Judicialização da política no Brasil: controlo de constitucionalidade e
racionalidade política
b) Requerente II (actores políticos, jurídicos e sociais);
c) Requerido;
d) Tipo de lei;
e) Tópico da lei;
f) Decisão liminar;
g) Decisão de mérito.
Aspectos gerais da revisão abstracta no Brasil
O quadro n.º 1 demonstra o perfil de quem procura o tribunal, ou seja, de quem
judicializa a disputa. Numa primeira análise é possível afirmar que as teorias
europeias se confirmam. Como vimos, a revisão abstracta da legislação reforça a
relação entre a oposição e o tribunal na adjudicação constitucional3. Os
partidos políticos são os que movem mais acções (34,3%), sendo logo seguidos
pelas confederações sindicais ou pelas entidades de classe (32,6%).
Requerente (todos)
[Quadro_n.º_1]
Fonte:
Banco Nacional de Dados do Poder Judiciário (BNDPJ), Supremo Tribunal Federal
(1988-2002).
Na verdade, se adicionarmos às acções das entidades de classe da burocracia
jurídica (4,3%) as acções das confederações sindicais ou das entidades de
classe (32,6%), estas últimas passam a ser as entidades que mais processos
instauram junto do tribunal constitucional brasileiro (36,9%). A participação
activa das confederações sindicais ou das entidades de classe é, sem dúvida, a
grande novidade no cenário teórico, pois, em termos gerais, a participação
destes actores é vedada na maioria dos países europeus (Magalhães, 2003; Sweet,
2000). Elas, em tese, aumentam a capacidade de intervenção do tribunal no
cenário político. A Procuradoria da República também possui algum destaque,
apresentando 15,2% das ocorrências.
Criámos também uma variável categórica mais ampla para os requerentes e
distribuímo-la em três categorias: actores políticos, jurídicos e sociais. Como
sabemos, no Brasil o número de entidades com legitimidade para este efeito é
comparativamente superior ao dos países europeus, o que de certa forma
possibilita essa reclassificação e uma reflexão maior sobre a acção em conjunto
destes actores. Ao alargar essas entidades paracategorias maiores, é possível
observar, como mostra o quadro n.º 2, que os actores políticos correspondem a
41,9%, sendo seguidos pelos actores sociais com 32,6% e pelos actores jurídicos
com 24,3%.
Requerente (actores)
[Quadro n.º 2]
Fonte:
BNDPJ, STF (1988-2002).
Um aspecto importante da nossa pesquisa é compreender que tipo de lei vem sendo
questionada no Tribunal Constitucional. Para cumprir este propósito incluímos
uma variável categórica que define o tipo de lei, obedecendo às seguintes
especificações:
1) Legislação ordinária: foi classificado como legislação ordinária
todo o texto legal produzido pelos poderes executivo e legislativo
que possua função de ordenação, regulação e controlo do quotidiano da
administração pública e que foi alvo de uma acção directa de
inconstitucionalidade. Portanto, decisão administrativa, acto
declaratório, resolução, portaria, consolidação das leis do trabalho
(CLT), decretos, deliberações, convénios, comissão parlamentar de
inquérito (CPI), lei federal, instrução normativa, entre outras;
2) Decisão judicial e/ou administrativa: aqui foram classificadas
todas as decisões judiciais e actos administrativos do poder
judiciário e do Ministério Público e ainda os actos administrativos
da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB);
3) Medidas provisórias: todas as medidas provisórias, inclusive as
que apareciam em conjunto com as resoluções, decisões administrativas
e circulares, bem como as que foram convertidas em lei;
4) Lei complementar;
5) Emenda constitucional;
6) Constituição.
Como demonstra o quadro n.º 3, a legislação ordinária corresponde a mais de
metade dos casos (50,3%), sendo seguida pelas medidas provisórias (25,9%) e
pela decisão judicial (13%). Por outras palavras, 89,2% da legislação impugnada
diz respeito a decisões ordinárias dos poderes representativos e do judiciário,
com destaque para a vigilância exercida sobre as medidas provisórias.
Tipo de lei
[Quadro n.º 3]
Fonte: BNDPJ, STF (1988-
2002).
Para obtermos o peso real dos tipos de lei que foram judicializados temos de
fazer uma análise proporcional, como se vê pelo quadro n.º 4.
Proporção da judicialização por tipo de lei
[Quadro
n.º 4]
Fonte:
Taylor
(2004).
