Corporate governance e turismo: aplicação ao regime jurídico das entidades
regionais de turismo em Portugal
1. Introdução. Os conceitos e o problema da investigação
Entende-se por governo (ou governação) das organizações, o sistema de normas
jurídicas, de práticas e comportamentos relacionados com a estrutura de poderes
decisórios, incluindo a administração, a direcção e demais órgãos diretivos- e
a sua fiscalização (Câmara, 2011).
O problema da governação resulta da investigação dos efeitos da separação entre
propriedade e controlo na gestão das grandes empresas (De Falco & Renzi,
2007) e de entidades de economia social, onde problemas como a percepção do
risco e seus limites; os compromissos da organização a médio e longo prazo; os
processos de tomada de decisão e a assimetria de informação entre quem
representa e quem é representado pela decisão (Medraño, Peñalver, F. &
Peñalver, A., 2013) são críticos na sobrevivência das organizações.
Matérias como a determinação do perfil funcional dos atores organizativos e
titulares de órgãos e corpos organizativos ou as relações entre estes e com os
titulares do capital, os associados ou fundadores e ainda as relações da
organização com todos os sujeitos considerados relevantes para a sua
sustentabilidade, os denominados stakeholders, definidos como qualquer grupo ou
indivíduo que pode afetar ou ser afetado para a concretização de objetivos
organizacionais (Freeman,1984), inserem-se na investigação.
Esta agenda evoluiu para o conceito de corporate governance,tal como fundado
nos tempos modernos pelo Relatório Cadbury em 1992 que se dirigiu a sociedades
cotadas em bolsa (Câmara,2011), visando expandir critérios de bom governo e
boas práticas das organizações, tendentes a melhorar a sua otimização de
desempenho, o reforço da capacidade competitiva, a maximização da capacidade de
financiamento externo, a salvaguarda da reputação organizacional e a garantia
de continuidade das organizações.
Mais tarde, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico
(OCDE,2004) considerou o governo das sociedades como elemento chave para
melhorar a eficiência económica e o crescimento, assim como melhorar a
confiança dos investidores. O governo das sociedades implica um conjunto de
relações entre a direcção da companhia, o conselho de administração,
accionistas e o resto dos stakeholders. (p.11).
As exigências de interesse público nesta matéria são reforçadas, seja porque a
Constituição da Republica Portuguesa (CRP) prevê a intervenção reguladora do
Estado na fundação de organizações tão distintas como as associações públicas,
as fundações públicas e as empresas públicas (respectivamente, art.ºs 165º nº 1
alínea s) e u) da CRP), seja porque existe uma obrigação de eficiência do
sector público, enquanto incumbência prioritária do Estado no domínio económico
e social (art.º 81º alínea c) da CRP).
A investigação científica da análise jurídica de corporate governance em
turismo tem tanto de inefectividade, como de necessidade, dada a importância
reconhecida dos efeitos das práticas de bom governo no desenvolvimento local e
territorial, criação de emprego estável e de qualidade, integração social
(Medraño et al., 2013) e ainda de criação e manutenção de relações de
confiança, através de organização de redes sociais e reforço de mecanismos de
democracia participativa em organizações públicas de turismo (Brandão, Baldi
& Alban, 2014).
Todavia, tal investigação levanta dificuldades, dada a natureza híbrida do
turismo (Py, 1996; Fernández, Jimenéz & Menéndez, 2004; Machado, 2010), em
que confluem, com complexidade, relações e interesses jurídicos de diversa
ordem ou natureza; públicos, centrais, regionais e locais; privados,
empresariais, profissionais ou coletivos, carecendo todas de uma envolvência
regulatória organizacional que antecipe, planeie e controle uma actividade
marcada por uma forte incerteza e variabilidade do seu ambiente externo
(Giotart & Balfet, 2007).
As Entidades Regionais de Turismo (RT) foram instituídas pela Lei 33/2013, de
16.05.2013, adiante designada LRT, ao abrigo da competência legislativa
atribuída pelo art.º 161º alínea c) da CRP à Assembleia da República (AR). O
art.º 165º nº 1 alínea s) permite também à AR a regulação de associações
públicas.
