Portugal e a Escravatura dos Africanos
João Pedro Marques,Portugal e a Escravatura dos Africanos,Lisboa, Imprensa de
Ciências Sociais, 2004, 160 páginas.
O livro de João Pedro Marques foi feito para portugueses em um duplo sentido.
Sua estrutura é assemelhada a um trabalho de síntese como, aliás, alerta o
próprio autor cujo fim é claramente o de atualizar o público lusitano,
acadêmico ou não. Seu objeto é o Portugal incrustado em territórios recônditos
de certa cultura historiográfica, acuado pela dupla acusação de haver
reintroduzido o cativeiro no Ocidente e de não tê-lo combatido adequadamente
quando, séculos depois, quase todo o mundo o exorcizava.
Talvez se possa considerar que Portugal e a escravatura dos africanos
representa uma espécie de «resposta nacional» a estas imputações. Que seja.
Entretanto, em termos mais amplos, os portugueses não estão sozinhos na
contenda. A acompanhá-los está, por exemplo, o Brasil, onde o tráfico e a
escravização ainda hoje operam como fantasmas em seu imaginário nacional. Ali,
anualmente, produz-se um verdadeiro caudal de teses e dissertações nas quais,
não obstante a eventual qualidade acadêmica, gastam-se rios de tinta em
introduções transformadas em verdadeiras profissões de fé contra o cativeiro.
Como se fosse necessário, como se a escravidão moderna não passasse de tecido
morto. (Na verdade, estas anacrônicas tomadas de posição têm o seguinte
subtexto: todos são racistas, menos eu.)
Em um plano mais profundo, o que incomoda a muitos autores de ambas as partes
do Atlântico está em outro lugar na escolha que, em algum momento de suas
histórias, Portugal e Brasil fizeram pela eterna manutenção do status quo.
Opção amalgamada pelo catolicismo contra-reformista, é certo, mas para a qual,
de diferentes modos, o tráfico de escravos e a escravidão assumiram papel de
suma importância.
Fronteira vitoriosa na luta contra o islamismo, desde o início a nação
portuguesa se confundiu de tal modo com a igreja que, quando a Reforma cindiu a
cristandade, a Península Ibérica naturalmente se transformou em bastião do
catolicismo. Como se não bastasse, os ganhos derivados do comércio oriental e
das riquezas americanas permitiram a Portugal levar ao extremo um tipo de
sociedade fundado na afirmação de valores aristocráticos e na esterilização de
grande parte da riqueza social. Em vez de capturar nesses traços elementos de
um projeto arcaico tão legítimo quanto a opção pelo capitalismo, a
historiografia anglo-saxã mas também a francesa e a alemã esmerou-se em
reduzi-lo a mero «atraso». E um dos maiores signos dessa decadência radicaria
no pioneirismo lusitano no tráfico de africanos e no seu afinco à escravidão
quando, embalado pelo puritanismo abolicionista do Oitocentos, o Ocidente
denunciava a ambos. Eis como a escravatura se imprimiu como nódoa na imagem que
se tem dos portugueses.
Ironicamente, ao completarem-se duzentos anos da abolição do tráfico inglês
(1807), os ganhos obtidos pela historiografia anglo-saxã permitem redefinir
muito daquele ponto de vista que, nas palavras de João Pedro Marques,
«pesadamente responsabiliza os lusitanos pela existência de instituições tão
desumanas». Para tanto, o autor revela-se extremamente atualizado, demonstrando
enorme intimidade com o que há de melhor acerca da escravidão ocidental, com
destaque para o manejo de obras como as de David Brion Davis, Philip Curtin,
David Eltis, Joseph Miller, John Thornton, Paul Lovejoy, Ralph Austen, dentre
outros.