De uma forma geral, o quadro n.º 4 reforça a ideia de que o litígio
constitucional brasileiro ocupa um espaço significativo nas leis que auxiliam o
funcionamento da Constituição, como é caso, por exemplo, das leis
complementares. Além disso, existe uma vigilância acentuada sobre as
prerrogativas legislativas do poder executivo.
A lei complementar ocupa uma função importante no cenário de regulação
brasileiro, pois cabe-lhe regulamentar parte da Constituição. Como esta ocorre
quase sempre num terreno legal movediço, e a maioria necessária para a
aprovação é a absoluta, é de esperar uma forte contestação por parte dos
segmentos afectados4.
A medida provisória, pelo seu carácter legislativo especial e pela falta de um
debate parlamentar ex ante,atrai uma vigilância forte dos mais diversos
sectores. Aqui também é possível observar uma preponderância no acto de
judicializar por parte dos partidos políticos e das confederações sindicais e
entidades de classe.
Devido à relevância da administração pública enquanto objecto da adjudicação
constitucional, resolvemos, para feitos analíticos, dividi-la em três
categorias5. Outra diferença no tratamento dos dados em relação a Vianna et al.
(1999) é que as normas relativas à reforma agrária estão dispostas no tópico de
política social e, por fim, as normas que tratam do direito de greve foram
alocadas no tópico de relações laborais:
1) Administração pública civil: reúne a legislação que versa sobre
carreiras, remuneração e organização do serviço público, no âmbito do
poder executivo e do poder legislativo;
2) Administração pública judicial: reúne a legislação que versa sobre
carreiras, remuneração e organização do serviço público, no âmbito do
poder judicial;
3) Administração pública militar: reúne a legislação que versa sobre
carreiras, remuneração e organização do serviço público militar;
4) Política social: inclui normas que tratam dos sistemas de
segurança social não afectos ao funcionalismo público, bem como a
legislação reguladora do acesso a diferentes benefícios sociais.
Também se incluem nesta categoria as normas relativas à reforma
agrária;
5) Política económica: reúne as normas de regulação da economia
afectas à política cambial, monetária, salarial e de preços, com
excepção das de natureza tributária, tendo sido incluídas nesta
categoria as normas sobre o programa de privatização;
6) Política tributária: reúne as normas que tratam da definição da
base de cobrança e da parte alíquota dos tributos, também tendo sido
classificadas nesta categoria as normas referentes à concessão de
incentivos fiscais e à regulação das zonas de tributação especial;
7) Competição política: reúne normas relativas às eleições e aos
partidos políticos;
8) Relações laborais: inclui as normas que regulam o mundo do
trabalho, tais como os direitos dos trabalhadores, a organização
sindical e o direito à greve;
9) Regulação da sociedade civil: inclui as normas que ordenam as
relações entre particulares, como por exemplo a regulamentação da
cobrança de mensalidades escolares, das corporações profissionais, do
meio ambiente e das populações indígenas.
O quadro n.º 5 demonstra que a administração civil é a mais accionada(32,8%),
sendo seguida pela administração judicial (16,8%), pela política tributária
(11,1%) e pela competição política (9,6%).
Tópico da lei
[Quadro n.º 5]
Fonte:
BNDPJ, STF (1988-2002).
O quadro n.º 6 apresenta os dados sobre o tipo de lei que cada requerente
acciona com mais frequência. Todos os requerentes demonstram uma preocupação
com a legislação ordinária. Em quase todos, esse tipo de legislação aparece
como a mais accionada, o que de certa forma se relaciona com o amplo campo
jurisdicional desse tipo de legislação. O procurador-geral da República também
revela grande atenção em relação às decisões judiciais, incluindo as
administrativas. A OAB, os partidos políticos e as confederações sindicais ou
entidades de classe (inclusive as da burocracia jurídica), têm realizado uma
vigilância significativa sobre as medidas provisórias.
[Quadro_n.º_6]
Fonte:
BNDPJ, STF (1988-2002).
É curioso notar que os actores jurídicos (OAB e entidades de classe da
burocracia jurídica) e os actores sociais se juntam aos actores políticos
(partidos políticos) na vigilância às medidas provisórias. Esse instrumento
jurídico foi utilizado como uma grande arma legislativa do executivo. Os
critérios de uso das medidas provisórias (MP) estabelecidos pela emenda
constitucional n.º 32 de 2001 não interromperam a força legislativa do
executivo. Recentemente, o presidente do Congresso Nacional fez duras queixas
sobre o montante de medidas provisórias que entravam a acção do legislativo6:
O presidente do Senado, Garibaldi Alves (PMDB-RN), defendeu um
"legislativo mais activo [...]". O peemedebista ressaltou
que o Senado está parado devido ao excesso de MPs (medidas
provisórias): "É uma situação não apenas tensa, como
inaceitável, estamos, com isso, ferindo nossa Constituição, a
representação popular, a casa do povo" [Folha de São Paulo, 25
de Agosto de 2008].
