Apresentação
Apresentação
Ramon Sarró*
Ruy Blanes**
Religião, espaço e movimento
Seja qual for o tema com o qual se debatem, as ciências sociais não podem hoje
deixar de incluir na sua análise a problemática da mobilidade. A frase
"todos os cientistas sociais estudam as migrações", frequentemente
invocada para criticar a "moda" dos estudos sobre esta temática, não
deixa de assentar numa inevitabilidade. Hoje as palavras
"transnacionalidade", "globalização", estão na ordem do dia
(Carmo, Melo e Blanes, 2008). Nesta linha, de todos os contextos estudados
pelas ciências sociais, talvez o fenómeno que mais resistiu a esta necessidade
de "mobilização" tenha sido o da religião. Durante muitos anos, a
religião foi considerada por diversos autores, essencialmente fenomenólogos,
mas também sociólogos, como Peter Berger (1967), uma forma de
"ancoragem" das pessoas no mundo, de atribuição de um fundamento
ontológico à vida humana e de fixação da realidade que nos rodeia numa suposta
divisão entre o "sagrado" e o "profano"
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.
Hoje, no entanto, também a religião é cada vez mais abordada a partir dos
parâmetros do movimento ou pelo menos em relação com a mobilidade humana. Até
há cinco anos era frequente ouvir-se investigadores afirmarem que a religião
não fazia parte dos estudos sobre o transnacionalismo. Dessa
constatação partiram não só alguns dos artigos pioneiros que se escreveram
nesse momento (Levitt, 2003; Vertovec, 2004), como também algumas das
comunicações orais apresentadas na mesa sobre religião e migrações do VIII
Congresso Luso-Afro-Brasileiro, que se organizou em Coimbra em 2004 e que
esteve na génese deste número temático da revista Análise Social
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. Contudo, nestes últimos cinco anos, a religião não só se tornou relevante nas
análises sobre a mobilidade humana, como se converteu numa área de interesse
especial como fica demonstrado no facto de o maior centro de estudos sobre
migrações na Europa, recentemente constituído em Göttingen, se chamar Max
Planck Institute for the Study of Religious and Ethnic Diversity e de também em
Portugal a religião constituir uma linha prioritária de investigação nos dois
únicos laboratórios associados em ciências sociais: o Centro de Estudos Sociais
da Universidade de Coimbra e o Instituto de Ciências Sociais da Universidade de
Lisboa.
Porquê então este crescente interesse pela relação entre a religião e a
mobilidade humana? A resposta deve ser cuidadosamente formulada se não
pretendermos cair em estereótipos. Porque, de facto, incorremos num duplo erro
se assumirmos alguma das seguintes premissas:
a) em primeiro lugar, que no passado a religião e a mobilidade não se
associavam um pressuposto falso e contrariado, desde logo, pelos textos
religiosos mais antigos, que nos falam da mobilidade do ser humano e de que é
exemplo paradigmático o relato da expulsão do paraíso. Lembremo-nos ainda da
ligação entre as religiões "universais" e a mobilidade geográfica que
motivou a sua expansão na época das "conquistas",
"reconquistas" e "descobrimentos", ou da sabedoria popular
que afirma que "ninguém é profeta na sua terra";
b) em segundo lugar, que, mesmo admitindo que a relação entre a religião e a
mobilidade existia no passado, o estudo da religião e da mobilidade não
existia. Este seria outro erro crasso, já que desde o século XIX se
desenvolveram estudos sobre a expansão religiosa e a migração de símbolos e
cultos fora já um tema privilegiado pela escola difusionista desse século
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, tendo sido também objecto de análise por parte de um considerável número de
autores que estudaram a "recepção religiosa" ao longo do século XX
por exemplo, a recepção da religiosidade africana na outra costa do Atlântico,
estudada desde as obras seminais de Herskovits (1943) ou de Bastide (2007
[1960]).
Na nossa opinião, a explicação para este fenómeno terá a ver com o facto de que
o boom da migração (e dos estudos sobre a mesma) na década de 90 retirou
simplesmente a religião dos indicadores de relevância: a explicação para a
mobilidade humana não parecia precisar de ter em conta a religião, que se
tornava assim um parâmetro desprezível enquanto factor explicativo: à excepção
dos missionários e de algumas minorias de refugiados, quem emigra por causa da
religião? Hoje, no entanto, por diversas razões, já não é possível sustentar
esta "irrelevância".
