Apresentação: Dossier Europa e Islão
APRESENTAÇÃO
Dossier Europa e Islão
Se até há poucos anos o interesse do público europeu pelas questões islâmicas
era limitado e restrito, podemos dizer que o panorama se alterou profundamente.
O efeito cruzado de fenómenos como a crescente influência de regimes e blocos
islâmicos no jogo político internacional, a radicalização de alguns movimentos
dentro e fora do mundo árabe, a visibilidade de comunidades islâmicas em países
europeus que se auto-referenciam em torno de uma ideologia laica, os conflitos
e negociações entre a imposição legal do laicismo por parte de alguns Estados e
as necessidades práticas e rituais do islamismo, e, evidentemente, a
visualização de eventos marcantes como o 11 de Setembro e o que a montante e a
jusante lhe é associado, do regime Taliban e da Al-Qaeda às intervenções
militares norte-americanas no Afeganistão e no Iraque, entre outras coisas,
deram uma posição de particular destaque ao Islão entre os assuntos do dia e as
interrogações de todos os dias. Por entre estereótipos, preconceitos, imagens
apologéticas ou demonizantes, os europeus confrontam-se com a sua própria
ignorância relativamente ao assunto.
É talvez hora de procurar o conhecimento onde ele tem vindo a ser desenvolvido,
ou seja, junto dos especialistas que, entre nós, se têm dedicado a questões
islâmicas de forma continuada, sustentada e fundamentada em investigações
sólidas e críticas, disponíveis para o debate e reflexão. Isso é tanto mais
importante quanto a versão dos estereótipos veiculada por alguns especialistas
em questões árabes e islâmicas já foi invocada como a sustentação de políticas
de intervenção militar no Médio Oriente, cujos dramáticos resultados se vão
somando numa direcção imprevisível. É como se assistíssemos ao cumprimento de
uma profecia que se auto-sustenta, a da impossibilidade de diálogo,
irredutibilidade de lógicas, choque de civilizações, donde o confronto
antecipado e o assombroso conceito de guerra preventiva.
Situamo-nos no extremo oposto: procuramos e acreditamos no diálogo e no
esclarecimento, que facilmente desmistifica a ideia de irredutibilidade e o seu
corolário de confronto agonístico. Herdeiros, talvez, de um projecto moderno em
tempos a que alguns chamam pós-modernos, tentamos evitar a dissolução da teoria
em fragmentos discursivos ou em relativismos generalizados, procurando ideias,
dados empíricos, formulações, articulação.
Assim são os textos que compõem este volume, resultantes de uma jornada
académica que teve lugar no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de
Lisboa em Abril de 2003, em iniciativa conjunta com a Associação Portuguesa de
Antropologia. Não estão presentes todas as modalidades de pesquisa em curso no
nosso país nem todos os investigadores e especialistas em assuntos islâmicos
que circulam entre nós; como em qualquer outro evento, contingências de vária
ordem levaram a que se reunisse um conjunto particular - e sempre parcelar - de
contributos.
A iniciativa formou-se em torno de um desafio assumido por Jack Goody. Para
este venerando antropólogo, autor de dezenas de obras de referência que
influenciaram várias gerações de estudiosos em todo o mundo, africanista,
teórico do pensamento gráfico, da escrita, da alimentação, reservatório de
memória do século XX, ex-prisioneiro da segunda guerra mundial, a resposta
apropriada às discussões, instabilidades, medos e confrontos ideológicos que se
seguiram ao 11 de Setembro de 2001 seria aprofundar e disponibilizar o nosso
conhecimento sobre o que se diz estar envolvido, e ultimamente caricaturado no
confronto irredutível entre um Islão obscurantista e perigoso versus um
Ocidente modernizante e vitimizado.