No quadro n.º 7 é possível visualizar as áreas de interesse dos requerentes.
Com este quadro fica claro que, de uma forma geral, os requerentes procuram
impugnar tópicos relacionados com sua função ou interesse. As demandas dos
governadores relacionam-se sobretudo com as questões da burocracia do seu
estado (administração pública) e, quando muito, também com a política
tributária e a competição política. O procurador-geral da República dedica
grande parte da sua atenção à administração judicial. A OAB e as entidades de
classe da burocracia jurídica estão divididas entre a administração pública
civil e judicial. Os partidos políticos dirigem boa parte das suas acções para
os temas relacionados com a administração civil e com a competição política. As
confederações sindicais e as entidades de classe não apresentam uma
concentração como os demais requerentes, fruto da sua composição numerosa e
diversificada
7
.
Tópico da lei/requerente (todos)
[Quadro_n.º_7]
Fonte:
BNDPJ, STF (1988-2002).
Se compararmos o perfil das ADINs das confederações sindicais e das entidades
de classe, em geral, com o das entidades de classe da burocracia jurídica,
podemos verificar que, quanto mais homogéneo é o grupo, maior é a concentração
das acções. O interesse de cada confederação ou entidade é que dita a
estratégia de actuação na adjudicação constitucional. No entanto, é preciso
esclarecer que nem todos os entes com legitimidade activa podem propor qualquer
ADIN e que se exige, para alguns, o requisito depertinência temática, ou seja,
deve existir relação entre a norma impugnada e as actividades institucionais do
requerente (v. quadro n.º 8). Isto enfraquece um pouco o argumento de que os
requerentes buscam intentar acções relacionadas com tópicos afins às suas
funções ou interesses.
[Quadro n.º 8]
Fonte: Constituição
da República
Federativa do
Brasil.
O Julgamento das ADINs
O julgamento das acções directas de inconstitucionalidade processa-se,
basicamente, através de dois tipos de decisão. A primeira é a decisão liminar.
O pedido de liminar no direito processual brasileiro justifica-se pela chamada
"fumaça do bom direito". O juiz, no intuito de resguardar o
requerente de uma possível violação do seu direito, a qual, num momento futuro,
lhe causaria danos irreparáveis, autoriza liminarmente ou temporariamente (pelo
menos até a sentença do mérito) uma protecção do direito atingido, que pode
revestir diversas formas, dependendo do caso em questão. Por fim, a decisão de
mérito põe fim ao litígio. Neste artigo, as decisões de mérito e as decisões
liminares serão utilizadas como instrumentos de análise do processo de
judicialização da política. A nossa intenção é descobrir e compreender que tipo
de lei e, principalmente, que tópico de lei vem sendo revisto pela Suprema
Corte brasileira. Essa estratégia também fornece informações sobre quais os
actores e requerentes que são parceiros do Supremo Tribunal Federal na
adjudicação constitucional.
No quadro n.º 9 podemos observar a relação existente entre os requerentes
(todos) e a decisão liminar. Em termos proporcionais, destacam-se quatro
requerentes, os quais foram atendidos, no todo ou em parte, nos seus pedidos de
liminar.
Decisão liminar/requerente (todos)
[Quadro_n.º_9]
Fonte:
BNDPJ, STF (1988-2002).
As entidades de classe da burocracia jurídica tiveram 17,4% dos seus pleitos
liminares atendidos no todo ou em parte. Os governadores de estado e de
distrito federal obtiveram 19,4% de êxito na mesma proporção. A ordem dos
advogados do Brasil, através do seu conselho federal, atingiu os 25%. Por fim,
o destaque fica para o procurador-geral da República, que, em termos
proporcionais, é de longe o requerente que possui a maior taxa de sucesso na
obtenção de uma liminar (57,7%).
Como é possível observar no quadro n.º 10, a taxa de concessão da decisão
liminar, no todo ou em parte, dos actores políticos e sociais não ultrapassa os
11%, enquanto o desempenho dos actores jurídicos chega aos 44%.
