetros, sempre com guerra a acontecer
por todos os lados, um helicóptero ia lá passado não sei quantos
minutos, a mim pareceu-me muito tempo, obviamente, mas bem vistas as
coisas foi rapidamente. E não há mais nada a contar, quer dizer foi
assim, uma mina que rebentou, é uma coisa traiçoeira, absolutamente
estúpida, uma coisa de que nós não nos apercebemos de nada, apagamos
simplesmente e acordamos para uma realidade, bom essa bastante
chocante, que é ver uma perna como um osso de um frango cozido com o
osso à vista, com a perna em tiras de pele e de carne e não sei quê,
é uma visão horrorosa, à qual nós já nos tínhamos habituado. Já tinha
visto, por antecipação já sabia como é que as minhas pernas iam
ficar, de uma pessoa que pisa uma mina, é um terror absoluto apesar
de nós sabermos que corremos esse perigo diariamente mas para
podermos sobreviver a gente ultrapassa e tem que ultrapassar esse
medo. (Heitor, entrevista)
Na gramática da violência a que os combatentes estiveram sujeitos durante a
Guerra, os momentos que inscrevem a deficiência nas suas vidas não são, em si,
necessariamente, excecionais. O convívio com corpos de companheiros mutilados,
com o medo do rebentamento de uma mina antipessoal ou com a incerteza das
emboscadas, de algum modo trivializava os episódios que puderam suscitar marcas
irreversíveis. No entanto, o facto de essa violência se inscrever de forma
definitiva no próprio corpo, como inapagável marca da existência, carrega, do
ponto de vista da experiência vivida e da biografia, uma singularidade que é,
em larga medida, aquela que se liga à incomensurabilidade - ou difícil
comunicabilidade - da experiência incorporada (French, 1994). As
implicações da deficiência não são separáveis dos quadros culturais e lógicas
de poder em vigor nas diferentes sociedades (Ingstad e Whyte, 1995; Martins,
2013), no entanto, tal não nega o quanto a Guerra trouxe para muitos dos DFA,
por via de ferimentos ou de memórias disruptivas, transformações transgressoras
- corpóreas, ontológicas, fenomenológicas - que largamente
transcendem as possibilidades de "restituição" social.
Estamos, pois, em face de realidades que fogem às apreensões discursivas e onde
o corpo vivido assoma com incontornável vigor. A esta dimensão do sofrimento
pessoal, eminentemente corporal, não totalmente apreensível na sua relação com
elementos sociais, chamamos "angústia da transgressão corporal"
(Martins, 2006; 2008). A angústia da transgressão corporal refere-se à
vulnerabilidade na existência dada por um corpo que nos falha, que transgride
as nossas referências na existência, as nossas referências no modo de ser-no-
mundo. Assim entendida, a angústia da transgressão corporal concita-nos a
reconhecer dimensões de dor, sofrimento e ansiedade existencial onde, contra
sedimentada negligência, o corpo vivido, o conhecimento incorporado e as
emoções adquirem estatuto nobre nas reflexões socioantropológicas.
Falamos de sofrimentos e frustrações que há décadas são parte das vivências
quotidianas dos DFA:
Mas isto é uma coisa diária; ainda hoje, ainda hoje… Eu estava a pôr
uns papéis… num envelope… e queria pôr e não conseguia, a mão não
dava, não é… Uma revolta muito grande, não é… Um gajo querer
trabalhar, não… É uma revolta… Só as pessoas que passam por isto é
que sabem a revolta que a gente sente… (Patrício, entrevista)
Como eu estou, o senhor vê, eu se fosse a enxotar uma mosca da cara,
não faço. […] Sofre-se muito, sofre-se muito. Uma pessoa que anda em…
- é o caso desses meus colegas que têm duas pernas artificiais
- de qualquer maneira, eles sofrem, mas é diferente. Agora, eu,
na situação em que estou, sofro muito, muito, muito. O senhor já
