Do colonialismo como nosso impensado
RECENSÕES
Eduardo Lourenço (2014), Do colonialismo como nosso impensado.Prefácio de
Margarida Calafate Ribeiro e Roberto Vecchi
Catarina Laranjeiro
Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Colégio de S. Jerónimo,
Largo D. Dinis, Apartado 3087, 3000-995 Coimbra, Portugal
catarina.laranjeiro@gmail.com
Do colonialismo como nosso impensado
Eduardo Lourenço (2014), Do colonialismo como nosso impensado. Prefácio de
Margarida Calafate Ribeiro e Roberto Vecchi. Lisboa: Gradiva, 348 pp.
Filósofo e ensaísta português, há muito radicado em França, Eduardo Lourenço
emerge no cenário intelectual português como um dos mais irreverentes
pensadores sobre a "portugalidade" ou, por outras palavras, sobre o
que é "ser-se português". No livro Do Colonialismo como nosso
Impensado (2014) é-nos também revelado um surpreendente pensador anticolonial.
Ou melhor, um forte desconstrutor da mitologia colonial na qual o Portugal
contemporâneo se encontra alicerçado. Retratando Portugal como um país que
construiu a sua história extrapolando as fronteiras europeias, Eduardo Lourenço
problematiza o colonialismo português desde a tão celebrada epopeia marítima
até à lusofonia contemporânea.
Reunindo textos "publicados e inéditos, completos e fragmentários"
(p. 13), esta edição surge pela mão de Margarida Calafate Ribeiro e Roberto
Vecchi, ainda que orientada pelo próprio Eduardo Lourenço. Nem todos os textos
apresentam uma datação precisa, ainda que os ensaios obedeçam a uma lógica
cronológica, dividida em quatro partes, sendo estas: "Limiar: Contornos e
Imagens Imperiais", "Crítica da Mitologia Colonialista"
(década de 60 até 1974), "No Labirinto dos Epitáfios Imperiais"
(1974/75 e depois) e "Heranças Vivas". Contudo, é curioso observar
como ao longo do livro somos sistematicamente confrontados com interrogações
reiteradamente visitadas. Sendo o fio condutor uma profunda reflexão sobre as
diferentes formas que o colonialismo português assumiu, esta investida não
desenha uma linha unidirecional que percorre diferentes momentos históricos,
mas antes uma espiral onde as mesmas perguntas, os mesmos interditos e traumas
vão emergindo repetidamente: no Estado Novo, no quadro da revolução aberta com
o 25 de Abril e ainda no contexto criado com a entrada de Portugal na União
Europeia.
Assim, ainda que o texto mais antigo remeta a 1958 e o mais recente a 2003,
nada se perde em atualidade histórica. Nos textos que antecedem a Revolução de
Abril surpreendemo-nos com a lucidez provocadora com que Eduardo Lourenço
problematiza a relação entre Portugal e o Brasil. Primeiro, contrapondo o modo
como a antiga colónia era apresentada pelo regime de Salazar enquanto exemplo
de um colonialismo triunfante que chegou aos limites naturais de civilização e
desenvolvimento, tendo consequentemente a sua independência sido entregue a uma
elite branca. Em segundo lugar, desmontando a apologia do Brasil como
referência de uma mestiçagem, celebremente exaltada por Gilberto Freyre,
Eduardo Lourenço conduz-nos a uma viagem ao avesso, revelando como o mito
lusotropicalista foi, tardia e estrategicamente, incorporado no regime
ditatorial por forma a absolver o colonialismo português, convenientemente
considerado o mais brando entre os colonialismos: "Salazar quis
administrar aos olhos do mundo a prova que o nosso colonialismo é de essência
positiva e radicalmente diferente dos outros" (p. 29). E o Brasil era a
nação capaz de provar essa vocação lusotropical para "coabitação ativa e
interpenetração racial" (p. 37), constituindo-se como uma "Tábua de
salvação de afogados há muito na água de contradição histórica do colonialismo
nacional" (p. 60).
É com esta preocupação que o autor procura desmontar o discurso legitimador da
política ultramarina que, baseado na ideia de uma nação multirracial e
pluricontinental, defendia servir melhor os interesses africanos. No ensaio
"O Preto no Branco", em particular, é exposto como, paralelamente à
ação bélica, foi montada uma máquina de propaganda que prometia tornar as
províncias ultramarinas (com especial destaque para Angola) novos Brasis, razão
pela qual Salazar defendia que "Angola não precisa de se libertar, porque
já o está" (p. 72).
Se Eduardo Lourenço nos questiona sobre a apatia que envolveu a sociedade
portuguesa perante a intervenção militar e propagandística, coloca especial
enfâse nos setores opositores ao regime que, à semelhança deste, nunca se
questionaram sobre o que na sua ação havia de colonialista. Assim, as demandas
da esquerda encontravam-se também subordinadas "aos imperativos e
interesses da Nação colonizadora" (p. 113), sendo que para estes a
colonização era também "motivo de orgulho, proveito e consolação"
(p. 124). Por esse motivo, Eduardo Lourenço defende que a esquerda portuguesa
não soube no seu devido tempo "refletir e explicar ao povo português o
drama africano que a História lhe entregou para resolver" (p. 240).