Decisão liminar/requerente (actores)
[Quadro_n.º_10]
Fonte: BNDPJ, STF (1988-
2002).
Esses dados permitem-nos sugerir a hipótese de que os argumentos levantados ou
questionados pelos actores jurídicos possuem uma maior aceitação por parte dos
juízes do Supremo Tribunal Federal. Para o Prof. José Afonso da Silva isso
acontece porque o "mundo jurídico se organiza em face do próprio
Supremo" (Silva, 2005). Ou seja, a argumentação técnica (jurisprudência)
utilizada pelo Supremo é absorvida pelas corporações, que passam a actuar,
levando-as em consideração. O professor lembra que o conselho federal da OAB
mantém um grupo de estudo dedicado à revisão judicial que se reúne mensalmente.
Para o referido professor, os actores sociais não poderiam organizar-se num
mesmo nível, pois precisam de justificar a sua pertinência temática:
Não dá para montar banca de advogados em função de eventualidades.
Essas associações só podem entrar com pertinência temática. Essa
pertinência temática não ocorre todo dia. Então montar uma banca de
advogados em função de eventualidades seria um despautério. Não tem
como manter uma estrutura permanente pensando nisso [Silva, 2005].
De entre as entidades que não necessitam de comprovar a sua pertinência
temática, o procurador-geral da República e a Ordem dos Advogados do Brasil são
os únicos que não possuem cargo electivo popular, ou seja, não pertencem aos
actores políticos. Em certo sentido, esse quadro parece reforçar o tratamento
diferenciado que os actores judiciais (ou pelo menos boa parte deles) possuem.
A pertinência temática não parece ser uma boa resposta para justificar o baixo
desempenho dos actores sociais na obtenção de uma decisão liminar. Nessa linha
de raciocínio, os actores políticos deveriam ter um nível de obtenção de
liminar bem superior ao alcançado, já que eles também não precisam de comprovar
a pertinência.
Numa análise mais cuidadosa dos dados, é possível perceber que das 103 acções
em que os actores jurídicos obtiveram a decisão liminar (concedida totalmente)
8
, 90 (87,4%) eram acções que tiveram como requerente o procurador-geral da
República9. Portanto, se existe um domínio da linguagem, esse domínio
transcende o aparato técnico da teoria do direito e penetra no estreito
relacionamento institucional. Caso contrário, as instituições que dominam bem a
linguagem, como o conselho federal da OAB e as entidades de classe da
burocracia jurídica (Associação dos Magistrados Brasileiros, por exemplo),
deveriam possuir um padrão semelhante aos obtidos pela Procuradoria da
República.
O quadro n.º 11 trata da relação entre a decisão do mérito e todos os
requerentes. Da sua análise ressaltam duas características marcantes: (i) a
alta taxa de pedidos de mérito negados (663 casos, ou 61,8%); (ii) a alta taxa
de decisões pendentes (332 casos, ou 30,9%). Noutras palavras, em catorze anos
o Supremo Tribunal Federal resolveu interferir, ou rever, no todo ou em parte,
7,3% dos casos. A Corte Suprema também tem mantido um grande número de acções
sem julgamento (cerca de um terço), embora tenha decidido aproximadamente 70%
delas. Apenas a uma pequena parcela é efectivamente concedida revisão judicial.
Os dados confirmam as conclusões obtidas para outros países sul-americanos. A
trajectória de instabilidade política da região, os grandes períodos de
autoritarismo e o seu consequente modelo político baseado no presidencialismo
de coalisão propiciaram o desenvolvimento de uma estratégia de relutância face
ao activismo (Helmke, 2005; Melo, 2007).
Decisão de mérito/requerente (todos)
[Quadro_n.º_11]
Fonte:BNDPJ, STF (1988-2002).
Os dados também apontam para uma posição de destaque do procurador-geral da
República. O procurador possui uma taxa de sucesso muito superior aos demais
requerentes (34,3%). A sua posição de relevo na aprovação das liminares
reflecte-se nas decisões de mérito. As entidades de classe da burocracia
jurídica são o tipo de requerente que mais se aproxima do procurador, com
valores na ordem dos 6,5%, o que só enfatiza o desempenho do procurador.
