Revolução e Cidadania: Organização, Funcionamento e Ideologia da Guarda
Nacional (1820-1839)
Arnaldo da Silva Marques Pata, Revolução e Cidadania. Organização,
Funcionamento e Ideologia da Guarda Nacional (1820-1839), Colibri, 2004, 180
páginas.
Em 1872, o Memorial Diplomatique, de Paris, publicava um estudo sobre Portugal,
traduzido como "Vida constitucional de um povo de raça latina". O
seu conteúdo agradou à classe política portuguesa: nele equiparava-se a vida
política de Portugal com as da Suíça, Bélgica e Holanda, diferenciando-a da
turbulenta e militarista Espanha; em suma, o país era louvado pela regularidade
do seu funcionamento institucional. Como rasgo do "bom senso" dos
portugueses, o artigo destacava que, de entre todos os países onde se
instituíra a Guarda Nacional, Portugal foi o primeiro onde se reconhecera a sua
"inconveniência".
Essa "inconveniência", no entanto, não foi óbvia para os liberais
de vários países europeus ao longo de quase um século. Por isso, qualquer
tentativa de compreender o que eram a cidadania e a acção política da época das
grandes revoluções não deve deixar de questionar os significados albergados por
uma instituição destas características — ou seja, uma força armada formada,
idealmente, por todos os cidadãos fisicamente aptos e com "algo que
perder"; uma força que, ainda por cima, se organizava de forma
democrática, com os suboficiais e oficiais eleitos por e entre os próprios
cidadãos-soldados que formavam cada secção da Guarda. A renovação da
historiografia sobre a experiência da cidadania no nascimento do mundo
contemporâneo exige o estudo destas instituições onde se pretendeu encarnar o
ideal republicano do cidadão-soldado, do virtuoso patriota armado, em condições
de deliberar de forma colectiva, tomar nas suas mãos a defesa do bem público e,
em situações de crise institucional, encarnar a soberania nacional. Igualmente,
a história do desmantelamento das guardas nacionais, o "reconhecimento da
sua inconveniência", tanto em Portugal como em França, Espanha ou noutros
países onde instituições semelhantes funcionaram, para além de corresponder ao
final da era das revoluções liberais, também nos revela o final de uma época
onde a sociedade liberal era imaginada como uma comunidade de cidadãos unidos
por um interesse público comum. Passou-se então a reconhecer a complexidade
social, a conflitividade dos interesses presentes e a necessidade de apurar a
existência de agências armadas especializadas na coerção pública — como
polícias ou gendarmerias —, separadas da cidadania comum e sujeitas, já não
directamente à capacidade de deliberação dos cidadãos, mas sim à lei e aos
poderes públicos. As milícias de partido, próprias do século XX, fazem parte de
outro mundo.
Revolução e Cidadania, o trabalho de Arnaldo Marques Pata, não podia ser mais
oportuno. Nele se analisa, pela primeira vez numa monografia, a organização e a
vida da Guarda Nacional em Portugal — apesar de o grosso da análise se limitar
ao caso de Lisboa. Originalmente, o trabalho foi redigido como tese de mestrado
na FCSH da Universidade Nova de Lisboa, orientada pelo professor Espinha da
Silveira, e incorpora, como fonte sistemática fundamental, os fundos sobre a
Guarda Nacional que se encontram no arquivo do Ministério do Reino, apesar de
trabalhar também fontes impressas da época e a historiografia contemporânea.
O livro divide-se em seis capítulos coerentes e bem ordenados. O primeiro
retrata os projectos de guarda nacional das experiências liberais da década de
1820 — que não tiveram a possibilidade de se consolidarem institucionalmente.