Jack Goody, beirando os 80 anos de idade, lançou-se à tarefa de escrever um
novo livro em que empenhou a sua experiência de antropólogo e de participante
em vários momentos marcantes da história europeia para nos disponibilizar
elementos cognitivos capazes de neutralizar o muro ideológico e
pseudocientífico que condena a lógicas irredutíveis a modernidade ocidental e o
Islão. Desse livro em preparação trouxe-nos um capítulo em que contextualiza um
dos momentos em que a oposição entre um Ocidente democrático e tolerante e um
Islão autoritário e duro mais parece acentuar-se: a destruição, incompreensível
e inaceitável para os ocidentais, das magníficas estátuas dos Budas de Bamyam,
às ordens do regime Taliban do Afeganistão. De tão irrazoável, essa destruição
parece a prova acabada da alteridade completa entre quem a mandou executar e
quem, estupefacto, assistiu: o fosso entre um "nós" e um
"outro", precisamente aquilo a que a antropologia respondeu tornando-
se disciplina e saber especializado, dando nexos de inteligibilidade ao
aparentemente incompreensível.
Mobilizando a antropologia para este desafio, Jack Goody usa também a história
da arte religiosa da demonstração que nem "eles" são tão diferentes
de "nós" nem "nós" o somos "deles". A história
europeia e euro-americana está cheia de referências à destruição de obras de
arte religiosa com base em argumentos antifigurativos. A questão da
representação, concretizada na figuração das divindades e sobretudo da
divindade máxima, levantou ambiguidades em todas as religiões; mesmo aqueles
que hoje mais praticam a figuração, como o Hinduísmo, conheceram momentos de
rejeição, dificuldades e ambiguidades relativamente a esta. Também algumas
variantes do Cristianismo se especializaram na total rejeição da arte
figurativa e na representação das divindades. Como o autor mostra, até a Grécia
antiga alternou momentos de magnífica produção de estatuária com períodos de
motivos exclusivamente geométricos, em que a figuração era banida. E o próprio
Budismo só em tempos tardios aceitou a representação de Buda. De uma forma ou
de outra, todas as religiões estiveram historicamente implicadas na destruição
de estátuas e representações materiais que de alguma forma desafiavam os
imperativos da primazia da palavra e se confrontavam com a difícil questão de
ver o criador materialmente criado pela mão humana. Mas, como antropólogo
experiente, Goody não se fica pelo esforço relativizante e pela neutralização
das oposições apoiada em argumentos históricos; questiona-se ainda sobre os
motivos pelos quais a representação lança tantos problemas, ambiguidades,
paixões e violência através dos tempos e das culturas, direccionando-nos para
uma dimensão mais ampla de procura de universais: enquanto produtores de
símbolos, estamos dependentes da representação para nos relacionarmos com o
mundo e nela projectamos todas as ambiguidades e dificuldades a ponto de,
colectivamente, oscilarmos entre extremos contrários.
Goody não veio a Portugal apenas para apresentar e discutir as suas ideias, mas
para conhecer em primeira mão as representações locais sobre o passado
islâmico, parte integrante desse todo fluido e dinâmico que é a interacção
Europa-Islão. E assim visitámos Mértola, honrados pela orientação directa e
disponibilidade de Cláudio Torres, conhecemos os diversos núcleos e programas
museológico e arqueológicos, percorremos o Alentejo, discutimos esta e outras
facetas de relacionar passado e presente, de gerir e administrar
descontinuidades, contrastes e continuidades na construção da narrativa
histórica e cultural de uma nação e de um momento histórico.
Essas questões estão presentes em quase todos os demais artigos deste dossier,
atravessando-os, testemunhando o esforço comum de melhor conhecer e
disponibilizar conhecimento sobre aspectos da relação Europa-Islão enquanto
vivida pelos portugueses - no imaginário etnogenealógico, na arqueologia, na
historiografia, na tradição arabista e nas aproximações sócio-antropológicas és
populações muçulmanas no Portugal contemporâneo.
O texto de Maria Cardeira da Silva proporciona-nos uma síntese reflexiva e
informada sobre as representações de árabes e Islão na história portuguesa.
Vale a pena determo-nos cuidadosamente sobre esta proposta original de
sistematizar, num texto criticamente sustentado na antropologia e teoria
contemporânea, as variações no papel atribuído a "árabes" e
"Islão" no conjunto de auto-representações de nação e de povo para os
intelectuais portugueses dos últimos duzentos anos. Tanto mais que a autora o
faz saindo da rotineira auto-revisitação da história do arabismo em Portugal
por parte dos arabistas e integra desenvolvimentos conceptuais recentes.