A verdade, sustenta Marques, é que até o século xviii a cultura ocidental
encarava a escravidão como uma muitas vezes dolorosa forma de promover o
progresso humano. Evitemos mal-entendidos. Ninguém em sã consciência questiona
a crueldade implícita em todo tipo de escravidão é absurdo pensar em bom ou
mau cativeiro. Um exemplo: de acordo com o historiador norte-americano Joseph
Miller, de cada 100 escravos apanhados em Angola, 36 morriam entre a captura e
o traslado até a costa, 7 à espera do embarque nos negreiros, 6 pereciam
durante a travessia oceânica e 23 feneciam nos primeiros anos de Brasil, ou
seja, em quatro anos, 72% de mortalidade acumulada!
Afiançando a escravização do africano estava certa visão depreciativa do negro,
muito comum à cristandade, e que não era de modo algum apanágio apenas dos
letrados ibéricos. Assim, se 55% dos norte-americanos adultos de hoje
interpretam literalmente a Bíblia, imagine-se quão corrente era, na época
moderna, associar os negros aos descendentes de Cã aqueles que, por terem
sido amaldiçoados por Noé, deveriam servir às proles de Sem (os asiáticos) e de
Jafé (os europeus). Outros coevos juravam de pés juntos que, por derivarem de
Caim, os africanos personificavam a própria maldição do Senhor. Não surpreende
que os negros encontrassem no cativeiro a saída natural para o vício que os
tecia. O aparecimento do Systema Naturae (1735), de Lineu, não melhorou as
coisas inscreveu o homem no reino animal, é certo, mas reiterou a
inferioridade do africano, indolente e astuto, frente ao europeu, delicado,
perspicaz e inventivo.
Portugal não apenas não era a única sociedade europeia a encontrar na religião
a justificativa para a escravidão moderna, como tampouco a inventou. Se o
cativeiro declinava desde a derrocada de Roma, ganhou força no Mediterrâneo dos
séculos xiv e xv, impulsionado por Gênova e Veneza, primeiro em suas plantações
de cana-de-açúcar no Oriente Médio, depois em Chipre, Creta e na Sicília.
Destaca-se em semelhante processo o peso da crise do século xiv, cujo principal
signo a enorme fratura demográfica resultou em panoramas razoavelmente
distintos dentro da própria Europa. No norte impulsionou o incremento do
exército de jornaleiros rurais e urbanos e a regulação de salários, além da
introdução do trabalho compulsório para os indigentes. Na Itália e Península
Ibérica, ao invés, incrementou a procura por escravos provenientes cada vez
mais do mar Negro, sem contar os africanos e um número cada vez menor de
mouros.
Portugal tampouco inventou o tráfico de africanos, que já existia sobretudo
para o mundo islâmico e, secundariamente, para o Mediterrâneo antes mesmo da
descoberta da América 6 milhões de africanos foram exportados até 1500, seja
por meio do Sahara, ou do mar Vermelho, ou ainda pelo Índico (já no século viii
existiam escravos africanos em locais tão distantes como Java ou Cantão). A não
ser como resultado de absoluta ignorância ou de mero posicionamento
politicamente correto calcado, não raro, na perigosa idéia de que raças
efetivamente existem , não há como descartar a prioridade muçulmana no
comércio de africanos antes mesmo de este representar papel importante para
Portugal e, depois, para as Américas.
A demanda americana potencializou o tráfico, é óbvio, mas jamais poderia ser
atendida na escala em que foi sem que a posse de escravos (e, como derivação, o
tráfico) representasse um dos poucos meios legítimos de enriquecimento
individual dentro da África tradicional. Ali, o escravo podia ser
comercializado, arrendado, legado, doado, penhorado e confiscado, motivo pelo
qual a duração e o volume das exportações de negros expressam o arraigo do
continente ao cativeiro, onde o tráfico atendia à simultânea demanda interna e
externa por braços e úteros. Em parte devido aos tênues limites que os separava
de outras vítimas da dependência pessoal, ainda não se pode precisar a exata
quantidade de cativos existentes nos antigos estados de Gana, Mali, Songai,
Congo, Monomotapa, Ndongo e em outras regiões. Mas nada indica que ali a sua
participação demográfica fosse inferior à detectada para os escravos da Grécia,
de Roma ou do sul dos Estados Unidos.