Todavia, a RT é apresentada como uma pessoa colectiva pública, de natureza
associativa (art.º 4º da LRT). Por imperativo constitucional (art.º 267º nº 4
da CRP), as associações públicas só podem ser constituídas para a satisfação de
necessidades específicas. A LRT não apresenta preâmbulo justificativo da sua
criação, limitando-se a revogar (art.º 45º alínea a)) o D.L. nº 67/2008, de
10.04.2008, que instituía o regime anterior das RT.
A CRP (art.º 267.º nº 4) impõe ainda às associações públicas uma organização
interna baseada no respeito dos direitos dos seus membros e na formação
democrática dos seus órgãos. Importa verificar se a LRT respeita também estas
vinculações constitucionais.
A LRT constitui uma organização privilegiada para um estudo de corporate
governance, dada a confluência de interesses em órgão colegial deliberativo
(Estado, municípios e entidades privadas, entendidas com interesse no
desenvolvimento e valorização turística na respetiva área (art.º 12º nº 1
alíneas a), b) e c)). Esta enunciação de interesses privados oculta reais
capacidades de influência e intervenção na gestão do poder das organizações
públicas.
As suas atribuições são, por um lado, institucionais e territoriais na
colaboração na definição da política nacional de turismo e de elaboração de
planos regionais de turismo (art.º 5º n.º 2 alíneas a); b)) por outro,
empresariais e de prestação de serviços na promoção e informação turística
(art.º 5º nº 2 alíneas d) e) e f)), pelo que será importante verificar a
robustez da organização para o desempenho de missões tão distintas.
Esta duplicidade, numa perspectiva sistémica, apresenta problemas. A LRT prevê
diversas remissões para regimes subsidiários aplicáveis. Do Código do
Procedimento Administrativo (CPA) aplicável subsidiariamente à composição,
organização e funcionamento dos órgãos das RT (art.º 10º nº 4). Para um aspecto
particular (remuneração do fiscal único-art.º 21º nº 4), é feita remissão para
a Lei-Quadro dos Institutos Públicos (LQIP- Lei 3/2004, de 15.01.2004).
Na verdade, a natureza institucional das atribuições das RT poderia remeter
regime jurídico subsidiário para a LQIP. Ou, dada a natureza empresarial, para
a Lei do Sector Empresarial do Estado, constante do D.L. nº 133/2013, de
3.10.2013 (LQEP). A LRT é omissa.
O que dificulta a análise da LRT em quadros contextuais e sistémicos mais
amplos de investigação quanto a princípios gerais de organização, criação e
acto estatutário, órgãos e serviços, gestão económica e financeira e de
acompanhamento, avaliação de desempenho e fiscalização.
Os problemas da investigação estão colocados. Que natureza tem a RT? A que
vinculações jurídico-constitucionais está adstrita? Para o bom governo da RT a
que princípios e regras jurídicas gerais de governação podemos apelar? As dos
institutos públicos, dada a sua vocação institucional? As das empresas
públicas, dada a vocação empresarial ou de prestação de serviços? Ou de um
terceiro género, atendendo à natureza especial do regime jurídico da RT? As
opções seguidas estão conforme princípios e boas práticas de corporate
governance? Vejamos a metodologia.
2. Metodologia de investigação.
A metodologia primará pela utilização do método jurídico de interpretação das
leis, em primeiro lugar, segundo o elemento histórico, centrada na história
legal da RT para se descortinar a sua natureza e identidade. Reforçando a
análise com a perspectiva da doutrina e a história e conjunturas sociais
(occasio legis) determinantes da feitura da norma.
Depois, o recurso ao elemento sistemático (Pereira, 2007), utilizando uma
perspectiva holística e integrada de uniformização de vinculações jurídicas às
organizações instituídas por vontade normativa pública (institutos públicos,
empresas publicas) que tenham um substrato, ora institucional, ora empresarial,
na sua constituição e finalidade.
Tal perspectiva permitirá identificar métodos estruturais, teleológicos e
funcionalistas, próprios da Ciência do Direito (Gabardo, 2003), que permitam
descortinar o porquê e o para quê das organizações com identificação de tensões
construtivas entre diversos titulares de interesses nessas organizações.