viu... O senhor já reparou o que era um indivíduo pensar em construir
uma família, em durante todo o tempo que Deus... fosse vivo, andar
cá, levar uma vida, eu não digo totalmente só de gozo, mas levar uma
vida diferente. Agora, vê-se nesta situação! […] Primeiro que a gente
acabe de me dar de comer, é uma coisa... Depois, ficar na cama,
fechar a luz - eles fecharem-me a luz - e eu ficar na
cama, e a única coisa que dá à gente é vontade de chorar. Porque,
ninguém imagina o que é este sofrimento. (Tiago, entrevista)
Centrando-se nos eventos que causaram a deficiência nas longínquas frentes de
combate, os DFA apresentam-se, mormente, como vítimas da história: instrumentos
de uma Guerra cujos termos raramente percebiam e cuja justiça, hoje, poucos
subscrevem.13 Pesem embora as diferentes visões políticas sobre a Guerra que
constituem o universo dos Deficientes das Forças Armadas, pese embora a
incipiente posição crítica que tendeu a marcar a hora da partida dos jovens
combatentes, é lícito dizer que o universo dos Deficientes das Forças Armadas é
dominado por um posicionamento de condenação da Guerra. Tal quadro deve-se,
como acima referimos, a determinados fatores que nalguns casos se cumularam:
deve-se à perspetiva histórica forjada seja pelo 25 de Abril, seja pelo
reconhecimento que um pouco por todo o mundo veio a sancionar a legitimidade da
senda anticolonial pela autodeterminação dos povos; deve-se ao confronto
pessoal com a violência da Guerra e iniquidade do colonialismo; deve-se ao modo
como a deficiência adquirida exacerbou a noção de uma Guerra sem sentido ou o
sentimento de força descartável; deve-se, igualmente, como veremos à frente, ao
modo como a própria AFDA se veio a estabelecer politicamente contra uma
narrativa de celebração heroica, bem patente no mote que viria a ser
consagrado: "A Força Justa das Vítimas de uma Guerra Injusta!".
No entanto, atentando às muitas formas de aparição da violência nas
experiências e narrativas que nos foram sendo confiadas, logo percebemos a
insustentabilidade de uma narrativa que configure os DFA como meras vítimas.
São, muitas vezes, cumulativamente vítimas, perpetradores e testemunhas de
violência. São vítimas da Guerra no sentido em que nela adquiriram deficiência,
no sentido em que muitos lutaram um combate que nunca sentiram como seu, mas
são vítimas paradoxais: porque foram parte de um exército imperialista, e
porque muitas das suas histórias retratam-nos, igualmente, como perpetradores
de violências.
No caso Marcelino, a memória arrasta a vitimação e a culpabilização numa mesma
leva disruptiva. O efeito perturbador de um ato de violência que cometeu sobre
um civil emergiu apenas em 2004, altura em que as imagens da Guerra do Iraque
lhe vieram despertar as memórias da Guerra Colonial, obrigando-o a procurar
apoio psiquiátrico:
Faz-me sofrer bastante. Acredito que, na altura, não tive problemas
em fazer o que fiz […] Não tive problema nenhum em fazer o que fiz.
Mas hoje, penso que não os devia ter cometido, e isso afeta-me.
Afeta-me e muitas vezes... por exemplo, à noite, quando estou com
este zumbido, não é por acaso que de vez em quando, tenho de tomar o
comprimido para dormir para... Hoje, estou ali sozinho, a pensar
naquilo, e passo horas a chorar. Coisa que, na minha vida, não... eu
não era choramingas, não... (Marcelino, entrevista)
Estamos, pois, perante histórias em que a possibilidade de exercer a violência
desmedida, mesmo se não consumada, esteve sempre presente:
Que às vezes fala-se em chacinas. E dizem que os militares fazem
isto, fazem aquilo. E eu... Todos nós somos capazes de fazer isso.
