O metadiscurso no contexto forense: algumas reflexões
1. Introdução
Metadiscurso' é um termo habitualmente utilizado para denominar dois tipos de
fenómenos: designar as relações do produtor do texto quer com o seu próprio
texto quer com o seu interlocutor.
A investigação em torno do conceito de metadiscurso remonta aos trabalhos de
Malinowski (1927), que afirma a importância da linguagem na manutenção de laços
entre os falantes e chama comunicação fática' a essa função específica da
linguagem. Harris (1959/1970: 464-466) também se referiu ao termo definindo-
o como um fragmento textual contendo informação de natureza secundária. E
Jakobson (1963) identifica seis diferentes funções da linguagem, por entre as
quais surge a função metalinguística definida como a função que permite à
linguagem falar de si própria.
Bateson (1972/1955) estabelece uma distinção entre mensagens metalinguísticas e
mensagens metacomunicativas, as primeiras centradas em torno da linguagem e as
segundas tomando como objecto de discurso as relações entre os interlocutores.
Gaulmyn (1987: 170) também avança nesta direcção e apresenta uma tripartição do
conceito introduzindo três noções distintas: metalinguagem, metacomunicação e
metadiscurso. Se esta teoria recobre, em parte, a distinção de Bateson, o
conceito de enunciado metadiscursivo particulariza um pouco mais as categorias
ao ser definido como o enunciado que se refere ao discurso proferido.
A partir destas abordagens pioneiras, a análise deste metanível da comunicação
linguística evoluiu em várias direcções.
Para alguns autores, nomeadamente Brown & Yule (1983), a distinção entre
enunciados transaccionais e interaccionais fundamenta também uma separação
entre o discurso e o metadiscurso, o primeiro tendo por função transmitir
informação acerca do mundo e o segundo, transmitir informação acerca de
relações interpessoais. Aliás, esta separação entre o significado de natureza
proposicional e o outro significado, de natureza metadiscursiva, está
subjacente a muitas definições de metadiscurso. As palavras de Ifantidou (2005:
1326) ilustram bem esta orientação:
( ) metadiscourse has been standardly viewed as discourse which goes
beyond and above the actual content of the basic propositional
information being presented ( ).
No entanto, esta distinção entre significados proposicionais e não
proposicionais revela-se algo frágil, já que, como sugerem Hyland & Tse
(2004), a omissão do conteúdo de natureza metadiscursiva não raro afecta o
outro significado. Aliás, Verschueren (1999: 187-188) afirma que o metadiscurso
é uma dimensão fundamental do discurso, o que significa que os dois níveis de
significado não funcionam um sem o outro. O metadiscurso não deve, pois, ser
encarado apenas como um mero adjunto, algo independente a que se recorre num
determinado momento para expressar uma certa forma de organizar o texto, um
certo ponto de vista, ou para estabelecer uma certa relação com o interlocutor,
mas sim como uma dimensão fundamental e intrínseca ao uso das línguas.
Noutros autores, é visível que a discussão em torno do metadiscurso e da sua
definição tem sido fortemente tributária da perspectiva, funcionalista, de
Halliday. Vários estudos têm assinalado a existência de um metadiscurso
textual, através do qual o locutor mostra a forma como organiza o seu discurso
e a forma como ele deve ser interpretado, e um metadiscurso interpessoal que
permite ao falante estabelecer determinado tipo de relações com os restantes
interlocutores. Em cada interacção verbal, os falantes actuariam, assim,
concomitantemente, em três planos significativos distintos, comunicando um
determinado conteúdo, escolhendo um determinado formato textual e relacionando-
se com os seus interlocutores, o que comprova, uma vez mais, que a componente
metadiscursiva está intrinsecamente ligada ao plano proposicional dos
significados.
Como facilmente se pode atestar, hoje em dia, o interesse relativo ao tema
continua activo; muitas continuam a ser, contudo, as dificuldades definitórias
em torno do conceito. Ädel e Mauranen (2010: 1) falam mesmo de um significado
central, em torno do qual todos os investigadores convergem: o metadiscurso
designa o discurso que fala de si mesmo. Para além deste ponto, basilar, é
difícil obter a anuência de todos. Quais as instâncias que devem integrar este
conceito? Quais são as fronteiras que o delimitam?