Curiosamente, os requerentes que mais solicitam a intervenção do tribunal
(partidos políticos e confederação sindical e entidades de classe) são também
os que possuem, em termos proporcionais, os piores desempenhos. Parece que a
ideia de uma adjudicação compartilhada defendida por parte expressiva da
literatura brasileira sobre o tema não foi absorvida pelo Supremo Tribunal
Federal
10
. A disposição de contribuir, de submeter à apreciação do tribunal os textos
legislativos federais, é inquestionável. No entanto, para que a adjudicação
constitucional se efective é necessário que os argumentos apresentados pelos
requerentes sejam aceites. Nesse sentido, um grupo (actores jurídicos), ou
melhor, um requerente (procurador-geral da República), destaca-se de forma
isolada.
No quadro n.º 12 fica clara a superioridade da performance dos actores
jurídicos na obtenção do mérito das suas acções junto do Supremo Tribunal
Federal. Enquanto os actores jurídicos obtiveram êxito, no todo ou em parte, em
22,6% das acções intentadas, os actores políticos e sociais obtiveram apenas
2,7% e 2%, respectivamente.
Decisão de mérito/requerente (actores)
[Quadro_n.º_12]
Fonte: BNDPJ, STF (1988-
2002).
O quadro_n.º_11 reforça esta leitura, pelo sucesso das acções movidas pelo
procurador-geral da República: das 49 acções concedidas por mérito (sem
restrições), 47 delas foram propostas pelo procurador.
Em resumo, levando em consideração todo o ciclo de revisão judicial e no que
diz respeito à taxa de sucesso na efectivação da adjudicação constitucional, o
procurador-geral da República é, sem dúvida, o maior parceiro do Supremo.
No que toca à relação entre a decisão liminar e o tópico da lei em questão, o
quadro n.º 13 sugere que o Supremo Tribunal Federal, através do julgamento de
acções directas de inconstitucionalidade que possuem como objecto jurídico uma
legislação federal, tem demonstrado existir uma tendência decisional ou
jurisprudencial de controlo da política judicial por via da revisão abstracta
da legislação. Portanto, o STF faz uso das suas prerrogativas constitucionais
para rever a política judicial em todo o aparelho judiciário, e isso ocorre em
estreita parceria com a Procuradoria da República. É interessante notar que
essa disposição não entra em conflito com nenhum outro requerente, actor ou
tópico de lei.
Decisão liminar/tópico da lei
[Quadro n.º 13]
Fonte: BNDPJ, STF (1988-2002).
O quadro_n.º_12 demonstra que a parceria entre a Procuradoria da República e o
Tribunal Constitucional brasileiro tem como foco principal a administração
judicial, que teve, no todo ou em parte, 48,3% das liminares aceites, sendo
seguida pela regulação da sociedade civil (21,3%) e pela política tributária
(16,8%).
Os dados indicam que essa parceria na adjudicação constitucional além de
selectiva no que diz respeito ao requerente, é especializada num tema. Os dados
apontam que o Supremo tem mais propensão para regular, ou melhor, para rever, a
legislação que tenha como foco temático a administração da justiça.
O Ministério Público, representado aqui pelo seu dirigente maior, o procurador-
geral da República, exerce uma função de parceria com o Supremo Tribunal
Federal na administração do aparelho judiciário. Quais serão as razões desse
activismo? Para Amaral (2004), a independência administrativa e funcional do
Ministério Público e do Judiciário levou a um número relativamente alto de
abusos, "tais como a concessão de reajustes de vencimentos através de
meros actos administrativos, sem a necessária elaboração de projectos de lei a
serem submetidos à discussão e à votação" (Amaral, 2004, p. 48). Além das
questões pecuniárias, as relativas à organização e à composição também eram
frequentes11. Esses factos, como mostram os dados, tornaram-se o alvo
preferencial das revisões judiciais oriundas da parceria entre o procurador-
geral da República e o Supremo Tribunal brasileiro.
Por fim, o quadro n.º 14 retrata a relação existente entre os tópicos da lei e
a decisão de mérito e vem confirmar de novo as evidências no que concerne às
decisões liminares. O tópico da administração judicial viu mais de um quarto
das suas acções revistas judicialmente, no todo ou em parte. Os restantes
tópicos registaram índices inferiores a 6,5%. É interessante notar também que,
das 56 ADINs que obtiveram concessão do mérito sem restrição, 40 (ou 71,43%)
versavam sobre a política ou administração judicial, ou seja, mais de dois
terços.
Decisao de mérito/tópico da lei
[Quadro n.º 14]
Fonte:BNDPJ, STF (1988-2002).
As outras 16 ADINs (ou 28,57%) estão distribuídas entre outros cinco tópicos.