Depende das oportunidades, depende das ocasiões. Eu, naquele momento,
quando eu estava em plena operação de queimar aquela aldeia e de
levar a população, se há alguém, se há, pronto, um tiro, ou uma…,
alguém que estivesse..., um guerrilheiro que estivesse ali, que me
desse um tiro, [palmada]. Nós matávamos a população, não tenho
dúvidas nenhumas. Eu seria hoje… E pesar-me-ia, hoje na minha cabeça,
uma chacina. Está a ver? A guerra é terrível. A guerra é terrível,
porque me transforma em bicho, a matar ou morrer. (Juvenal,
entrevista)
Nos relatos que nos foram sendo confiados, o impacto deferido pelos atos
cometidos na Guerra prende-se com atos censuráveis cometidos sobre as
populações enquanto episódios da violência da Guerra muitas vezes sob o ímpeto
colérico de vingar a morte ou ferimento de um camarada ou de punir as
populações por suspeita de conluio com o inimigo. De igual modo, estes momentos
passíveis de reprovação posterior surgiam no trato com os prisioneiros. O
relato de Hélio é disso bem impressivo:
Estávamos emboscados há horas… com aquelas, aquela coisa, começa a
raiar o dia, há um indivíduo que foi lá disparar, foi esse […]
"alto, alto, ou faço fogo", o gajo não parou, ele atirou
e apanhou aqui assim nas costas, e o homem ficou com a bexiga na
mão…e o que ele levava não era arma nada, era uma pá daquelas do
arroz, àquela hora ainda estava escuro parecia-nos uma arma…o homem
aguentou duas horas com a bexiga na mão e veio no helicóptero até ao
aquartelamento, chegou à enfermaria e tinha morrido um grande amigo
meu, um furriel de Santarém, o […], ainda estávamos, vários feridos,
ainda estávamos debaixo daquela coisa, ficamos… porque, isto passou-
se com alguns, porque havia lá, e esse indivíduo, pronto! Mas fomos
para o aquartelamento e sabe o que lhe fizeram, com um giz fizeram-
lhe um alvo e começaram com seringas a fazer tiro ao alvo na bexiga
do homem (pausa) isto é horrível, não é? (pausa), mas não éramos nós…
nós tínhamos sabido que na véspera tinham morrido indivíduos com uma
faca, estávamos, tudo ali, a malta, esse o […], não conseguimos tirá-
lo debaixo do fogo, e no outro dia passámos lá e os abutres comeram-
no todo… isto só visto. Estamos a falar de malta com vinte anos, nada
justificava mas o facto é que… e estas cenas, estas cenas… o crime… é
realmente um regime, um governo deixar que crianças, os alferes com
23 e 24 anos, os capitães tinham 25 anos e nós tínhamos 20 e havia-os
lá com 19 e muita malta voluntária. Eu trabalhei com um agrupamento,
açorianos, que cortavam línguas e orelhas, os açorianos são danados,
e essa que eu apanhei, eles também tinham um medo deles, porque eles
não faziam prisioneiros… matavam tudo, tudo… (Hélio, entrevista
pessoal)
Esta consciência que nalguns DFA consagra uma autorreflexividade memorativa,
que concilia o reconhecimento do próprio sujeito enquanto vítima e agressor, é
diferentemente avivada pela noção do excesso e da responsabilidade pessoal,
pela assunção do vazio de valores morais imposto pelo absurdo da guerra, ou
pelo facto de o julgamento da história esmagadoramente definir Portugal como o
agressor colonialista, anacronicamente travando os ventos da mudança. Muitas
vezes a dificuldade de conciliar o reconhecimento da violência sofrida e a
violência exercida justapõe-se, sem um encaixe estabilizado, à dificuldade no
reconhecimento do DFA no seu ambíguo lugar de ex-combatente e crítico da
violência colonial.
Para uma memória pós-abissal
Além da violência de deficiência infligida devido à Guerra Colonial, além da
violência da discriminação imposta na nossa sociedade sobre as pessoas com
deficiência, os DFA confrontaram-se durante a parte mais significativa das suas
vidas com a violência do silenciamento das suas experiências, marcadas que
foram por uma Guerra que, antes e depois do 25 de Abril, foi
"interditada" do espaço e do debate público. Ainda que o espaço
associativo como o da ADFA, ou o espaço convivial dos jantares de batalhão ou
de companhia recuperem essas experiências, socializando-as, isso acontece
mormente num circuito relativamente fechado. A solidão da vivência e da marca
traumática da Guerra (corpórea ou memorativa) foi e é continuadamente
experimentada nas suas vidas sociais quotidianas (família, trabalho,
comunidades de residência). Não obstante o reconhecimento das trajetórias
particulares que engendraram um longo desencontro entre a memória vivida da
Guerra Colonial e o justo reconhecimento da centralidade histórica deste
conflito, acreditamos que, em última instância, a incomodidade
"fantasmática" trazida ao corpo social pelos DFA reflete algo de
mais fundo. Referimo-nos ao modo como no Ocidente a experiência colonial
persiste sendo ativamente produzida como inexistente, ou trivializada sob
alegações de "generosidade civilizatória" ou sob o heroísmo
expansionista, inscritos nas diferentes narrativas nacionais europeias (Santos,
2013; Lourenço, 2014), numa óbvia perpetuação daquilo a que Boaventura define
como as "linhas abissais da modernidade" (Santos, 2007). Tudo se
passa como se os discursos que criaram e tentaram manter intactas as
"províncias ultramarinas" tivessem, afinal, vingado em transformá-
las em "províncias finitas de significado" (Schutz, 1970: 252),
neste caso mundos de sentido singularmente povoados pela guerra e pelo racismo,
ainda embargados na fronteira que outrora definia o abismo entre metrópoles e
colónias.