Em primeiro lugar, porque desde o funesto 11 de Setembro que a associação entre
a mudança social e a vida religiosa é imediata na cabeça de qualquer pessoa
minimamente informada; a religião converteu-se num factor de relevância
cognitiva, invocado espontaneamente para explicar, compreender ou simplesmente
pensar a realidade multicultural do mundo em que se vive. Em segundo lugar,
porque a teoria da secularização afirmava que existe uma relação entre a
modernidade e o paulatino desaparecimento da religião ou pelo menos da sua
visibilidade no mundo actual. Seguindo essa linha de raciocínio, o que acontece
quando pessoas provenientes de um mundo "não tão modernizado" (ou com
uma modernização "alternativa") chegam à Europa? Será que elas trazem
uma religiosidade que os europeus já tinham "esquecido"? A migração
implica um desafio religioso para uma Europa bastante secularizada, e a
presença cada vez mais evidente da religião no território europeu deu origem a
duas tendências académicas nem sempre bem compaginadas: por um lado, alguns
autores reformularam a teoria da secularização, afirmando que a chamada teoria
"clássica" da secularização (exposta na década de 60 por Berger,
1967, e Martin, 1969, entre outros) era falsa porque a Europa não se estava a
secularizar tanto como (superficialmente) parecia
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. Por outro lado, outros autores propuseram-se demonstrar que a teoria não
estava necessariamente incorrecta, mas que apenas não contemplava o fluxo de
imigrantes que, precisamente, estaria a devolver à Europa a religiosidade
"abandonada".
Seria necessária, portanto, uma revisão de paradigma. Nos últimos anos, vários
autores procuraram responder a essa necessidade, preocupando-se com a criação
de novos modelos para pensar a religião na Europa e na América do Norte (Davie,
2000 e 2002; Levitt, 2007; Berger, Davie e Fokas, 2008) ou para pensá-la à
escala global, numa óptica de "relocalização" geográfica e
demográfica da fé (Jenkins, 2002 e 2007).
A obra basilar que inspirou essas novas abordagens foi, seguramente, O
Peregrino e o Convertido, de Danièle Hervieu-Léger (2005 [1999]), que propunha
um paradigma da "religiosidade moderna" que assentava em dois
pressupostos fundamentais: a individualidade da condição religiosa (já não
necessariamente imposta por herança ou jurisdição) e a mobilidade da crença (já
não enclausurada num lugar ou sistema político). Embora o tema da migração não
tenha sido incluído na perspectiva de Hervieu-Léger, o seu trabalho oferece um
modelo que permite considerar a mobilidade uma característica do fenómeno
religioso contemporâneo, superando dicotomias clássicas, como a ideia de que
existe uma religião instituída que se opõe a uma série de
"movimentos" religiosos (ou de "seitas", dependendo do grau
de cepticismo), ou a distinção entre uma religião "do lugar" e
religiões "estrangeiras".
Dirt is spirit out of place: o lugar da religião no mundo contemporâneo
O crescente interesse pela mobilidade religiosa despertou a consciência de que
a religião se encontra hoje em lugares distintos dos "do costume". O
cristianismo já não se move de leste para oeste, como fizera na antiguidade,
nem de norte para sul, como fizera na sua segunda expansão: hoje também viaja
de oeste para leste, de sul para norte e através de todo o tipo de
triangulações (v. Sarró e Blanes, 2008, para o caso do denominado
"Atlântico cristão"). Mas não se trata apenas do cristianismo: o
islão encontra-se hoje globalizado, o budismo ganha adeptos na África do Sul e
as religiões afro-brasileiras crescem nos banlieux de Paris.
Apesar desta constatação, persiste nas nossas abordagens uma certa
"geografização" da religião, que continua a fazer-nos pensar que a
cada religião corresponde um lugar mais ou menos "natural", no
sentido aristotélico: o lugar natural do islão, para muitos ocidentais, é a
Península Arábica ou o Magrebe; o lugar natural do hinduísmo é a Índia; o lugar
natural do cristianismo é o Ocidente; o xamanismo é próprio da Ásia, mas não da
África, etc. Se a realidade não corresponde a essa geografia ideal, é porque é
transgressora, e desafiadora do logos classificador. Por exemplo, em 2001, a
mulher do então presidente catalão, Jordi Pujol, afirmava que na Catalunha
havia demasiadas mesquitas e que, embora nada tivesse contra o islão, se estas
continuassem a multiplicar-se, no prazo de dez anos passariam a existir mais
mesquitas do que igrejas românicas (que são características da paisagem
pirenaica catalã). É curioso que ela tenha feito referência às "igrejas
românicas" e não às "igrejas católicas". As igrejas românicas
são um indicador de "catalanidade", de identidade cultural. Para além
do mais, são antigas as próprias raízes medievais da "catalanidade
pura". Mas não entremos na dimensão temporal:
em termos puramente geográficos, no mapa cognitivo da "primeira
dama", a Catalunha era uma terra cristã e não muçulmana. Ela não deixou de
explicitar: não tinha nada contra os muçulmanos, mas não aqui...