Também identifica os elementos ideológicos por trás do projecto das guardas
nacionais, colocando-o em relação com duas experiências históricas bem
conhecidas pelos liberais portugueses da época: a francesa e a espanhola. O
segundo capítulo analisa a implantação das guardas no território português a
partir de 1834, uma vez finalizada a guerra civil e aproveitando a
desmobilização do exército libertador e dos numerosos batalhões de voluntários
que tinham participado na contenda. Neste capítulo atende-se tanto às
formulações doutrinárias como aos problemas de organização no conjunto do país
entre 1834 e 1838 — a falta de motivação dos cidadãos e autoridades
responsáveis, os problemas na obtenção de armamento ou uniformes, a
desconfiança política perante a possibilidade de se estar a armar guerrilheiros
miguelistas — e, finalmente, a alguns valiosos serviços de ordem pública
prestados pelas guardas nacionais contra salteadores ou guerrilheiros. Os
restantes capítulos centram-se no caso dos batalhões da Guarda Nacional de
Lisboa. O terceiro, sobre a sua organização, os seus serviços de guarnição e a
sua vida interna; o quarto, sobre as eleições para oficiais, ressaltadas como
um elemento fundamental do seu carácter democrático. O autor, neste capítulo,
aproveita para elaborar um retrato da composição sócio-profissional desses
oficiais e cruzá-lo com a avaliação das suas preferências políticas, tal como
eram vistas no Ministério do Reino, mostrando assim que — nesse nível — não
havia diferenças quanto à origem sócio-profissional entre oficiais exaltados,
ordeiros ou cartistas. O capítulo 5 trata do protagonismo político da Guarda
Nacional entre a revolução de Setembro de 1836 e os confrontos de 1838 com o
exército; finalmente, o capítulo 6 retrata a vida dos batalhões lisboetas após
a derrota dos exaltados em 1838 e o seu progressivo desarmamento.
Na historiografia portuguesa interessada pelos acontecimentos políticos, a
Guarda Nacional foi retratada quando, juntamente com o batalhão do Arsenal da
Marinha, protagonizou a revolução de Setembro, se opôs à Belemzada e resistiu
às políticas do setembrismo ordeiro em 1838, agindo nestes últimos casos como
guardiã da pureza setembrista. Marques Pata volta a analisar a participação das
guardas nacionais de Lisboa nestes acontecimentos, mas também realiza uma
operação clarificadora: delimita o alcance da mobilização dos cidadãos-
soldados, referindo que apenas uma pequena parte dos 21 batalhões lisboetas
acudiu às rebeldes percussões de tambor, enquanto os restantes se mantiveram
fiéis às autoridades ou, mais frequentemente, desmobilizados. Deste modo, o
autor delimita o efeito da politização radical ou exaltada dentro das guardas
lisboetas, notando que na jornada decisiva de 13 de Março de 1838 apenas
acudiram à mobilização aproximadamente 800 dos 10 800 alistados. Por um lado,
se tivermos em conta que o alistamento nas guardas, com as respectivas
excepções, era universal entre os cidadãos com direito de voto, não resulta
surpreendente que a força de uma facção política minoritária fosse limitada.
Por outro lado, esta constatação não incorpora a passividade dos cidadãos-
soldados ordeiros, cartistas ou miguelistas, que, ao menos em Lisboa, não
converteram os seus batalhões em armas das suas próprias preferências
políticas. Apesar de o autor não perguntar explicitamente por que é que a
Guarda Nacional lisboeta não contemplou outro tipo de politizações, recolhe
informação que reforça a imagem que levou Costa Cabral a desarmar as guardas e
deixá-las languidecer. Em primeiro lugar, a procura de isenções por parte dos
cidadãos e, em segundo, o protagonismo de alguns exaltados. Segundo conta o
autor, o serviço na Guarda Nacional — a instrução, as rondas, os serviços de
guarnição, algumas detenções ou escoltas de presos — não era apreciado pelos
cidadãos, que valorizavam mais a livre disposição do tempo e a eleição dos
ambientes sociais onde se relacionarem. Tratando de não servirem em batalhões,
procuravam justificações, certificados médicos, faziam uso da sua influência
social e pessoal ou, finalmente, pagavam a substitutos assalariados, os
"marcas". Perante esta desmobilização da cidadania respeitável e a
sua disposição para pagar, ilegalmente, as isenções, alguns aventureiros
exaltados terão, de facto, podido fazer do serviço na Guarda Nacional a sua
profissão. Como comandantes ou oficiais intermédios, recebiam dinheiro a troco
de eximirem os cidadãos e, com o tempo, obtinham a lealdade dos
"marcas", que também se convertiam em guardas profissionalizados.