Esta mesma proliferação de perspectivas reflecte-se, obviamente, no tipo de
abordagens, umas mais quantitativas, centradas no arrolamento de itens
linguísticos previamente identificados como metadiscursivos, outras mais
qualitativas, centradas na análise contextualizada, e portanto dependente dos
dados, das possíveis ocorrências de natureza metadiscursiva e na análise das
suas funções discursivas. Embora grande parte das classificações se inspire,
com algumas variantes, no trabalho seminal de Vande Kopple (1985), é visível
uma grande multiplicação de definições e metodologias de abordagem do
metadiscurso, decorrente, em grande medida, dos inúmeros domínios em que tem
sido investigado: manuais e artigos científicos (cf. Crismore 1984 e Hyland
1999), anúncios (cf. Fuertes-Olivera, Velasco-Sacristán, Arribas-Baño e
Samaniego Fernández 2001), editoriais (cf. Dafouz-Milne 2008), conversa
espontânea (cf. Schiffrin 1980), debate parlamentar (cf. Ilie 2003 e Guillem
2009), só para citar os mais importantes ' o que conduziu também ao surgimento
de uma grande variedade de taxinomias dos marcadores metadiscursivos.
A nossa abordagem é, essencialmente, data-oriented, o que significa a análise
contextualizada de ocorrências metadiscursivas. Mais do que procurar instâncias
de uma lista pré-definida de potenciais expressões ou enunciados
metadiscursivos, interessa-nos descobrir, neste contexto muito específico ' a
sala de audiências ' os segmentos que aqui funcionam efectivamente como
enunciados metadiscursivos (ainda que noutros settings não funcionem como tal)
e que funções discursivas aqui desempenham.
2. Metadiscurso e Tribunal
Constituindo um dos poderes actuantes nas sociedades contemporâneas, os
tribunais são instituições, ou seja, estruturas organizadas de profissionais e
rotinas que, tendo um propósito social, o de regular/regulamentar e vida em
sociedade e o de sancionar certos comportamentos, estão imbuídos de uma
vertente fortemente normativa, tornando-se impositivos para os seres de uma
determinada comunidade. Isto significa que, como outras instituições sociais,
os tribunais assentam num sistema, altamente burocratizado, de regras que
estruturam a vida e a interacção social.
A forte vertente autoritária que caracteriza estas estruturas sociais
manifesta-se também, linguisticamente, através do discurso poderoso e
especializado por elas exibido. Como Gibbons (2005: 75) bem assinala:
An important manifestation of power relations is language behaviour.
The manner in which power and authority are exercised through
language is a significant issue in the study of language and law.
Este forte enquadramento institucional define quem pode falar, com quem, sobre
o quê e em que circunstâncias; por isso se diz que o discurso do tribunal é
revelador da rede de relações sociais (e hierárquicas) existentes entre os
diversos participantes e é denunciador das fracturas culturais e cognitivas que
separam os participantes em dois grupos distintos: os que têm pleno acesso à
palavra e à legitimação dos seus pontos de vista e aqueles que vêem severamente
limitado o seu desempenho linguístico.
Não espanta, pois, que um dos aspectos que reiteradamente têm sido alvo de
análise neste âmbito seja o do uso de estratégias metadiscursivas na audiência
e muitos têm sido os investigadores a salientar a importância do metadiscurso
nos discursos institucionais.
Constituindo a interacção que decorre em sala de audiências uma troca
finalística, isto é, dotada de um objectivo bem definido, regida por normas
estritas, previstas, aliás, pelo Direito Processual, e, no seu todo, enquadrada
por fortes constrições organizacionais, é imperioso que todos os participantes
sigam as regras e não derroguem nenhum princípio orientador dos trâmites
processuais. O permanente controlo discursivo dos leigos, que tipicamente
desconhecem essas regras ' através de expressões metadiscursivas ' torna-se
assim, premente. Ao fazê-lo, os profissionais estão a explicitar a forma como a
interacção verbal deve decorrer e, em simultâneo, a monitorizar permanentemente
o discurso alheio.