Utilizando-se uma metodologia qualitativa de triangulação, própria das Ciências
Sociais (Decrop, 2004), serão identificados três pólos de interesses
específicos na organização, a saber:
· Os interesses do Estado;
· Os interesses das entidades associativas públicas;
· Os interesses das entidades associativas privadas;
O método da triangulação supõe uma combinação triangular de órgãos
administrativos, de fiscalização e consultivos, tendo em vista a obtenção de um
alinhamento de posições dos órgãos da pessoa coletiva no seu conjunto quanto a
alguns elementos fundamentais (ex: planos, orçamentos, contas), incentivando
comunicação e informação, em suma, linhas de força comuns entre os órgãos.
Assim, a investigação constitui um exercício de otimização estrutural, de
coerência entre objetivos externos e incentivos internos, de centralidade, à
captura de valor, pelo Direito, para a organização RT em ordem a, segundo a
referida perspectiva triangular, se detetarem alinhamentos de processos
(Pavlovich, 2003), coerência de relações entre agentes, com a formulação de
padrões, contrariando perdas ou excessos de aplicação de recursos (Clarke,
2004) e criação de padrões de interacção e troca de informação (Saixena, 2005),
que induzam confiança e valor no compromisso de sustentabilidade e bom governo
da organização.
3. A Natureza Jurídica das Entidades Regionais de Turismo
A representação dos órgãos locais e regionais de turismo coube, historicamente,
quase sempre, a representantes de várias administrações públicas (local e
central) e representantes de vários interesses privados (art.º 2º da Lei nº
1152, de 23.04.1921 ' Comissões de Iniciativa; art.ºs 122º e 126º do Código
Administrativo de 1940, aprovado pelo D.L. nº 31095,de 31.12.1940 -zonas de
turismo).
A natureza regional e territorial destas entidades esteve na base de uma
história (Torres, 2003; Machado,2010) que se centrou em vários regimes
jurídicos, uns de pendor municipal e descentralizador (D.L. 437/82, de
16.08.1982); outros de carácter mais centralizador (D.L. 67/2008, de
10.04.2008), o que consolidou a dependência financeira dos órgãos regionais de
turismo em relação à Administração Central.
Esta representação plúrima, uma espécie de composição plural de interesses
associativos público-privados, espelha bem a dificuldade jurídica de enquadrar
estes organismos da administração pública numa categoria bem definida. Moreira
(2002; 2005) defendeu inicialmente a sua natureza como consórcios públicos
(2002, p. 362); depois, como organizações híbridas, simultaneamente,
administração regional do Estado e administração municipal (2005, p.38).
A doutrina (Miranda, 1988, p. 73) qualifica as regiões de turismo como
associações públicas do poder local. No mesmo sentido, o parecer nº 131/93,
da Procuradoria-Geral da República publicado na II série do D.R. de 23.11.1993,
qualifica-as como associações públicas de municípios de tipo especial,
formadas na base da cooperação com o Estado.
Verificam-se, historicamente, hesitações do legislador na identificação e
caracterização da natureza jurídica das RT e consequente enquadramento em
regimes e princípios mais amplos.
A LQIP caracterizava as RT como institutos públicos de regime especial (art.º
48º alínea d). Esta disposição foi revogada pelo Decreto-Lei nº 5/2012, de
17.01.2012, sem justificação. A natureza associativa das RT é assumida na LRT
(art.º 4º), sem que se diga expressamente que é uma associação pública.
Na verdade, o termo regional tem um cunho significativo territorial no âmbito
da natureza das RT. O legislador (art.º 3º nº 1) prevê a existência de cinco
RT, correspondente às áreas regionais definidas para as unidades da NUTS II
(Nomenclatura das Unidades Territoriais para Fins Estatísticos).
Dir-se-á que as RT se enquadram nos objetivos gerais de eficácia da
Administração Pública no planeamento e promoção turística do país com a sua
divisão por regiões e não na satisfação de necessidades públicas específicas,
pelo que aqui não existe correspondência com a vinculação prevista no art.º
267º nº 4 da CRP.
Segundo Farinho (2011), dir-se-ia que existe uma tensão dilacerante e
oscilante entre os conceitos de Instituto Publico e Associação Pública nas RT
(p. 592), o que pode implicar uma natureza e caracterização desta organização
como um tertium gens(terceiro género) de regime variável conforme conjunturas,
vontades políticas diversas de sucessivos governos e legislaturas, com
consequências desfavoráveis para o seu sistema de governação.