Portanto, retirando as ADINs que tratavam de temas referentes à administração
judicial, a revisão judicial com decisão de mérito efectiva restringe-se a 1,5%
do total de ADINs. Se a iniciativa dos intérpretes (ou legitimados activos) da
Constituição, constante da revisão judicial, está a conduzir o Supremo Tribunal
Federal para a assunção de novos papéis
12
, esse novo papel não é de enfrentamento do poder soberano, e muito menos de
uma terceira câmara legislativa (Sweet, 2000).
Considerações Finais
De uma forma geral, podemos afirmar que as teorias de médio alcance produzidas
pela literatura europeia são fortemente aplicáveis ao Brasil. Nesse sentido,
apolicy-seeking approach
13
não só explica o comportamento das oposições partidárias, como também explica,
em boa medida, o comportamento dos demais entes com legitimidade activa
14
. Nesses casos, o litigante, quando recorre à justiça constitucional, fá-lo
contra uma legislação que vai contrariar as suas preferências ou interesses;
segundo, não existem custos sobre qualquer coisa associada com a revisão
abstracta da legislação ou, pelo menos, os benefícios potenciais da litigação
pesam mais do que os custos potenciais. O resultado disso é que, num período de
catorze anos, os partidos políticos (principalmente a oposição) apresentaram
368 ADINs (34,3%) e as confederações sindicais e as entidades de classe
(incluindo as da burocracia jurídica) cerca de 396 ADINs (36,9%). Essas duas
entidades equivalem a 764 ADINs, ou 71,2% de todas as acções interpostas no
cenário federal. Portanto, a judicialização da política, entendida como um
fenómeno de chamamentodo judiciário, de um convite à participação na
adjudicação constitucional, é feita maioritariamente pelos partidos e
confederações. Um relato que reforça essa lógica foi dado por um antigo
ministro do Supremo Tribunal Federal:
Nós já tivemos o caso em que o partido tinha apenas um deputado que,
em vez de discutir questões políticas de elaboração legislativa na
Câmara, preferia assistir às sessões do STF, dizendo: "porque
aqui posso pôr abaixo o que lá, minha voz isolada de nada
adiantará". E mais ainda com propaganda, porque os jornais
diriam "essa lei caiu graças ao esforço do deputado fulano de
tal [Moreira Alves, 1997, p. 276].
Outro ponto relevante da teoria europeia é a ideia de que sem um aparelho
judicial completamente separado do mundo político não haveria judicialização
nem tão-pouco activismo judicial. É aquilo a que podemos chamar unconstrained
courts approach da decisão judicial. Para essa abordagem, os juízes funcionam
como agentes livres nas suas relações com os partidos políticos e com as
maiorias legislativas. Sem essa liberdade não haveria independência e
dificilmente os partidos e as demais entidades com legitimidade para o efeito
apresentariam os seus pedidos. Vale a pena realçar que a institucionalização
das garantias constitucionais dos juízes foi uma conquista histórica, não
estando totalmente vinculada aos feitos da Constituição de 198815.
Outra conclusão relevante é a forte vinculação existente entre o requerente e o
tópico de lei submetido a juízo. Quase todos os requerentes concentram o seu
raio de actuação em pelo menos dois tópicos (v. quadro_n.º_6). Os actores
políticos e jurídicos, por exemplo, possuem mais de 60% das suas ADINs
concentradas em duas áreas temáticas (v. quadro_n.º_7).
A vinculação de carácter utilitarista que explica a concentração dos tópicos de
lei judicializados pelos requerentes também explica a dispersão. Como podemos
observar (v._quadro_n.º_7), os actores sociais também seleccionam os tópicos de
lei de acordo com os seus interesses. A diferença reside na diversidade e
pluralidade de interesses que as associações e as confederações sindicais
representam.
No tratamento dos resultados da revisão judicial, ou seja, no que diz respeito
ao julgamento das ADINs, podemos afirmar que a estratégia de julgamento do
Supremo Tribunal Federal obedeceu a uma lógica de selectividade e
especificidade. Por outras palavras, foi selectivo na escolha do parceiro e foi
específico no tema que estava disposto a regular.
Não vamos repetir os dados expostos. Em todos eles, um após outro, o
procurador-geral da República surge como o grande parceiro do Tribunal
Constitucional brasileiro no rule making. Contudo, como foi visto, a parceria
limita-se a um campo bem específico, o da administração judicial.
Por outro lado, a tese de que o Supremo Tribunal Federal, com base na revisão
abstracta da legislação, vinha assumindo papéis importantes no processo
decisório fica seriamente comprometida.