Apesar deste interesse em torno do metadiscurso nos sites institucionais, um
dos aspectos mais negligenciados no estudo do metadiscurso em sala de
audiências tem sido o uso do metadiscurso protagonizado pelos profissionais e
dirigido aos seus pares.
Embora o discurso dos magistrados e dos advogados revele uma relativa
homogeneidade e uniformidade, tendo em conta a partilha de uma formação
académica similar, dos mesmos modelos cognitivos e da mesma experiência diária,
é visível a frequente ocorrência de segmentos de natureza metadiscursiva que
assinalam a sua preocupação, quer com o seu próprio discurso, quer com o
discurso dos restantes profissionais do fórum.
Neste sentido, a presente comunicação pretende compreender que tipo de
segmentos metadiscursivos são produzidos pelos profissionais; perceber se, de
algum modo, se articulam com rotinas institucionais estabelecidas (ou não); se
estão afectos a determinados papéis interaccionais e institucionais
desempenhados pelos diversos interactantes ' na permanente negociação dos
lugares e poderes interaccionais e institucionais afectos a cada um ' e, por
último, analisar a sua imbricação com o discurso de natureza referencial/
proposicional dos falantes.
Partiremos da proposta avançada por Hale e Gibbons (1999) relativa à existência
de dois planos da realidade que se manifestam e intersectam na sala de
audiências: o plano da realidade primária, que consiste no contexto do próprio
Tribunal, espaço físico e simbólico, com um determinado número de participantes
que interagem entre si no âmbito de uma audiência; e o plano da realidade
secundária, que envolve os eventos em disputa, os factos e as versões
alternativas de factos em contenda, em suma, a construção de uma história. É
esta realidade secundária que constitui a razão de ser de um processo judicial.
Apesar da óbvia intersecção entre as realidades primária e secundária, nós
pretendemos ainda afinar um pouco mais esta distinção, afirmando que no
cruzamento desses dois planos, podemos ainda recortar dois outros níveis de
análise: o discurso (e a interacção verbal) claramente referencial que permite
reconstruir os eventos e organizar uma história consistente, e um outro
discurso, que incorpora o anterior, e explicita as condições em que ele é
produzido. Se o primeiro se integra no âmbito da realidade secundária, isto é,
diz respeito ao aporte de uma realidade exterior que, no Tribunal, tem de ser
reconstruída de forma mais ou menos coerente e convincente, este último,
claramente metadiscursivo, encontra-se na charneira entre os planos da
realidade primária e secundária, pois monitoriza a construção do discurso,
questionando, comentando ou reflectindo a própria actividade comunicativa, ou
alguns dos seus aspectos. É precisamente aqui que vamos centrar a nossa
análise, evidenciando os procedimentos linguístico-discursivos de que os
profissionais se servem para focalizar a sua actividade linguística, bem como a
dos seus pares, sinalizando as condições em que se processa a audiência,
questionando os papéis interaccionais e institucionais desempenhados por cada
um, avaliando a eficácia comunicativa da mensagem e a sua adequação ao
contexto, enfim, problematizando o próprio enquadramento judicial do discurso
referencial.
Os dados, autênticos, que fundamentam este estudo resultam de um corpus
constituído por algumas audiências, gravadas no Tribunal de Coimbra, no final
dos anos 90 e incluem casos do domínio criminal, assim como do domínio civil.
[1] A amostra aqui utilizada inclui exemplos retirados de quatro audiências
distintas: a falsificação de uma carta de condução (Aud. 1); o tráfico de
drogas (Aud. 2); um roubo (Aud. 3) e um acidente de automóvel (Aud. 4).
3. O metadiscurso dos profissionais forenses' traços gerais
No decurso de um julgamento, são inúmeros os fragmentos discursivos produzidos
pelos magistrados e advogados que comentam, reflexivamente, o próprio discurso,
desviando, assim, o foco de atenção da realidade secundária, ou seja, dos
eventos passados cuja verdade material é necessário averiguar em audiência,
para um outro domínio de referência, o da construção do discurso, da própria
interacção verbal (e social). Vejamos um exemplo que atesta a presença desse
metadiscurso:
(1) Aud. 2, linhas 1339-1340
MP ' Testemunha. Ahvvv o que eu vou fazer é o seguinte: é quevvv fique em acta
que o que o senhor está a dizer agora /[2]
Os dois grandes traços definidores do metadiscurso forense (e referimo-nos,
como é óbvio, ao protagonizado pelos profissionais) decorrem precisamente das
características exibidas pelo evento comunicativo que tem lugar na sala de
audiências.
