O mistério do cooperativismo. Da cooperação ao movimento cooperativo
RECENSÕES
Namorado, Rui (2013), O mistério do cooperativismo. Da cooperação ao movimento
cooperativo
Pierre Marie
Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra Largo da Porta Férrea, 3004-530
Coimbra, Portugal pierregmarie@gmail.com
Namorado, Rui (2013), O mistério do cooperativismo. Da cooperação ao movimento
cooperativo. Coimbra: Edições Almedina, 165 pp.
Noção relativamente recente, a economia social é hoje em dia um assunto cada
vez mais destacado. Em França, a primeira lei-quadro da economia social e
solidária foi assim aprovada em julho de 2014. Em Portugal, podemos referir as
ações realizadas pela Cooperativa António Sérgio pela Economia Social (CASES) e
a Lei de Bases de 2013. Mas o recurso a essa noção não se acompanhou sempre de
uma clarificação da sua definição e alimenta uma certa confusão. O livro mais
recente de Rui Namorado, focado na questão do cooperativismo, pilar elementar
da economia social, visa restituir as suas raízes e as suas origens a um
movimento que se caracteriza pela sua oposição ao sistema de produção
capitalista.
Em O mistério do cooperativismo, Rui Namorado procura dar visibilidade ao
processo de constituição do fenómeno das cooperativas e das suas relações com
os movimentos operário e socialista. O autor esclarece esses relacionamentos
com as noções de galáxia cooperativista, ligada ao movimento operário e
componente do conjunto da economia social. Segundo o autor, "dificilmente
se estudará com fecundidade o fenómeno cooperativo em toda a sua amplitude,
esquecendo a origem do movimento através do qual ele se exprimiu" (p.
32). O uso e abuso da noção de economia social torna visível um esquecimento
das raízes do movimento cooperativo e nomeadamente a sua carga política de
procura de alternativas à exploração. Contra o potencial apagamento dessa
história, Rui Namorado desenvolve um trabalho que tem como objetivo tornar
visível a genealogia das cooperativas ainda ativas hoje em dia.
Embora a fundação da Sociedade dos Pioneiros de Rochdale, em 1844, constituísse
uma marca consensual do cooperativismo e dos seus princípios, trata-se de um
movimento mais antigo e o autor define a cooperação como base de cada
sociedade. A expansão do sistema de economia capitalista vem trazer durante o
século xix um agravamento da pobreza e da exploração. Se bem que o movimento
secular da cooperação encontra uma forma jurídica nova com a criação de
cooperativas de produção e de consumo. Nascido para contestar as consequências
do capitalismo, o cooperativismo partilha essa origem com o movimento operário
e as doutrinas socialistas que veem a luz nesse mesmo século. O estudo desse
relacionamento do movimento cooperativo com as organizações operárias é uma das
vertentes principais desse livro. Essas ligações não foram sempre uniformes mas
deixaram marcas profundas no movimento cooperativo.
Posta em causa pelo capitalismo, a divisão social do trabalho e a lógica de
lucro, a cooperação e a solidariedade tomam expressão com as reivindicações do
movimento operário. As cooperativas aparecem, assim, como uma fonte de procura
de alternativas ao desenvolvimento do capitalismo como sistema hegemónico. Com
o proletariado a crescer, fruto da generalização do modo de produção
capitalista, o movimento operário organiza-se, tendo como base o
desenvolvimento das doutrinas socialistas. O continente europeu, espaço de
realização da revolução industrial, constituiu assim a matriz original do
cooperativismo enquanto movimento. Rui Namorado desenvolve uma interessante
análise do relacionamento das sucessivas Internacionais de trabalhadores com o
assunto do cooperativismo.
