Instrução e Economia: As Ideias Económicas no Discurso da Ilustração Portuguesa
Francisco António Lourenço Vaz,Instrução e Economia. As Ideias Económicas no
Discurso da Ilustração Portuguesa(1746-1820), Lisboa, Edições Colibri, 2002,
484 páginas.
José Luís Cardoso
Este livro corresponde à tese de doutoramento defendida pelo autor na
Universidade de Évora em Fevereiro de 2001. Credenciado por estes pergaminhos
académicos, o livro oferece inequívoco testemunho de apurado trabalho de
investigação sobre temas e autores que nos desvendam aspectos menos conhecidos
da história da ilustração portuguesa. Um dos principais méritos deste livro
consiste na revelação e análise de documentação de alguns núcleos arquivísticos
até agora pouco ou nada investigados. Por isso, representa desde logo valor
novo e acrescentado à herança historiográfica disponível. Uma herança que
Francisco Vaz também explora e amplia, contribuindo desse modo para valorizar
os trabalhos que mais recentemente têm sido produzidos sobre os assuntos que
revisita com sucesso. Aprende-se muito com este livro, razão de sobra para se
recomendar leitura atenta.
De que se ocupa, afinal, Francisco Vaz?
O livro está dividido em duas partes distintas, sujeitas a uma mesma temática
envolvente, que é a do desenvolvimento do discurso económico ao longo do
período em análise. Na primeira parte surgem destacados três temas que
funcionam como pretexto de demonstração das mudanças que se operam no panorama
das ideias económicas. A usura, o luxo e a organização de sociedades económicas
são os assuntos eleitos por Francisco Vaz. Relativamente aos dois primeiros
(usura e luxo), a preocupação central é a de explicar o modo como se procura
esbater a condenação moral de excessos utilitários no comportamento económico
individual. A visão de que tais excessos poderiam trazer consequências morais e
sociais desagregadoras é substituída pela noção de que deverão servir
propósitos e objectivos de reforma e desenvolvimento económico. Quanto ao
terceiro tópico, a organização de sociedades económicas, ensaia-se uma
explicação do seu papel na difusão da instrução pública e na difusão do
conhecimento aplicado ao fomento das actividades económicas. Na abordagem que
faz sobre os autores e instituições portugueses mais relevantes para o estudo
destes três temas, Francisco Vaz procede a análises comparativas que permitem
detectar a difusão e assimilação de ideias produzidas e aplicadas noutros
contextos europeus. Refira-se, aliás, que essa é uma faceta que demonstra bem a
qualidade da investigação produzida, mantendo sempre presente a ideia de que a
ilustração portuguesa não existe isolada das outras experiências iluministas
que entre nós fazem repercutir os seus efeitos.
Entre os autores que mais influência terão exercido em Portugal, Francisco Vaz
distingue o abade napolitano António Genovesi, a quem dedica os capítulos
introdutórios da primeira parte do livro. A presença marcante da obra de
Genovesi no ensino da filosofia moral, do direito natural, da lógica e da
metafísica na Universidade de Coimbra, reformada por Pombal em 1772, não deixa
qualquer margem para dúvidas. Aos domínios do saber acima referidos junta-se
ainda o da economia civil, mais tarde renomeada de economia política, à qual
Genovesi dedicou importante obra que exerceu forte impacto junto de alguns
autores portugueses. O estudo de Francisco Vaz sobre o modo como a influência
genovesiana impregna o discurso económico no nosso país tem a ambição de
sugerir que se trata de uma influência não apenas decisiva, mas até
estruturante do conjunto das ideias económicas produzidas em Portugal ao longo
do período em estudo. Sem desmerecer a presença de Genovesi, julgo por vezes
exagerada a reivindicação da sua preponderância. Se atendermos aos próprios
temas e autores a que Francisco Vaz dedica maior atenção, não será difícil
encontrar outras matrizes e fontes de inspiração que esbatem ou subalternizam o
peso de Genovesi na ilustração portuguesa. A vontade inicial de revelação dos
vestígios deixados por Genovesi no pensamento português _ declaração de
propósitos enunciada nas páginas iniciais do livro _ acaba por ser preterida,
não se assistindo ao desfilar de provas sistemáticas dessa marca indelével. E
ainda bem que assim é, porque o que se perde na verificação da coerência
interna dos objectivos do livro ganha-se na demonstração implícita da
complementaridade de influências que balizam e enformam as ideias económicas em
Portugal na segunda metade do século xviii. Ou seja, é o próprio Francisco Vaz
que oferece argumentos para contestar que Genovesi seja o único ou o mais
importante dos nomes influentes na ilustração económica portuguesa.
Na segunda parte do livro são apresentados os percursos da vida e obra de três
autores aos quais pouco relevo tem sido até agora dado na perspectiva do estudo
da evolução das ideias económicas: Frei Manuel do Cenáculo, Ricardo Raimundo
Nogueira e José António de Sá. Cada um destes capítulos constitui ensaio
autónomo de análise do pensamento e acção dos autores escolhidos, mediante
recurso a fontes documentais inéditas e justificadamente valorizadas através de
apreciação crítica pertinente. Sem dúvida que os contributos aqui trazidos por
Francisco Vaz ajudam a melhor compreender a inegável importância dos autores
que estuda. Nos casos de Frei Manuel do Cenáculo e de Ricardo Raimundo
Nogueira, é patente o esforço em demonstrar como a matriz do pensamento de
Genovesi se transmite às concepções que os autores portugueses consubstanciam
através da ênfase colocada no papel da instrução e divulgação do conhecimento
com objectivos pedagógicos, quer no plano formativo e civilizacional, quer no
plano prático das reformas e acções concretas a promover com vista ao bem-estar
das populações. As suas obras e acções testemunham uma das principais ideias-
força do pensamento das Luzes, ou seja, que a instrução e a educação são
factores determinantes do progresso. Neste sentido, Frei Manuel do Cenáculo e,
sobretudo, Ricardo Raimundo Nogueira procuraram realizar projectos de reforma
tendo em vista a realização da felicidade e prosperidade económicas. Quanto ao
terceiro dos autores estudados, José António de Sá, o destaque é justamente
atribuído a uma outra das facetas cruciais da mentalidade ilustrada da época,
concretamente a ideia de que é necessário observar, viajar, percorrer o
território com o duplo propósito de o conhecer, à luz dos ensinamentos
proporcionados pelas ciências exactas e naturais, e de o transformar, à luz das
considerações doutrinais garantidas pelas ciências morais e políticas. A
economia surge na intercepção destes domínios que José António de Sá contribui
para promover através dos seus planos de observações e de viagens filosóficas,
beneficiando também do ambiente e condições criadas pela Academia das Ciências
de Lisboa.
O livro termina com uma breve conclusão que, de certa forma, procura resumir e
interligar os diferentes capítulos que o compõem. Apesar de útil, é sobretudo
revelador de uma das dificuldades que o leitor experimenta perante este livro:
a verificação de que a articulação dos conteúdos coerentes e precisos dos
diferentes capítulos não é plenamente alcançada através da presença de um fio
condutor, de um eixo ou núcleo de análise para o qual convirjam os argumentos
expostos separadamente. Não obstante esta reserva, sem dúvida que o somatório
dos capítulos constitui valiosa contribuição para o estudo da formação do
discurso económico na ilustração portuguesa.