Esta conclusão tem importância para a boa ou má governação de organizações de
turismo. Para Giotart et al. (2007, p. 166), estas devem assegurar alguma
durabilidade, pela perenidade de estruturas, pela normalização de processos.
Burns (2004, p. 36) afirma que o consenso, na base do planeamento turístico,
pressupõe acordos de longo prazo ou de pré-planeamento.
A padronização de consensos que possibilitem troca de experiências, padrões de
troca de informação, monitorização e medida dos resultados com alinhamento de
objetivos, confiança e colaboração entre agentes intervenientes nos processos
de planeamento e desenvolvimento é fundamental em turismo, para redução da
incerteza e complexidade que caracteriza o ambiente fragmentário e compósito da
produção turística.
Neste sentido, dispõe o artigo 8.º da LRT, sob o princípio da estabilidade, que
as entidades que participem nas entidades regionais de turismo ficam obrigadas
a nelas permanecer por um período mínimo de cinco anos, sob pena de devolução e
perda de todos os benefícios financeiros e administrativos atribuídos ou a
atribuir no âmbito da referida participação.
Importaria que os contratos-programa, operativos e funcionais no financiamento
das RT também tivessem essa estabilidade e longa duração, o que não é previsto.
Igualmente para a estabilidade das receitas seria importante a obtenção de
receitas próprias ligadas auto-referencialmente às receitas turísticas geradas
na região.
A natureza associativa das RT está presente na LRT. A Assembleia Geral (AG) tem
um substrato associativo baseado na representação de interesses do Estado,
municípios e entidades privadas (art.º 12º nº 1), não devendo estas últimas
ultrapassar o número de municípios participantes (art.º 12º nº 4).
As entidades privadas devem assegurar a representação de interesses distintos,
nomeadamente, setor do alojamento, restauração, agências de viagens, empresas
de animação, transportes, operadores turísticos, sindicatos, em conformidade
com o que vier a ser definido nos estatutos da RT (art.º 12º nº 5).
É a AG que elege a maioria dos membros da Comissão Executiva (CE), seja, três
de cinco (art.º 13º alínea b) e 15º nº 1 da LRT), feita mediante lista, que
deve incluir a indicação do membro da comissão executiva que exerce as funções
de presidente (art.º 15º nº 2). Elege ainda a totalidade dos membros do
Conselho de Marketing (art.º 19º nº 1) e designa o fiscal único (art.º 13º
alínea l) e 21º nº 2 da LRT), sob proposta da Comissão Executiva.
É a AG que aprova os projetos de estatutos e suas alterações, sob proposta da
comissão executiva, a submeter ao membro do Governo da área do turismo e que
aprova os regulamentos internos, sob proposta da CE, incluindo o regulamento
relativo ao pagamento de quotas pelas entidades participantes, que aprova o
plano de atividades e o orçamento anuais, sob proposta da CE e ainda os
documentos de prestação de contas (art.ºs 13º alíneas e) e h) da LRT).
Todos estes poderes da AG de suporte associativo e de representação
institucional configuram-nas como associações públicas de planeamento e
promoção turística através de uma cooperação, contrato organizacional entre o
Estado, municípios e entidades privadas num determinado território em
conformidade com a doutrina antecedente. Esta natureza contratual traduz mais
fragilidades do que fortalezas em sede de corporate governance.
Consequentemente, estão sujeitas à vinculação constitucional do art.º 267º nº 4
da CRP quanto a princípios de formação democrática dos seus órgãos e de
respeito dos direitos dos seus membros. Estes deveres estão respeitados na LRT
no método de eleição para a escolha da maior parte dos representantes dos
órgãos, inexistência de regimes de sanções disciplinares específicos e
aplicação das regras subsidiárias do CPA (D.L. 4/2015, de 07.01.2015) que não
exigem, à partida, maiorias qualificadas para as deliberações dos órgãos
colegiais (art.º 32º nº 1).
4. O Corporate Governance das Entidades Regionais de Turismo
O corporate governanceprocura um tratamento jurídico e científico uniforme para
os problemas da governação organizativa (Câmara, 2011). A governação pode ser
desenvolvida através de múltiplas ferramentas (estatutos, códigos de conduta,
normas jurídicas em sentido próprio), mas a sua funcionalidade é vista como
uniforme (Lomba & Lino, 2011; Antunes, 2011; Oliveira,2011).