Um dos traços mais relevantes de um julgamento é a grande quantidade de diálogo
que nele ocorre; como o próprio nome indicia, a audiência é um evento
comunicativo que se consuma oralmente. No entanto, qualquer processo judicial
repousa em documentação escrita; encontramos assim, com frequência, segmentos
metadiscursivos, orais, que remetem explicitamente para fragmentos desse texto
escrito, suporte da audiência, e que são produzidos pelos profissionais,
objectivando, uma vez mais, a estrutura reflexiva do discurso. Essas
articulações entre o discurso escrito, pretérito, e o discurso oral,
concomitante com o momento da enunciação, provam a conjugação de vozes que se
fazem ouvir no discurso judiciário e que, não raro, buscam determinados rumos
argumentativos. Observemos o exemplo seguinte:
(2) Aud. 2, linhas 1091-1092
MP ' ( ) acerca da actividade levada a cabo por este arguido e o pai lá em
casa, na LOCAL? Há aqui um relato de vigilância externa que que eu gostaria que
o senhor dissesse. Não vale a pena estar a ler, primeiro (..) suspeitas,
vigilâncias,
Sendo uma troca verbal de tipo finalístico ou, por outras palavras,
transaccional, cujo objectivo primeiro é a comunicação ' enformada por um
determinado conjunto de parâmetros legais ' de uma certa informação, a
audiência envolve uma série de fases sucessivas, todas discursivamente
realizadas, produzidas pelos diferentes participantes autorizados e que, no seu
todo, configuram aquilo a que chamamos rotineiramente um julgamento. Todavia,
e ao contrário das testemunhas que, não podendo estar co-presentes, estão
impedidas de conseguir atribuir um sentido global à interacção, os
profissionais, sempre presentes, dominam globalmente a interacção, cumprem a
sua agenda e legitimam os significados que consideram pertinentes.
Esta característica tem incidências num outro tipo de segmentos metadiscursivos
que também pontuam o nosso corpus. Referimo-nos à possibilidade de o
metadiscurso tomar como escopo um pequeno fragmento do discurso de um dos
profissionais, organizando-o, ao nível local, mas referimo-nos também, e
sobretudo, à presença de segmentos metadiscursivos mais longos, às vezes até
presentes em excertos dialógicos mais ou menos extensos, que visam assinalar
momentos de retoma de informação anteriormente avançada ' por qualquer um dos
participantes ' ou que pretendem obter um efeito reorganizador ou
reconfigurador do conteúdo globalmente vazado.
Estes segmentos metadiscursivos, que actuam ao nível macro, atestam os
procedimentos avaliativos efectuados pelos profissionais à medida que o
discurso dos vários participantes vai sendo produzido e comportam uma tentativa
de alterar o próprio contexto, ou seja, as condições de recepção do seu próprio
discurso (ou do dos seus representados); não espanta, pois, que estes
enunciados sejam o reflexo de lutas ' simbólicas ' pelo poder em torno da
palavra e da sua legitimação. Vejamos este exemplo:
(3) Aud. 1, linhas 1063-1071
MP ' Bem eu desejava que (( )) se vossa Excelência me permitisse, é que agora
com estas confusões (( )) era > a pergunta era essa, ( ) era saber, > voltar a
perguntar o que perguntei há bocadinho, quem foi que se dispôs, se
disponibilizou a arranjar a carta de condução?