Este exemplo pode parecer banal, mas a ideia de que a religião
"própria" da Europa é o cristianismo encontra-se nas raízes da
constituição europeia e dos problemas políticos subjacentes à inclusão da
Turquia na União Europeia. No entanto, no mundo de mobilidades em que vivemos
talvez seja mais eficaz abandonar o aristotelismo essencialista e analisar a
realidade na sua fluidez constituinte, na qual as pessoas se movem e se
convertem, independentemente do lugar donde venham ou onde se encontrem.
Os autores que convidámos para colaborar neste número da Análise Social têm, a
priori, pouco em comum, para além de um interesse académico pela religião. As
bases disciplinares, métodos de abordagem e contextos estudados são, no mínimo,
diversificados. Esta constatação, porém, confirma o facto de a religiosidade
contemporânea exigir uma diversificação de abordagens. Neste contexto, para
evitar uma "clausura epistemológica", não quisemos convidar apenas
especialistas em migrações nem especialistas em secularização, mas antes
obrigar vários especialistas em religião a repensar a relação entre a religião
e a mobilidade humana a partir do seu material de estudo e das suas diversas
perspectivas.
Seja como for, dessa diversidade também sobressaem continuidades e aspectos
comuns às várias abordagens. Desde logo, constata-se a necessidade demonstrada
por todos os autores de procederem a uma análise não "geografizante",
no sentido aristotélico acima referido. Depreendem-se, de igual forma, vários
cruzamentos temáticos que valerá a pena sublinhar.
Em primeiro lugar, o reconhecimento de que, afinal, a religião pode desencadear
processos de migração que, mesmo que quantitativamente pouco significativos,
produzem impacto nos cenários religiosos de destino. Neste contexto, depois do
extenso corpus literário sobre as missões cristãs da época do colonialismo,
apercebemo-nos de que o conceito de "missão" não se esvaziou ou se
reteve num espaço histórico concreto, mas que se renova e recompõe na
contemporaneidade. É, pelo menos, o que nos descrevem os textos de Cecília
Mariz e de Eduardo Gabriel.
No primeiro caso, a autora descreve como o Brasil, historicamente lugar de
recepção de missões católicas, é hoje um exportador de missionação cristã
pentecostal não só para os antigos lugares de origem da "palavra" (a
Europa), mas também, seguindo lógicas diversas, tanto de sul para norte (tendo
os EUA como objectivo) como entre regiões do hemisfério sul, nomeadamente em
direcção a África. A autora analisa estes novos caminhos de disseminação
religiosa a partir de um marco teórico original em que “weberianamente”
encontra uma “afininidade electiva” entre a fluidez de pessoas e o capital
contemporâno — com as características descritas por Zygmut Baumann e Richard
Sennet — e a teologia prenumática da IURD e das comunidades católicas
carismáticas, as quais partem do Brasil, seguindo a rota de muitos emigrantes
brasileiros ou, em muitos casos, precedendo-os na implantação nos novos países.
A ambição teórica suscitada pelo material recolhido permite àqueles que se
interessam pela mobilidade religiosa pensar a relação entre a fluidez pós-
moderna e a viagem religiosa, tanto a dos crentes como a dos próprios
missionários. Eduardo Gabriel, num texto que de facto parece constituir a
continuação geográfica do anterior, explora em detalhe a introdução e o
significado da implantação de um destes movimentos em Portugal: o movimento de
renovação católica carismática Canção Nova, que ocorreu precisamente na região
historicamente simbólica para o catolicismo português: Fátima. O autor
demonstra que não basta analisar os movimentos na sua expansão geográfica, mas
que também é preciso estudar as negociações quotidianas que se estabelecem
entre os crentes portugueses e os introdutores brasileiros desta nova
religiosidade católica, tão diferente do catolicismo carismático de origem
brasileira — esta origem brasileira reporta-se apenas, obviamente, ao ponto de
vista do antropólogo, uma vez que para o praticante ela é puramente espiritual.
Estes movimentos constituem, como sugerimos acima, elementos que acrescem à
dinâmica de reflexão sobre a religiosidade na Europa — que ainda tenta lidar
com a data de validade epistemológica do conceito de “bastião cristão”
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. No entanto, esta reflexão não se aplica apenas à herança cristã: as dinâmicas
migratórias das últimas décadas que tiveram a Europa como destino não só
conduziram a essa dúvida epistemológica, como promoveram também novas vivências
da religiosidade através da condição de migrante — independentemente do credo
em causa.