O corporate governance tem como objetivos a procura de fórmulas organizativas
robustas, eficientes e aptas a assegurar a profissionalização da gestão,
maximização do desempenho e a fazer cumprir o interesse público na realização
do objeto social.
Princípios importantes como a prestação de informação anual sobre a governação,
deveres de lealdade e cuidado na administração, dupla fiscalização, pública e
privada, transparência de processos, incentivos e remuneração a um bom
desempenho, avaliação e controlo pelos titulares de interesses na organização
constituem referenciais fundamentais da investigação em corporate governance.
Em Direito do Turismo, a perspectiva desenvolvida pelo corporate
governanceapresenta-se de particular utilidade. A sua natureza híbrida, em que
confluem interesses públicos e privados, prosseguidos, muitas vezes, em
concertação, contratação formal ou informal numa perspectiva organizacional
aconselha uma perspectiva transversal e homogeneizadora (público-privada) para
a sua investigação.
Quando organizações como as RT são criadas por lei para tutela de interesses
(planeamento e promoção turística de territórios), assumidos como cooperativos
(através de recursos partilhados ou afetos a fins comuns), sendo geridos por
organizações em que a vontade é também co-determinada, ou pelo menos,
fortemente condicionada por uma pluralidade de interesses público-privados, o
corporate governance surge como ferramenta de extraordinário interesse e
acuidade para análise de sua eficiência e robustez.
Esta perspectiva é sustentada nas vinculações da Constituição, em especial, da
obrigação de zelo do Estado em assegurar a eficiência do sector público (art.º
81º alínea c) da CRP); a eficácia e unidade da acção administrativa e a
racionalidade dos meios a utilizar pelos serviços (art.º 267º nº 2 e nº 5 da
CRP) no que dir-se-ia, os mesmos princípios seriam perfeitamente aplicáveis a
qualquer organização privada.
Igualmente, a procura de qualidade de regulação de organizações que têm um
elemento associativo relevante no seu substrato é uma obrigação do Estado
Português assumida no memorando de entendimento com o BCE/FMI/UE em 17.05.2011.
(acessível em http://www.portugal.gov.pt/media/371372/mou_pt_20110517.pdf)
Tal memorando prevê nos pontos 3.42 e 3.43 a regulação, por lei, da criação e
funcionamento de associações criadas pela Administração Central e Local, bem
como a definição de mecanismos de monitorização e reporte e de avaliação e
desempenho, pelo que se entende serem estas vinculações, por um lado,
uniformes; por outro, constituindo padrões, numa perspectiva sistemática e de
corporate governance, de análise de LRT.
Os pontos 3.42 e 3.43 Dos objetivos de Medidas orçamentais estruturais, visam
a melhoria da eficiência da administração pública; reorganização serviços;
regulação de criação e o funcionamento de todas as entidades públicas e
melhoria do processo orçamental através do enquadramento legal geral para
reforçar a gestão de riscos, a responsabilização, o reporte e a monitorização.
Na utilização do método histórico na investigação, verificaremos que a LRT está
comprometida com os objetivos do memorando, constituindo vontade conjuntural
determinante na sua feitura.
Desejável, em termos de corporate governance e, de acordo com estes
compromissos, seria a criação de uma Lei-Quadro de Associações Públicas
Territoriais, à semelhança das Associações Públicas Profissionais (Lei 2/2013,
de 10.01.2013).
Analisamos, à luz dos princípios de corporate governance, o regime da LRT.
Nesta, o modelo de comissão executiva (CE) é o adotado para o órgão de
administração e gestão (art.º 16º nº 1 e nº 2), mas em que, atendendo à sua
periodicidade de reunião mensal (art.º 15º nº 8), a figura de gestão corrente é
concentrada em vastas tarefas ao presidente da CE (art.º 17º nºs 1 alíneas a) a
u)), a quem lhe compete praticar todos os atos necessários ao normal
funcionamento da RT no âmbito da gestão dos recursos humanos, financeiros,
materiais e patrimoniais (art.º 17º nº 1 alínea d).