Razão parece ter o norte-americano John Thornton, para quem foi a hipertrofia
de instituições corporativas como a família, o clã e o próprio Estado o que
transformou a posse de escravos no meio mais eficiente de legítimo
enriquecimento individual do africano. Tratava-se de um contexto que fazia com
que a riqueza e prestígio de um homem estavam mediados pelo número de
dependentes e clientes que conseguisse possuir. Do que resulta terem sido as
elites africanas elementos tão ativos quanto as européias e americanas no
processo que tornava a escravidão a variável que amalgamava a Europa, a África
e as Américas ao redor de um verdadeiro sistema atlântico e não meras vítimas
passivas da tragédia implícita à escravidão.
O livro de João Pedro Marques ensina que a responsabilidade maior de Portugal
para com o cativeiro e o tráfico ocorreu no século xix, quando razões de Estado
impediram-no de, por muito tempo, associar-se à onda abolicionista que varria o
Ocidente. Aqui cabe um parêntesis. Pois se é certo que, no século xix, o
Ocidente transformou o comércio negreiro em excrescência, o racismo um dos
seus pilares teria de esperar o pós-1945 para ver-se alçado à condição de
crime contra a humanidade. E o motivo é simples: o combate sem trégua ao
tráfico de escravos não procedeu à integral separação entre raça e cultura,
razão pela qual muitas vertentes abolicionistas amaldiçoavam a compra e venda
de pessoas e, simultaneamente, insistiam na inferiorização do negro. Mais
ainda: algo dessa paradoxal tensão oitocentista ainda viceja no imaginário do
homem ocidental contemporâneo, sobretudo quando reduz o tráfico negreiro à
condição de problema exclusivamente europeu ou americano. Semelhante movimento
pode até apaziguá-lo ante a crescente demanda por correção política, mas
infantiliza o negro e banaliza o drama humano objetivo presente também no
paternalismo que por séculos privou-o de dispor de si mesmo nas Américas.
Da junção entre semelhantes torções cobra viço a África mítica, alter ego da
mãe preta cálida e inocente, ausente de hierarquias e indefesa frente à sanha
atávica de mouros e cristãos à qual me referi anteriormente. Encobre-se assim o
«trabalho sujo» a que se refere o historiador Jean Suret-Canale, representado
pela captura e venda inicial de milhões de infelizes pelos africanos. Oculta-se
igualmente a derivação: a renitência do cativeiro em vastas regiões de África,
especialmente em países como Mauritânia, Mali, Sudão, Camarões e Nigéria,
celeiros hoje de desgraçados de todas as idades sabe-se que no Níger um único
homem detém pelo menos 7000 escravos e no Chade pode-se alugar uma criança pelo
equivalente a US$ 8 mensais.
Mesmo no caso da resistência ao fim da escravidão, Portugal não se encontrava
sozinho no século xix. A acompanhá-lo estava o Brasil, postergando o trauma,
extraviando-se da modernidade e travando a nação no plano da paixão arcaica.
Nessa época, os milhões de africanos desembarcados nos portos brasileiros o
foram por iniciativa quase exclusiva do capital mercantil residente na América
portuguesa. É que, desde o século xviii, as comunidades traficantes de Rio de
Janeiro, Salvador e Recife passaram a dominar o fundamental das etapas
empresariais que garantiam o comércio negreiro, provendo-o de naus, de bens
para o escambo, arregimentando tripulantes e garantindo o negócio por meio de
suas próprias empresas seguradoras.
Em suma, de pequeno, o excelente livro de João Pedro Marques tem apenas o
tamanho. São grandes as suas ambições, precisos os caminhos que as afiançam e
cirúrgicas as suas conclusões. Resta torcer para que Portugal e a escravatura
dos africanos contribua para que a relativa invisibilidade que se impôs ao
negro em Portugal seja igualmente revertida.
Manolo Florentino