Estes traços evidenciam a forma através da qual os profissionais organizam a
informação disponível ' em todo o processo ' para fazer sentido, no contexto, e
para construir uma interpretação plausível. Lembremos, ainda, que o surgimento
destes segmentos metadiscursivos está também, e sobretudo, ligado às normas que
definem este contexto[3] e que exigem a explicitação, recorrente, das
referências, escritas ou orais, em que cada um dos profissionais se apoia para
construir uma argumentação, (a sua realidade secundária).[4]
4. O metadiscurso dos juízes
No esquema interlocutivo da sala de audiências, o juiz é o único interlocutor
autorizado, pelo Direito Processual, a falar com todos em todas as
circunstâncias: ele faz a gestão de toda a troca, abre e fecha a interacção,
bem como as diversas sequências conversacionais que a compõem e intervém quando
acha necessário. É o juiz que controla e avalia não só o discurso alheio,
objectivado na construção da realidade secundária, como também as condições de
produção desse discurso, no âmbito da realidade primária. Numa permanente
tentativa de validação judicial das diversas fases por que passa o julgamento,
a figura do juiz tem de garantir a realização da justiça e por isso ele é o
grande enunciador das tiradas metadiscursivas dirigidas quer aos leigos quer
aos restantes operadores judiciários.
Por um lado, e dado que é o gerenciador dos turnos de fala assim como o
introdutor das diversas personagens que vão depondo ao longo de toda a
audiência, o juiz tem de explicitar a organização do evento comunicativo,
assinalando a substituição do falante, demarcando os diferentes turnos de fala,
enquadrando cada uma das fases no respectivo frame institucional. Para este
trabalho de composição textual, ele socorre-se do metadiscurso e das suas
virtualidades, pois são esses segmentos que vão explicitar, no fundo, a
superestrutura deste evento. Vejamos os exemplos:
(4) Aud. 1, linhas 498-500
J ' Faz favor de se sentar. Vai responder ao senhor Procurador.
(5) Aud. 2, linhas 990-994
J ' Com esta testemunha não quer mais nada?
MP ' Mais nada.
Ao agenciar as várias partes componentes do julgamento, o juiz dá continuidade
e linearidade a um discurso que é composto por fragmentos relativamente
independentes, no que se consuma uma intervenção metadiscursiva ao nível da
realidade primária.
O juiz detém, todavia, um outro papel de relevo. Ele intervém no discurso
sempre que avalia negativamente a intervenção de um dos advogados ou até do
magistrado do Ministério Público; dito de outra forma, sempre que, na sua
óptica, os restantes profissionais se afastam ou derrogam as constrições de
natureza institucional subjacentes àquela prática discursiva. Atente-se neste
exemplo:
(6) Aud. 3, linhas 197-199
J ' [ Ó senhor Procurador, ( )
MP ' Eu já percebi, aliás está escrito //
J ' (( )) está julgado [ está julgado este crime.
O juiz surge como uma figura dotada de competência em termos de direito, pois é
ele que avalia o aspecto jurídico da causa, mas também em termos de facto, pois
ele monitoriza, em permanência, a construção dos factos, ou seja, e de uma
certa maneira, a construção da realidade secundária. Quando o faz, ele apenas
pretende garantir a observância das normas institucionais, no que parece estar
apenas a actuar ao nível da realidade primária; nestas ocasiões, porém, o seu
metadiscurso reorienta, interrompe e corrige determinados rumos semânticos
perseguidos pelos outros falantes, evitando, assim, a construção de
significados por estes tidos como relevantes e actuando, então, ainda que
indirectamente, ao nível da construção da realidade secundária.
Os exemplos aqui analisados permitem-nos constatar que os enunciados
metadiscursivos do juiz presidente cumprem dois objectivos fundamentais: por um
lado, explicitam a macroorganização interna da interacção verbal, no que se
consuma uma função a que quase poderíamos chamar didáctica'; por outro lado,
avaliam a relevância jurídica dos conteúdos proferidos pelos restantes
profissionais, revelando a sua competência de representante da Lei e do
Tribunal. Em rigor, estas duas funções poderiam integrar-se no âmbito de um só
objectivo: garantir o bom andamento dos trabalhos forenses.
5. O metadiscurso dos Procuradores do Ministério Público e dos Advogados
Embora, na generalidade, se distingam através de um traço diferenciador
fundamental, permitimo-nos subsumir sob o mesmo item as sequências
metadiscursivas produzidas quer pelo procurador do Ministério Público, quer
pelos advogados.