Destaque-se, entre estes, os efeitos da critíca de Eduard Said ao
"orientalismo" patente na literatura ocidental - que não é
exactamente replicado na literatura, historiografia e antropologia portuguesas.
Como a autora aponta, em lugar de uma exotização menorizante das temáticas
arabistas, houve entre nós uma apropriação destas, e "dos árabes",
para a construção de uma história nacional e para a consolidação de uma
identidade " étnica" do povo português. Desde Herculano que, como
importantes protagonistas ou meros figurantes, os árabes fazem parte da
história de Portugal. São uma camada, um estrato, uma época, um Outro que ora
testemunha alternância de domínios políticos, como acontece na história de
invasões e expulsões promovida pelo regime de Salazar, ora serve de prova de um
convívio multicultural avant la letre, como é sugerido por uma arqueologia mais
recente e desenvolvida no regime democrático. Mas estão sempre, como espelho
reflector, enquadrados numa agenda mais ampla de procura de identidade nacional
e, subsequentemente, sujeitos às ideologias que as enformam. Daí a sugestão de
um passo a seguir, o de os libertar dessa obsessão identitária que tem
governado tanto da produção intelectual portuguesa.
Se as "invasões árabes" medievais, precedendo e justificando a
Reconquista cristã associada é fundação da nacionalidade, povoaram as lições e
compêndios de história de várias gerações de portugueses e se prolongam no
imaginário colectivo, os estudos arqueológicos contemporâneos apontam-nos uma
outra realidade. Nas discussões sobre o Andalus, que mais intensamente ocupa o
imaginário europeu sobre o período islâmico da Península Ibérica e a correlata
"orientalização" de uma sociedade ocidental, os argumentos variam
entre a total negação de uma invasão árabe e a sua confirmação com base nas
transformações ocorridas nas estruturas sociais.
Balizando o seu trabalho entre estes dois argumentos, Santiago Macias aborda a
islamização do território de Beja cruzando testemunhos arqueológicos e fontes
documentais e traça um quadro matizado de dinâmicas de transformação, conversão
e adopção de elementos culturais que se afigura mais realista e verosímil que a
ideia de uma substituição, alcançada por meios bélicos, de uma pacata população
nativa ibérica pelos invasores do Norte de África e Médio Oriente. Mais que uma
substituição de populações, encontramos uma adaptação a novos regimes políticos
que se impuseram no Sul do Gharb por meios combinados de força e persuasão e de
que fazia parte a adopção do islamismo. Esta não terá implicado, porém, a total
obliteração das populações cristãs, propondo o autor que as mesmas oligarquias
que detinham o poder local continuaram a fazê-lo, agora adoptando o islamismo,
deixando alguns testemunhos em língua árabe - o que não exclui a possibilidade
de bilinguismo - e adoptando nomes árabes de conotações bíblicas. Este
argumento não exclui, contudo, a existência de grupos restritos árabes no
território, como o autor regista, e aponta para um cenário de contínuas trocas
entre as diversas margens do Mediterrâneo.
É curioso notar que entre as inúmeras tentativas de incluir na identidade
portuguesa o passado islâmico ou árabe raramente se fazem esforços para
reflectir conjuntamente sobre as populações muçulmanas que compõem o tecido
social, demográfico e cultural do país de hoje. Assim se passa, aponta Nina
Clara Tiesler, nas edições dedicadas ao passado islâmico de publicações de
grande circulação, e até mesmo nas festivas celebrações de Mértola sobre o
passado de diversidade cultural e religiosa que a arqueologia e museologia
desta cidade desenham - onde sobressai a dignificação da componente islâmica.
Ou seja, como já foi apontado noutros artigos, há uma crónica separação entre
os estudos sobre a componente islâmica da história portuguesa e o estudo sobre
a componente islâmica da sociedade portuguesa actual. Mais que elaborar sobre
essa questão - que na nossa opinião releva de um problema mais geral de as
ciências sociais em Portugal terem, até aos anos 80-90, alguma dificuldade em
identificar fenómenos imediatos que não se enquadram na tradição intelectual
consagrada, deixando-os portanto para pesquisadores internacionais que aqui se
deslocam -, os dois artigos seguintes dedicam-se a ultrapassá-la com
investigações concretas, dados empíricos e sugestões originais de
interpretação.