A competência de fiscalização é conferida a um fiscal único que é o órgão
responsável pelo controlo da legalidade, da regularidade e da boa gestão
financeira e patrimonial das RT. Compete-lhe, designadamente, verificar as
contas anuais; emitir o certificado legal de contas; verificar a regularidade
dos livros, registos contabilísticos e documentos que lhe servem de suporte e
emitir parecer sobre as contas do exercício, nomeadamente sobre a execução
orçamental, o balanço e a demonstração de resultados (art.º 21º nº 1 e 22º
alíneas a) a d) da RT).
Importaria considerar, para robustez das funções de controlo, um mecanismo de
dupla fiscalização, para além do fiscal único, através de um órgão consultivo
técnico, por exemplo, composto por representantes dos municípios, Conselho de
Marketing e Estado.
A LQIP (art.º 17º nºs 1 a 3) dispõe sobre a previsão de órgãos consultivos em
determinadas matérias. O que permite também possibilidade de dupla fiscalização
ao órgão administrativo, reforçando deveres de cuidado e de lealdade por parte
dos seus titulares na gestão da entidade pública. Nada se prevê na LRT.
O alinhamento é estimulado através de elementos comuns (ex: planos, orçamentos,
contas) de informação entre órgãos e deveres de cooperação reforçados. Este
tipo de mecanismos ajudaria a viabilidade de organizações que se baseiam na
complementaridade de atuações entre entidades públicas, centrais e locais e com
entidades privadas, próprios da natureza associativa das RT. A LRT é omissa.
Este modelo triangular não tem sequência na LRT. Prevê-se um órgão, de natureza
consultiva (o Conselho de Marketing-CM), em que as competências se destinam
principalmente à aprovação e acompanhamento da execução do plano de marketing
proposto pela CE (art.º 18º nº 1) e pareceres (em que o regime não estabelece
natureza vinculativa), em certos assuntos (criação e extinção de postos de
turismo, estratégias de marketing), sob solicitação da CE.
A maioria dos membros do CM deve ser constituída por representantes do tecido
empresarial regional, ou seja, do sector privado, como tal reconhecidos pela
Confederação do Turismo Português (art.º 19º nº 1).
A criação de um órgão especializado em determinados assuntos, de natureza
consultiva, mas sem capacidade de emitir pareceres vinculativos sob esses
assuntos ou que dá aprovação a um acto por outro órgão (Comissão Executiva) que
tem menor competência especializada que o próprio órgão consultivo, confunde a
natureza do órgão e não cumpre objetivos de profissionalização de gestão,
racionalidade técnica e eficiência vinculativas da atuação da Administração
(art.º 81º alínea e) e 267º nº 5 da CRP), não constituindo uma boa estruturação
de sistema de governo das RT.
Propor-se-ia, na perspectiva triangular atrás referida, que o plano de
marketing fosse proposto pelo CM e que fosse precedido, numa perspectiva de
dupla fiscalização, pelo parecer favorável de um Conselho Consultivo, a criar,
e do fiscal único tendo em vista sua aprovação pela Assembleia Geral (AG),
antes de ser executado pela CE.
Tal reforçaria os referidos objetivos de eficiência e racionalidade atrás
assinalados, mas também de transparência e democracia participativa dos
próprios interessados (stakeholders) na formação das decisões que lhes disserem
respeito (art.ºs 267º nº 4 e 5 da CRP), que estão na base da génese da
Administração Autónoma, seja territorial ou não territorial (Moreira, 2002).
A profissionalização da gestão compromete-se ao não se atribuir qualquer
remuneração, despesas de representação ou outros benefícios aos membros do
Conselho de Marketing(art.º 19º nº 5 da LRT),não sendo remunerados os cargos de
membros da CE, tão só dos cargos de Presidente e Vice-Presidente (art.º 15º nº
5). Importa, ainda, tecer algumas considerações quanto à intervenção e
representação do Estado na triangulação composta pela deliberação,
administração e fiscalização da RT.
A intervenção do Estado na AG é mais importante do que, à primeira vista, se
deduz. Na verdade, prevendo a LRT uma equiparação de número de membros de
municípios e representantes de entidades privadas na composição da AG e um
representante do Estado (art.º 12º nº 1 alínea a) e nº 4), este pode ter, pelo
seu voto, a capacidade de gerar maiorias. Como? Em combinação com os
representantes dos municípios ou das entidades privadas, e, alternativamente,
em cada contexto mais favorável aliando-se a uns interesses contra outros,
podendo assegurar as maiorias necessárias às deliberações da AG.