A criação da Associação Cooperativa Internacional em 1895 permite enquadrar de
forma geral os movimentos cooperativos nacionais. No entanto, o autor mostra
que a relação das cooperativas e do movimento operário à qual pertence está
longe de ser estável. Enquanto alguns líderes operários veem nas cooperativas
um desvio da luta contra o capitalismo e um enfraquecimento da classe operária,
outros, como Jean Jaurès, definem as cooperativas como uma fonte de
alternativas ao modo capitalista e um pilar do movimento operário, ao lado do
partido e do sindicato. Rui Namorado defende então a ideia de que, embora as
cooperativas possam crescer fora dos meios operários, elas são parte essencial
do movimento operário pela sua resistência prática e quotidiana à lógica
capitalista (nomeadamente com a ausência de lucro). No entanto, o estudo
histórico mostra um movimento cooperativo em tensão entre dois polos: uma
ligação forte com as doutrinas socialistas e a procura de alternativas; e o seu
empreendedorismo inserido num contexto capitalista. Através das cooperativas, é
o debate entre revolução e reforma que se replica.
O capítulo iv apresenta um rico resumo dos desenvolvimentos do movimento
cooperativo do século xix até à Primeira Guerra Mundial em seis países:
Inglaterra, França, Bélgica, Itália, Alemanha e Portugal. Este estudo histórico
permite destacar a complexidade das ligações do movimento cooperativo com as
organizações operárias, bem como as diferenças nacionais. Se na Inglaterra e em
França as cooperativas se enquadram na área operária e socialista, elas mostram
uma relativa autonomia na Alemanha, onde as cooperativas não operárias têm um
peso maior. Na Bélgica e em Itália o papel dos sindicatos revelou-se
importante, bem como o envolvimento dos católicos sociais. Em Portugal, o
crescimento das ideias socialistas na década 70 do século xix abriu um espaço
para o desenvolvimento do cooperativismo no país.
O autor volta depois, aos desenvolvimentos do cooperativismo depois da Primeira
Guerra Mundial e sobretudo depois de 1917, data da Revolução Russa. Na União
Soviética, as cooperativas tinham uma natureza instrumental, não permitindo um
controlo democrático real. Com a emergência do Terceiro Mundo, a temática das
cooperativas insere-se na problemática do desenvolvimento. A economia social
representa um novo momento de investimento nas cooperativas como estruturas
portadoras de um potencial inovador. Rui Namorado propõe a imagem esclarecedora
da galáxia cooperativa como interseção da constelação do movimento operário e
da economia social. Pertencendo a estes dois espaços, o cooperativismo adquire
assim a sua natureza própria feita dessa simbiose.
Com a queda do modelo coletivista de Estado incarnado pela União Soviética, o
sistema capitalista apareceu para muitos como o único horizonte possível.1 As
cooperativas, frutos das convergências entre a prática secular de cooperação e
da influência do movimento operário, vêm lembrar como uma outra organização
económica é possível e que a procura de alternativas permanece como uma tarefa
atual. Aplicando-se à cooperação em vez da competição, as estruturas
cooperativas representam um desafio ao sistema capitalista de organização das
nossas sociedades. O livro do Rui Namorado permite destacar a natureza própria
do fenómeno cooperativo, fenómeno imbricado com o desenvolvimento do movimento
operário.
Segundo a CASES, cooperativa de interesse público, existiam em 2010 mais de
3100 cooperativas em Portugal. Esta categoria, bem como a própria noção de
economia social, aparecem muitas vezes como imprecisas, colocando lado a lado
estruturas que pouco têm a ver. Pode ser difícil, assim, ver o que partilham
uma cooperativa de produção operária ou uma associação popular com uma
Misericórdia ou uma empresa clássica que investe na inovação social. No
contexto de crise atual, cada discurso divulgado torna a economia social em
mais uma oportunidade de emprego, nomeadamente para "jovens
empreendedores". A especificidade das cooperativas como dinâmica
alternativa à capitalista corre o perigo de ser banalizada e afogada no meio
destes discursos. O livro de Rui Namorado é uma obra essencial, que vem
sublinhar os fundamentos da cooperação como movimento social, potenciador de
emancipação humana.
NOTAS
1
Podemos aqui referir o livro de Francis Fukuyama (1992), O fim da história e o
último homem. Lisboa: Gradiva.