Em "Novidades no terreno", Nina Clara Tiesler retoma uma
caracterização da chamada nova presença islâmica (NPI) em Portugal que a
apresenta como discreta e quase invisível. Em contraste com o que se passara em
França, Alemanha e Inglaterra, onde a massiva chegada de imigrantes muçulmanos
desde sobretudo os anos 60 gerara um "problema" identificado pelos
media, pelos políticos e pelos cientistas sociais, a que não faltavam as
referências a conflitos, assimilação, contrastes, diversidade, administração da
diferença, etc., a NPI portuguesa parecia um não-problema - não o era para os
media, que quase só levantavam o assunto por homologia com os congéneres
europeus; não o era para os políticos, que o tinham resolvido com a construção
de uma mesquita em Lisboa; e não o era para os cientistas sociais, que, salvo
raras excepções, não desenvolveram linhas de pesquisa sobre o assunto.
Numa caracterização sociológica proposta pela autora, a especificidade desta
primeira vaga de NPI em Portugal, comparativamente à de outros países europeus,
passa por uma mais imediata integração na sociedade facilitada pelo capital
cultural e económico da classe média muçulmana, que constituía uma
significativa parcela dessa comunidade; por uma mais rápida integração na
economia nacional; e pelos anteriores elos coloniais e correlata familiaridade
com a língua, costumes e leis portugueses.
Algumas coisas mudaram, entretanto, e há que acompanhar atentamente os fluxos
de novos imigrantes com background islâmico cujas rotas pelo mundo incluem
Portugal e - sobretudo Lisboa - por um conjunto de razões de contingência ou de
estrutura da economia mundial, mas certamente não relevam dos processos de
colonização e descolonização. São migrantes muçulmanos do subcontinente
indiano, e é à caracterização detalhada de um destes grupos que se dedica o
artigo seguinte.
Ninguém imaginaria no passado que a praça do Martim Moniz, nomeada segundo um
herói da narrativa de Reconquista de Lisboa "aos mouros", viria a ser
na beira do século XXI o ponto de encontro privilegiado para os novos migrantes
islâmicos na capital, quase todos provenientes do Bangladesh. Mas não só é esse
o caso, como se dá uma crescente e quase completa ocupação de uma das ruas
vizinhas - a Rua do Benformoso - pelos bangladeshianos recentemente chegados a
Lisboa, a ponto de terem criado um espaço de culto próprio - no dizer de
alguns, uma mesquita - num andar arrendado num prédio da mesma rua. É a essa
mesquita, e às suas relações com a Mesquita Central de Lisboa, no Bairro Azul,
que José Mapril dedica o artigo "Bangla masdjid".
Traçando os contornos e história do trânsito de bangladeshianos para a Europa,
a que não faltam as rotas por países do golfo Pérsico, o autor mostra-nos como
Portugal passou a figurar no mapa das suas possibilidades e como, uma vez
iniciado um processo de instalação e inserção na economia e sociedade a
comunidade tende a crescer. Se a comunidade bangladeshiana em Lisboa, de tão
recente, era quase exclusivamente masculina, os homens partilhando apartamentos
arrendados também na área do Martim Moniz, começam hoje a chegar as suas
famílias, as mulheres, os filhos, os pais e tios, sugerindo a possibilidade de
estarmos perante uma nova comunidade de lisboetas, prova acabada de que a
sociedade portuguesa não se constrói apenas em cima dos seus elos coloniais e
pós-coloniais. Prova-o a exuberância do comércio no Martim Moniz, gerido por
pequenos empresários chineses, que mobilizam e convivem com os bangladeshianos
aqui descritos.
O estudo destas comunidades torna-se uma resposta ao desafio inicial: não só é
necessário para melhor conhecermos a realidade portuguesa actual, mas exige a
exploração de questões teóricas contemporâneas - do transnacionalismo e fluxos
de capital e trabalho à articulação política das identidades religiosas e à
reconfiguração local dos princípios universais.
CRISTIANA BASTOS