"Deitámo-nos ao mar por não saber o que fazer em terra" (p. 148) é
uma das frases mais fortes de Eduardo Lourenço, ao defender que as colónias
surgem como um forma de compensar Portugal "pela sua pequeneza ou como um
meio de a tornar invisível" (p. 152). Ao desbravar a encruzilhada da
consciência portuguesa atual, é-nos revelado como a herança colonial
portuguesa, que iniciou o seu percurso há mais de 500 anos, continua por
resolver enquanto questão decisiva da identidade portuguesa. Perante tão pesada
herança, na qual a Guerra Colonial e os "retornados" avultam como
espectros, o autor alerta ser essencial acabar com o "psicodrama de raiz
africanista em que todos participámos ou participamos para exorcizar os
demónios de uma aventura histórica mal terminada com aparência de bem terminada
ou vice-versa" (p. 186).
O autor confronta-nos com uma espécie de amnésia coletiva, como se um país
inteiro sofresse de stress pós-traumático e quisesse esquecer-se de uma parte
significativa da sua História, com a qual não sabe lidar. Num dos seus ensaios
após Abril de 1974, o autor sugere: "é notório que uma parte da nossa
classe política e a opinião com ela solidária age como se o pesadelo africano
tivesse terminado na manhã de 25 de Abril" (p. 164). O facto de se ter
procurado esquecer o quanto os territórios ultramarinos foram governados com
"mão de ferro" e depois a "ferro e fogo" (p. 191)
fundou a uma omissão que levou a que o processo de "reconstrução pós-
colonial" fosse também um momento imbuído de colonialismo. Segundo o
autor, se durante a "missão civilizadora" não houve qualquer
preocupação em conhecer os problemas e demandas dos colonizados, o mesmo se
verificou no período pós-colonial. Longe de se questionar a história colonial
portuguesa e o seu lastro de racismo e violência, revisitou-se a já referida
parábola do Brasil: apresentaram-se as novas nações independentes como novas
pátrias lusas ou lusitanas, países fraternos com relações privilegiadas com a
antiga metrópole, no que Eduardo Lourenço considera o mais "desvariado
dos nossos sonhos imperiais" (p. 235). E assim, foi possível fabular um
final pretensamente conciliador para 500 anos de colonialismo que terminaram
com 13 anos de uma violenta Guerra Colonial. O processo de descolonização foi
assim acompanhado "das mesmas ficções, dos mesmos fantasmas que durante
séculos estruturaram a existência sonâmbula do nosso colonialismo
inocente" (p. 212). A reconstrução pós-imperial muniu-se dos mesmos
expedientes ideológicos que haviam legitimado o colonialismo, uma vez que
"de povo colonizador por excelência, multiespacial e racial, passámos a
nação criadora de nações" (p. 280). Neste sentido, a ideologia colonial
pela qual Portugal se regeu durante tantos séculos, ainda que tenha terminado
na prática, continuou a existir no plano simbólico. Prova disso a nostalgia
- quando não ressentimento - que persiste face à perda dos
territórios ultramarinos.
No processo de descolonização - e Eduardo Lourenço questiona-nos se o
podemos assim nomear, uma vez que não existiu qualquer projeto de conversão do
antigo estatuto colonial para outro - conceitos fundamentais como
autodeterminação e independência tiveram significados diferentes e nada
fraternos para Portugal e para as antigas colónias. E hoje, o centro da
política portuguesa continua a ser a manutenção de uma relação política e
económica privilegiada com as nações que emergiram do império. De facto, o
problema de Portugal não era/é a sua identidade, mas sim o excesso com que esta
é vivenciada, ao que o autor chama de hiperidentidade (p. 277), sendo este um
dos eixos centrais da sua reflexão, já presentes em outros trabalhos,
nomeadamente em O Labirinto da Saudade. Ao lermos os seus ensaios mais
recentes, compreendemos como a Europa deixou de constituir uma alternativa
viável para invisibilizar a nossa "pequeneza" e assim, ainda que a
Revolução de Abril tenha correspondido a "uma amputação real do nosso
espaço imperial ultramarino" (p. 269), a política externa nacional tem
continuado a manter a ficção que nesta se apoiava. Para Eduardo Lourenço existe
ainda um "longo caminho a percorrer para que um dia existamos uns para os
outros fora do envenenado círculo de um mútuo e oposto ressentimento: o das
novas nações terem sido colonizadas e o de Portugal as ter perdido como
imaginário e real prolongamento seu" (p. 216).
Se com o regime salazarista não era permitido discutir a questão africana,
"após o 25 de Abril tudo se passa como se não fosse necessário discutir
os problemas africanos" (p. 203). Por esse motivo, mais do que
identificar propriamente ruturas, Eduardo Lourenço revela-nos as continuidades
do que herdamos do final do império como "nosso impensado". Da
dificuldade inerente em assumirmos o país pequeno que sempre fomos, à tentativa
falhada de incorporar enquanto memória nacional que a colonização portuguesa
"foi o que todas as colonizações do mundo sempre foram: exploração
sistemática de terras e povos autóctones acompanhada da tentativa mais radical
ainda da despossessão do seu próprio ser ser profundo" (p. 66). Do livro
emerge a urgência de responder à pergunta: Quem somos nós sem o império?
Perante isso Eduardo Lourenço lança duas problemáticas essenciais para
compreender o Portugal pós-colonial: o envolvimento da sociedade portuguesa na
causa timorense em setembro de 1999, que originou uma catarse coletiva em
Portugal, e o envolvimento do Governo português nas comemorações dos 500 anos
da "Descoberta" do Brasil. Assim, ao lermos ensaios que foram
redigidos ao longo de quatro décadas torna-se impossível deixar de notar o seu
carácter fragmentário, este é superado pela coerência histórica dos argumentos
que sustentam a visão crítica de Eduardo Lourenço.