Sidónio e Sidonismo
Armando Malheiro da Silva, Sidónio e Sidonismo, 2 vols., Coimbra, Imprensa da
Universidade de Coimbra, 2006, 431 e 413 páginas.
Em Sidónio e Sidonismo, adaptação da sua tese de doutoramento, Armando Malheiro
da Silva propõe algo de simultaneamente útil e difícil: apresentar ao leitor,
de forma exaustiva, os conhecimentos historiográficos sobre Sidónio Pais. Útil,
porque muito do que se escreve sobre Sidónio e a sua breve presidência da
República se baseia num número reduzido de fontes, nem sempre fiáveis, mas
sobre as quais assentam várias ideias feitas; difícil, porque,
tendo em conta a natureza da carreira de Sidónio Pais, tal obra é, em grande
parte, de pouco interesse para quase todos os potenciais leitores: a estreia
política de Sidónio ocorreu apenas após o 5 de Outubro; pouco conseguiu
realizar nos anos que se seguiram; em Berlim, como ministro, foi geralmente
ignorado pelos governos português e alemão; verdadeiramente nasceu para a
história com a conspiração que o levou ao poder em Dezembro de 1917, pouco
menos de um ano antes da sua morte violenta na gare do Rossio. Por outras
palavras, a biografia de Sidónio Pais, enquanto obra literária capaz de
entusiasmar o leitor e fornecer-lhe, tanto quanto possível, um entendimento da
forma de pensar e agir do sujeito retratado, é de difícil execução, já que
muita da vida levada por Sidónio foi tudo menos excepcional e o mito
sidonista, fascinante e único na história contemporânea portuguesa, mas
frequentemente abordado por outros autores, fica fora do âmbito de Sidónio e
Sidonismo.
A divisão desta obra em dois volumes, com o segundo dedicado exclusivamente ao
período de Dezembro de 1917-Dezembro de 1918, demonstra que Armando Malheiro da
Silva tentou resolver este dilema: mas nem sempre o esforço de adaptação da
tese de doutoramento para obra destinada a um público maior (esforço
demonstrado pelo enorme número de notas de rodapé que remetem o leitor, não
para as fontes, mas para a tese) foi bem sucedido. Qualquer dos dois volumes é
excessivamente longo, em parte pela reprodução, directa ou indirecta, de
documentos facilmente consultáveis (tais como decretos e debates
parlamentares), em parte pelo estilo do autor, algo dado a discussões
tangenciais que o afastam do essencial da obra. O ponto forte de Sidónio e
Sidonismo reside na pesquisa detalhada da vida de Sidónio Pais. A descoberto,
finalmente, ficam as suas várias carreiras: militar (surpreendentemente breve),
docente, administrativa, política (antes e depois do golpe de estado de
Dezembro de 1917) e diplomática. A descoberto fica, porém, o facto de haver
pouco de notável na vida de Sidónio até 1917. O autor lida também, e com
notável cuidado, com a pouco ortodoxa vida familiar do seu biografado. Para
qualquer historiador que queira referir-se a Sidónio e ao sidonismo, a consulta
da obra de Armando Malheiro da Silva será, e por muito tempo, obrigatória. Mais
discutível é a interptretação feita pelo autor do cômputo geral da obra
política sidonista e de algumas das suas partes.
Ao longo de 1918 e dos anos que se seguiram foram duas as questões que
dividiram a opinião pública portuguesa em relação a Sidónio Pais, à sua obra e
aos seus propósitos. A primeira, e mais importante, estava relacionada com a
intervenção portuguesa na grande guerra; a segunda, com as ligações entre
Sidónio Pais e os monárquicos. Por outras palavras, sobre a acção e a memória
de Sidónio pairavam duas acusações a de ser traidor à pátria e de ser traidor
à República. Muito mais tarde, historiadores e politólogos debruçaram-se sobre
outros aspectos do regime sidonista, especialmente as semelhanças notáveis
entre o dezembrismo e os regimes antidemocráticos que não tardariam a
proliferar por toda a Europa. Fora Sidónio Pais um pioneiro do assalto
autoritário ao liberalismo, um protofascista? O que teria acontecido a Sidónio
Pais, ao seu regime e a Portugal se este tivesse escapado às balas de José
Júlio da Costa na estação do Rossio?
Armando Malheiro da Silva, quanto às primeiras acusações, não tem dúvidas:
longe de ser um vendido ao ouro alemão, ou um germanófilo convicto, Sidónio
Pais esforçou-se por cumprir as obrigações de Portugal para com os aliados,
sendo impedido de reforçar o Corpo Expedicionário Português por uma série de
circunstâncias que não podia controlar. E, por outro lado, se Sidónio Pais
aceitou a cooperação monárquica, fê-lo apenas por ser estruturalmente
republicano, isto é, tolerante de outras forças políticas, disposto a um
compromisso que para ele nascia da necessidade de salvar o país. Quanto às
possíveis ligações ideológicas entre o regime sidonista e os vários regimes
fascistas ou meramente autoritários que se lhe seguiram, o autor declara logo
na introdução o seu ponto de vista: há um «erro óptico» que tem levado a quase
totalidade dos historiadores a confundir alguns dos elementos ideológicos
minoritários do republicanismo português, incapazes de se imporem após o 5 de
Outubro, mas nem por isso menos genuínos, com os regimes autoritários do pós-
guerra, incluindo o fascismo italiano. Segundo Malheiro da Silva, a nossa
hipótese parte, pois, desta mudança de perspectiva: acentuar que Sidónio Pais
foi, dentro dos seus particularismos psicobiográficos, um republicano e um
democrata e que o dezembrismo/sidonismo não representou qualquer tipo de
ruptura ou de alteração substancial relativamente à matriz ideológico-política
e político-institucional em que surgiu, achando-se incluídas no património
doutrinário do Partido Republicano Português, desde o último quartel de
oitocentos, a corrente presidencialista, a denúncia dos efeitos do
parlamentarismo e a ênfase positivista na aliança da ordem com o progresso.