Esta explicação é consistente; no entanto, o autor não contribui com provas
definitivas que possam descartar a interpretação alternativa, a dos próprios
"patriotas" que viam na acção politizada das guardas a expressão
"da parte sã da nação" (p. 125), ou seja, daqueles cidadãos
dispostos a sacrificarem a sua vida privada em prol do benefício do bem
público, ao contrário daqueles que fugiam dos seus compromissos com o bem comum
e procuravam isenções para não servirem na Guarda. Para intermediar estas duas
leituras — que não são totalmente incompatíveis — seria necessária uma
aproximação mais minuciosa à vida das guardas nacionais: quantificar a presença
dos "marcas", a percentagem de substituições entre os 300 ou 400
soldados que se deviam apresentar ao serviço cada dia e ainda a carga mensal de
serviços realizados por aqueles cidadãos-soldados que cumpriam correctamente as
suas obrigações. Outra suposição do autor que não é suficientemente contrastada
é a de que a ideologização radical penetrou nas guardas através dos seus
comandantes (p. 123), deixando de lado a possibilidade de a eleição desses
comandantes ser o produto de uma composição social e política prévia de cada um
dos batalhões — ele próprio informa-nos de que 39,4% dos oficiais eleitos eram
exaltados — ou de que o ethos do radical, um tipo de cidadão com vocação
activista, conhecedor da organização e disposto a sacrificar o seu tempo nela
(pela sua própria disponibilidade), tivesse êxito como líder interno, sem que
isso pressuponha uma representatividade. Esta hipótese poderá também explicar
outro dado ressaltado pelo autor: o facto de grande parte dos homens das
secções da Guarda Nacional que lideraram os cidadãos-soldados nas situações
críticas não terem sido os comandantes formais, mas outros improvisados ou
interinos.
Seria enriquecedor para a nossa compreensão da década de 1830 em Portugal que
se realizassem estudos similares ao de Marques Pata para as guardas nacionais
de outros distritos, onde, além dos serviços de ordem pública, também havia
tanto indolência como politização, por vezes de cor distinta da de Lisboa. O
batalhão de Santarém, por exemplo, foi dissolvido depois de se ter incorporado
num pronunciamento cartista em 1837. No entanto, essa compreensão da vida
política da época seria ainda mais enriquecedora com a integração do estudo da
vida das guardas nacionais com a de outros âmbitos de participação e obrigação
política, tanto os informais (como os clubes) como os formais. Neste sentido,
as eleições em seio da Guarda Nacional não se deveriam desvincular das eleições
em muitos outros âmbitos, sobretudo durante os primeiros anos: eleições
municipais ou para comissário/ regedor de paróquia, administrador de concelho,
membro de uma junta de recenseamento, juiz, etc. Do mesmo modo, também a
análise da obrigação com o bem comum no serviço na Guarda Nacional se deveria
vincular com a de outro grande conjunto de prestações obrigatórias, como os
impostos e o serviço militar na tropa de linha — que recaía, normalmente, na
parte da população que não tinha recursos para ser membro da Guarda Nacional —,
e a de outras figuras de serviço obrigatório ao Estado, como os cabos de
polícia. Talvez apenas uma análise do conjunto dos vínculos de participação e
obrigação possa dar conta do significado real das guardas nacionais e,
simultaneamente, da condição de cidadania nos primórdios do liberalismo.
Apesar de o voo da imaginação historiográfica poder levar-nos a pedir mais —
mais ainda do que as fontes disponíveis nos permitem dilucidar —, Revolução e
Cidadania é, sem dúvida, um bom estudo que contribui com informação nova e
reflexão, um trabalho que deverá ser tido em conta nas futuras revisões sobre a
história política do primeiro liberalismo português.
DIEGO PALACIOS CEREZALES