Ao definir o pensamento moderno como abissal, Boaventura de Sousa Santos
enfatiza como persistem ainda os mecanismos que, separando sociedades
metropolitanas e territórios coloniais, desqualificam e invisibilizam as
experiências e saberes tidos como imanentes à zona colonial (Santos, 2007).
Nesse sentido, geram-se
distinções invisíveis [que] são estabelecidas através de linhas
radicais que dividem a realidade social em dois universos distintos:
o universo "deste lado da linha" e o universo "do
outro lado da linha". A divisão é tal que "o outro lado
da linha" desaparece enquanto realidade, torna-se inexistente,
e é mesmo produzido como inexistente. Inexistência significa não
existir sob qualquer forma de ser relevante ou compreensível.
(ibidem: 3-4)
Na mesma nota da proposta de Boaventura de Sousa Santos, creio que podemos
falar de uma memória abissal para caracterizar o modo como a experiência
colonial, naquilo que tem de mais característico - a violência que a
sustenta -, se encontra ausente nas histórias que constituem, no Norte,
as narrativas sobre o "outro lado da linha". É esta memória abissal
que consente historiografias nacionais em que a relação com o Sul global é
silenciada ou dobrada aos mitos fundadores que a um tempo expurgam o sofrimento
produzido pela senda colonial, renegam a permanência das suas lógicas e
produzem a não existência dos sujeitos que a testemunham. A valorização do
sofrimento segue, sem dúvida, linhas raciais que tiram do tempo, minimizando,
as vítimas africanas da Guerra e da violência colonial, convenientemente
longínquas, virtualmente inexistentes para a memória do Portugal metropolitano.
Quanto aos DFA de origem portuguesa, aqueles que regressaram após a Guerra,
outros foram os mecanismos que permitiram afirmar a sua inexistência enquanto
testemunhas da Guerra Colonial: a erradicação da Guerra do espaço público, a
permanência do mito lusotropicalista e a exclusão de vozes e experiências
marcadas pelo estigma da deficiência. Entre mundos, os DFA estão na
"sociedade metropolitana" mas não lhe pertencem inteiramente
conquanto carregam memórias embargadas, porque vindas dos "territórios
coloniais", que permanecem, segundo a sentença hegemónica a Norte, como
territórios de boa ou de não memória. Nesse sentido, os DFA, embora portugueses
e residentes em Portugal, são proverbialmente estrangeiros à memória política
que no Ocidente - por se constituir enquanto dominante - pôde
esquecer do colonialismo a violência que lhe foi imanente. Como refere Robert
Young, refletindo sobre autores que tratam o colonialismo em diferentes
lugares, "[a] diferença é menos uma questão de geografia do que o lugar,
político e cultural, de onde os indivíduos falam, para quem falam e como
definem o seu lugar de enunciação" (2001: 62).
Além do lugar político e cultural que tendencialmente constitui os DFA enquanto
vozes de denúncia de uma Guerra esquecida, eles são ontologicamente marcados
por uma posição corpórea em que a Guerra se inscreve de forma irredimível. Tudo
se passa como se o "acordo tácito" de diluir a memória da violência
colonial, vigente ordem política das sociedades ex-metropolitanas, fosse
desdito por "estilhaços humanos" que, atravessando a linha abissal,
carregam consigo histórias que deveriam ter ficado convenientemente longínquas
nas colónias distantes, em corpos que o racismo mais facilmente desqualificaria
como indignos de uma voz sofrida.
A memória pós-abissal, alego, é aquela cujo olhar para o passado inscreve a
violência colonial no centro da narrativa histórica da modernidade. A memória
pós-abissal é aquela que identifica a memória abissal enquanto um segundo
fôlego da violência colonial, uma violência que opera pelos seguintes
mecanismos: a racialização do valor da vida humana; a elisão dos testemunhos
que expõem as misérias produzidas pelo longo tempo do colonialismo; e a
desqualificação das memórias vindas "do outro lado da linha". Uma
memória pós-abissal da violência terá que ser capaz de conter as vastas
latitudes da experiência moderna, os vastos suis, carregando corpos e
violências, mortos e sobreviventes, reconstituindo, a Norte e Sul,14 os
estilhaços de uma violência que está longe de ter cessado.
As narrativas dos DFA, no modo paradoxal como nos permitem aceder à violência
colonial, constituem uma perspetiva muito particular de uma gramática mais
ampla que nos instiga à busca de diálogos e de sujeitos que, a Sul, nos trazem
de latitudes onde o esquecimento da senda colonial nunca chegou a ser uma
hipótese.