Pergunta-se se este modelo assegura princípios de democracia participativa e de
auto- governo. Mais se questiona se uma dupla fiscalização à administração,
desejável, por via de órgãos internos em termos de corporate governance, pode
ser prosseguida com este poder do representante do Estado.
O regime da LRT condiciona bastante a autonomia da pessoa colectiva RT face ao
Estado. Enunciam-se alguns poderes de tutela e fiscalização:
· A homologação pelo membro do Governo responsável pela área do turismo
dos estatutos das RT (art.º 6º nº 2 da LRT);
· A autorização, pelos membros do Governo das áreas das finanças e do
turismo, da aquisição, locação financeira ou alienação de bens imóveis e a
aceitação de doações, heranças ou legados (art.º 6º nº 3);
· A aprovação prévia pelo membro do Governo responsável pela área do
turismo, no prazo de 90 dias após a sua receção, do plano anual e plurianual de
atividades, do orçamento, da conta de gerência e do relatório de atividades
(art.º 6º nº 4);
· O poder de ordenar a realização de inquéritos, sindicâncias,
inspecções e auditorias aos serviços das entidades regionais de turismo,
designadamente através da Inspeção -Geral de Finanças (art.º 6º nº 7);
· A necessidade de autorização para celebração de contratos de
empréstimo às RT junto do sector financeiro, por despacho a exarar pelos
membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e do turismo (art.º
31º nº 4);
· A alocação às RT das receitas provenientes, a nível central, de
dotações que forem confiadas no Orçamento do Estado ao organismo central de
turismo do Estado, o Turismo de Portugal, I. P. (TP) para prossecução do
desenvolvimento do turismo regional e sub ' regional, sendo esta a primeira
fonte de financiamento prevista para as RT (art.º 31º nº 1);
· O condicionamento à existência de verbas previstas no orçamento do
Estado e confiadas ao TP para prossecução do desenvolvimento do turismo
regional e sub-regional (art.º 43º) para que se possam efetivar a celebração
dos contratos-programa entre o TP e as entidades regionais de turismo, devendo
os contratos-programa prever a obrigatoriedade do envio ao TP, dos documentos
de prestação de contas, bem como de um dever genérico de informação e
respetivas consequências para o incumprimento, em prazo a prever no quadro da
contratualização (art.º 32º nº 5);
· A aplicação às RT dos princípios e as regras da unidade de tesouraria
do Estado (art.º 30º nº 2), onde se destaca a fiscalização e o julgamento das
contas pelo Tribunal de Contas (art.º 36º).
Igualmente, o Estado na LRT procura racionalizar toda a organização interna
(art.º 23º), com regras de recrutamento de cargos dirigentes (art.º 24º);
condições de admissão, prestação e disciplina do trabalho (art.º 26º nº 4);
mapas de pessoal (art.º 27º), com regras apertadas quanto a encargos de pessoal
que não podem exceder 50 % da média das receitas correntes dos últimos três
anos económicos, devendo reduzirem-se 5 % adicionais, em cada ano dos três
seguintes (art.º 29º nº 2).
Este regime enfatizador de princípios de rigor, disciplina orçamental, unidade
e eficiência da Administração acaba por assentar num apertado controlo tutelar
do Estado sobre as RT, tendo em vista cumprir as obrigações do memorando de
entendimento com o FMI/UE. Tal não significa um reforço de princípios e boas
práticas de corporate governance aplicáveis a uma pessoa coletiva autónoma de
base associativa cujos valores se baseiam no empenho, compromisso, concertação
e confiança de agentes públicos e privados interessados no planeamento,
promoção e desenvolvimento do turismo numa determinada área territorial.
Na verdade, a informação e seu tratamento em sistemas, relatórios e
comunicações operacionais fundadas num regime jurídico uniforme, claro e
acessível aos interessados na sustentabilidade da organização (stakeholders) é
uma variável fundamental do corporate governance.O regime das RT é omisso.
Não existe previsão que no sítio dainternet da RT haja publicação do plano de
actividades, do orçamento anual, do relatório anual de atividades e o relatório
de contas e balanço de cada exercício submetidos à apreciação e aprovação da
AG. Ou a aprovação desses documentos.