Ninguém nega hoje o republicanismo de Sidónio e mesmo em 1918 e nos anos que
se seguiram apenas a imprensa do partido democrático o fez. É legítimo, porém,
questionar algumas das interpretações de Malheiro da Silva, tendo em conta a
longa tradição historiográfica não coincidente com qualquer posicionamento
ideológico de ver no sidonismo algo de novo. Em primeiro lugar, Malheiro da
Silva parece prestar à experiência da guerra menos importância do que esta
merece. O facto de Sidónio Pais cooperar com os aliados, especialmente com a
Inglaterra, é de pouca monta, pois estes queriam reduzir ao mínimo o esforço de
guerra português, o que ia de encontro aos desejos de Sidónio Pais. A política
intervencionista de, entre outros, Afonso Costa, António José de Almeida e
Norton de Matos foi feita, até certo ponto, contra a Inglaterra. Não foi por
escolha de Sidónio Pais que a tragédia do 9 de Abril ocorreu, isto é, não foi
por sua vontade que ainda havia tropas portuguesas nessa data nas trincheiras
da Flandres, mas porque os aliados, preocupados com a transferência da frente
leste para a França de formações alemãs após o tratado de Brest-Litovsk,
demoraram demasiado tempo a retirar o Corpo Expedicionário Português (CEP) das
linhas da frente. Discutir a política de guerra de Sidónio sem referir o papel
no golpe sidonista de unidades militares prestes a partirem para a França
(incluindo o célebre Infantaria 33), o regresso em licença a Portugal de
oficiais que não mais voltaram às suas unidades e a presença de Sidónio Pais no
cais de desembarque, quando chegavam os feridos, estropiados e doentes do
sector português da frente, é retirar a essa política a sua carga simbólica,
tão bem compreendida pela população portuguesa. Como explicar de outra forma a
explosão de popularidade de Sidónio, os seus banhos de multidão nas deslocações
fora de Lisboa? Seria também interessante saber o que Malheiro da Silva pensa
do timing do golpe sidonista, já que este impossibilitou a realização de uma
sessão parlamentar que se anunciava agitada, já que, tal como tinha acontecido
anteriormente em França, os deputados que faziam parte do CEP tinham regressado
a Lisboa para e isto dizia-se abertamente na imprensa lisboeta, e encontramos
ecos da acusa ção noutras fontes fidedignas impor uma nova e mais abrangente
União Sagrada, capaz de dar aos homens do CEP a sensação de que o país estava
realmente a apoiá-los. Seria Sidónio Pais capaz de derrubar tal governo? Agiu
ele de forma a antecipar-se a essa nova situação?
Mais importante, porém, é a discussão sobre o significado histórico do
sidonismo. Limitá-lo à expressão de correntes minoritárias do republicanismo
português é, de certa forma, menosprezá-lo enquanto fenómeno político, fazendo
dele o resultado de uma confusão momentânea no seio desse mesmo republicanismo,
rapidamente corrigida depois do fim da guerra. Malheiro da Silva sugere que,
com base na sua obra, se proceda a uma revisão do papel dos sidonistas no 28 de
Maio, na ditadura militar e no próprio Estado Novo. Mas, da mesma forma que se
podem exagerar, num erro teleológico, as ligações entre um regime e outros que
se lhe sigam, é possível exagerar as ligações entre esse mesmo regime e
regimes, ou doutrinas, que o tenham antecedido. O que há, por exemplo, de
verdadeiramente novo no programa de Mussolini em 1919? Muito pouco. Os aspectos
inovadores do fascismo italiano aparecem mais tarde, sobretudo após a conquista
de uma posição inatacável no governo. Mussolini partiu de uma base socialista,
radical, mazziniana: o resto veio depois, e com tempo esse mesmo tempo que
faltou a Sidónio Pais. Sidónio Pais agiu, em Dezembro de 1917, de forma, pensou
ele, a refundar a República, devolvendo-lhe a pureza inicial de Outubro de
1910, entretanto perdida pela «demagogia» dos democráticos. Mas a necessidade
de proteger a sua República Nova e, ao que parece (e Malheiro da Silva não a
nega), a enorme popularidade de que gozou, e que de forma pouco subtil tentou
manipular, levaram Sidónio Pais a afastar-se das suas intenções iniciais,
distanciando-se progressivamente das convicções políticas de toda uma vida e
dos princípios básicos do republicanismo português, aqueles que, até 1910,
asseguraram a união do Partido Republicano Português. Tendo a sua estada no
poder sido tão curta e marcada por tantas mudanças de direcção, a importância
de Sidónio Pais tem de ser avaliada não só pela obra por ele realizada, mas
também pela obra que pretendia realizar e isto não só em Dezembro de 1917,
como também em Dezembro de 1918, quando o regresso ao 5 de Outubro parecia já
uma miragem distante.
Filipe Ribeiro de Meneses