Pensamos aqui, por exemplo, na constituição de um “pensamento muçulmano
europeu”, propulsionado por figuras proeminentes da teoria política
contemporânea como Tariq Rammadan ou Salman Sayyid, e que frequentemente
estabelece diálogo com os tradicionais centros ideológicos do islão, como nos
descreve Nina Tiesler no seu artigo. Outro exemplo (mais concreto) de
reconfiguração surge no texto de José Mapril, que traz a lume o problema da
deslocalização ou desterritorialização do ritual na vida e calendário religioso
daqueles que se vêem na conjuntura de uma migração laboral, como é o caso do
ritual de sacrifício muçulmano do qurbani entre os migrantes do Bangladesh em
Lisboa.
O mesmo sucede no artigo de Susana Pereira Bastos, que nos mostra como para os
hindus indo-britânicos a religião também pode ser um recurso “manejável”, para
utilizarmos os termos da autora. Apercebemo-nos de como as culturas migratórias
transnacionais que, tendo origem, ao longo do século XX, no Gujarat e passando
por Moçambique, pelo Reino Unido e por Portugal, se socorreram de um capital
simbólico e efectivo oferecido pelo sentido de pertença a uma comunidade hindu.
Mas a mobilidade não termina na migração. Tal como afirmámos acima, uma das
áreas em que houve mais reflexão teórica no que diz respeito ao tema da
recepção da religião foi a das religiões afro-brasileiras, que hoje continuam a
alimentar o corpo teórico e a recolha empírica sobre a religião e a mobilidade.
O nosso número, portanto, não podia deixar de contar com autores especialistas
nestes temas. Todavia, optámos por convidar autores que se demarcassem dos
paradigmas clássicos e que nos obrigassem a pensar sob um novo enquadramento a
forma como espíritos e objectos supostamente “africanos” se incorporam na vida
religiosa dos habitantes do Brasil de hoje. Os textos “gémeos” de Goldman e
Sansi obrigam-nos a repensar a cosmologia do candomblé a partir do seu
interior, partindo da subjectividade dos crentes, sem uma preocupação excessiva
por inserir o seu trabalho nas metanarrativas históricas ou geográficas, mas em
que a historicidade — entendida de forma diferente por cada autor — se revela
absolutamente necessária tanto para a desconstrução do “fetiche”, no texto de
Marcio Goldman, como para a “ilusão do sincretismo”, que nos é sugerida por
Roger Sansi com a sua fórmula “o sincretismo é história”. Esta proposta
recorda-nos as sucintas formulações de Lévi-Strauss quando, após uma série de
considerações críticas, acabava com a ilusão do totemismo. No entanto, se Lévi-
Strauss acabava com as ilusões “arcaizantes” mostrando as indiscutíveis
semelhanças nos modos de pensar humanos, Sansi e Goldman, cada um à sua
maneira, mas ambos influenciados por recentes desenvolvimentos teóricos da
antropologia e da filosofia (Deleuze, Gell, Latour, Strathern), mostram-nos que
compreender as epistemologias e ontologias candomblés não é só uma aproximação
a um modo de pensar, mas também a uma forma de sentir e de se situar em relação
ao mundo. Noutras palavras, um viver humano, a que o leitor não será alheio.
No seu conjunto, os textos deste volume permitem analisar as lógicas culturais
por trás da incorporação de discursos e práticas religiosas, ao mesmo tempo que
oferecem um material empírico original que nos permite pensar o papel da
religião no mundo lusófono contemporâneo, onde a pluralidade se impõe numa
progressão galopante.
A discussão que na Antiguidade clássica emergiu em torno dos perigos da entrada
das bacantes, com o seu culto dionisíaco, na polis apolínea — decisão vivida
como uma tragédia pelos contemporâneos de Eurípides e que Jonathan Z. Smith
(1982) soube utilizar magistralmente como modelo para pensar a aceitação (ou
não) de novos cultos na década de 70, marcada por uma grande preocupação, por
vezes exagerada, com o “perigo” das “seitas religiosas” — reactualiza-se hoje.
Contudo, já não surge em torno da questão das seitas, mas sim dos debates sobre
as práticas religiosas do imigrante, práticas mais ou menos aceitáveis, mais ou
menos negociáveis, mais ou menos compreensíveis.
Sem querer oferecer recomendações ao rei Penteu sobre o que deve ou não aceitar
na sua polis, os textos deste volume ajudarão o leitor a situar a importância
da religião no complexo espaço público contemporâneo, através da incorporação
de pontos de referência teóricos e da comparação de exemplos etnográficos, de
forma a poder reflectir sobre esta pluralidade cada vez mais visível. Resta-nos
agradecer aos autores a oferta de um material tão diversificado do ponto de
vista etnográfico (embora com cruzamentos muito enriquecedores, como os que se
dão entre os textos de Mariz e Gabriel, ou de Goldman e Sansi) e as reflexões
teóricas tão ricas e elaboradas que os seus textos proporcionam.