Não se prevê na página eletrónica da RT que sejam publicados os diplomas que os
regulam, estatutos e regulamentos internos; composição dos órgãos sociais e
respectiva remuneração; distribuição das dotações do orçamento de Estado e
respetivos critérios; os contratos-programa realizados e as previsões de
receita; custos e o mapa de pessoal. Ao contrário do art.º 44º da LQIP. Ou nos
art.ºs 43º nº 3 e 53º da LQEP em termos de obrigação e transparência pública.
Na atual sociedade da informação, tão vital para os sistemas de turismo, as
palavras internet e Administração eletrónica não constam da LRT. É uma
perspectiva empobrecedora para uma boa governação das RT.
5. Conclusões Finais.
· O corporate governance é um instrumento sistemático de análise de
eficiência e robustez das organizações, dada a sua perspectiva transversal e
homogeneizadora, tendo interesse e utilidade para a sua aplicação a
organizações de turismo com composição mista de interesses públicos e privados;
· As RT portuguesas podem definir-se como associações públicas para
fins de planeamento e promoção turística, numa cooperação entre o Estado,
municípios e entidades privadas num determinado território. Esta natureza
especial e híbrida, simultaneamente institucional, territorial e empresarial
não permite inserção num quadro global e sistémico uniforme de vinculações
constitucionais e legais administrativas, o que traduz forte fragilidade em
sede de princípios e práticas de corporate governance;
· Os requisitos de boa governação de organizações em turismo dependem
de alguma durabilidade, perenidade de estruturas, normalização de processos,
consensos público-privados com acordos de longo prazo ou de pré-planeamento
entre entidades públicas e privadas;
· A existência de mecanismos de financiamento anualizados baseados em
contratos-programa e dotações anuais do Orçamento de Estado sem mecanismos
auto-referenciais ligados às receitas turísticas geradas na região, enquanto
receitas próprias, não permitem tal estabilidade ainda que os municípios sejam
obrigados a um tempo de permanência mínima de 5 anos nas RT;
· A governação das RT não prevê alinhamentos de informação através de
elementos comuns e sistémicos fundamentais de auto- governo (ex: planos,
orçamentos, contas, regulamentos internos) entre órgãos administrativos, de
fiscalização e consultivos e deveres de cooperação reforçados;
· A criação na RT de um órgão (Conselho de Marketing) em assuntos
especializados (promoção turística), de natureza ratificadora (aprovação de um
plano de marketing) e consultiva (emissão de pareceres) confunde a natureza do
órgão e sem remuneração aos seus membros, não cumpre imperativos
constitucionais e legais de profissionalização de gestão, racionalidade técnica
e eficiência administrativa;
· A intervenção do Estado no órgão associativo mais importante da RT,
pela sua natureza deliberativa e eletiva de outros órgãos (a Assembleia Geral)
pode ter, pelo seu voto, a capacidade de gerar maiorias. Esta qualidade, assim
como a sujeição pela RT a amplos poderes de tutela do Estado em sede de
homologação de estatutos, autorização na aquisição e alienação de bens imóveis,
celebração de contratos de empréstimo, aprovação prévia do plano de
actividades, orçamento e conta de gerência cumpre objetivos constitucionais de
unidade administrativa e eficácia no controlo da despesa pública, mas contraria
princípios constitucionais vinculantes de democracia participativa,
descentralização e autonomia administrativa que são relevantes num sistema de
governação em turismo.
· As RT estão ausentes da Administração Eletrónica quanto à publicação
vinculativa de elementos fundamentais de auto-governo (estatutos, planos,
contas, relatórios de actividade) na internet e na sua página eletrónica, o que
constitui desvalorização de princípios de transparência, acessibilidade de
informação e envolvência público-privada que constituem estímulos muito
importantes de corporate governance aplicáveis a organizações de turismo.
Pelo que se conclui que a análise de corporate governance é um instrumento útil
e eficaz à análise da qualidade normativa dos sistemas de governação das
organizações público-privadas e dos seus princípios, de racionalidade e
eficiência de gestão, mas também democráticos de sua organização e
funcionamento. Para que se cumpram os objetivos do Estado de Direito
Democrático previstos no art.º 2º da CRP. As RT de 2013 valorizaram mais os
princípios de unidade e eficácia da Administração do que os de autonomia,
democracia participativa e transparência.