Esse traço distintivo que as separa diz respeito à escassa actividade
metadiscursiva proveniente dos advogados, nas audiências de natureza criminal,
face à sua maior frequência nas audiências do domínio cível. Tal discrepância
parece articular-se, no nosso corpus, com a presença e a autoridade do
procurador do Ministério Público que, naquelas, acabam por limitar o papel do
advogado, relegando-o a um plano muito secundário, quase simbólico. Pelo
contrário, na audiência cível, em que os advogados têm de negociar o espaço
interaccional e a construção da realidade secundária, assim como as condições
em que ela se processa, directamente e só com o juiz, há uma assinalável
presença de segmentos metadiscursivos.
Apesar desta diferença quantitativa, as funções assumidas por todas estas
sequências metadiscursivas, em qualquer um dos dois casos, parecem ser
relativamente convergentes e similares.
Dado o papel fulcral desempenhado pelo juiz presidente, não espanta que os
outros profissionais do fórum vejam substancialmente reduzidas as suas
hipóteses de aceder livremente à palavra, de construir e legitimar linhas
argumentativas consistentes. Isto é tanto mais estranho se tivermos em conta a
copresença de dois magistrados nas audiências do foro criminal. Embora
partilhem a mesma formação académica e embora os papéis institucionais
desempenhados por cada um deles sejam relativamente independentes, o
metadiscurso dos dois magistrados (o juiz presidente e o magistrado que
representa o Ministério Público) não raro é denunciador de alguns conflitos e,
por vezes, até de subtis jogos de poder.
De facto, o discurso do procurador do Ministério Público é permanentemente
avaliado pelo juiz presidente. Mais: o Procurador não consegue dialogar
directamente com o arguido sem passar pela necessária, e quase sempre
enviesada, tradução do juiz presidente. Apesar de ser um magistrado, o
procurador tem de agir em conformidade com os preceitos legais e nem sempre
consegue assumir o papel de falante autónomo, pois o magistrado com mais
autoridade nem sempre lho permite.
Dadas estas assimetrias de poder e estas constrições de natureza discursiva,
que actuam, quer sobre o discurso dos advogados, quer sobre o discurso do
procurador, não surpreende a frequente ocorrência de fórmulas linguísticas
ritualizadas a que estes falantes estão institucionalmente obrigados; em rigor,
essas fórmulas estereotipadas, de natureza metadiscursiva, sinalizam a entrada
de um novo falante no circuito comunicativo. Atentemos no exemplo subsequente:
(7) Aud. 4, linhas 181-182
J ' Senhor doutor.
Adv2 ' Com a devida vénia, senhor doutor juiz. Olhe senhora testemunha, aquilo
que eu pretendia saber é o ( )
Quer os procuradores, quer os advogados do nosso corpus cumprem estas
sequências ritualizadas que funcionam como framing moves, demarcando fronteiras
(início de um novo locutor) no âmbito da realidade primária, e que fazem parte
de um repertório disponível neste contexto específico. No fundo, estes
segmentos são o reflexo, especular, da actividade organizadora do juiz que
agencia as diversas etapas da audiência.
Porém, e para além desta função do metadiscurso dos procuradores e advogados,
claramente decorrente de rotinas institucionais estabelecidas, há um outro tipo
de enunciados metadiscursivos por eles exibido.
Não raro, e a a anteceder determinados tipos de actos de fala, o procurador e
os advogados avançam segmentos metadiscursivos com uma função preambular, ou
prefaciadora. Ao informarem, antecipadamente, os restantes participantes e,
sobretudo, o juiz, acerca das suas intenções comunicativas e do acto de
discurso que pretendem efectuar de seguida, estes falantes visam evitar a
intervenção desfavorável do juiz presidente e usam estas estratégias de
figuração (Goffman 1973), para garantir o seu acesso à palavra e o seu direito
a um rumo discursivo autónomo. Eis um exemplo:
(8) Aud. 3, linhas 230-231
MP ' ( )A outra questão é a seguinte, para terminar. Por que é que ele furtou
por que é que se apropriou da pistola?
Uma outra variante destes segmentos preambulares é a que diz respeito ao uso de
sequências metadiscursivas para a obtenção de um novo turno de fala ou para a
realização de um determinado acto, como é visível através do exemplo seguinte:
(9) Aud. 1, linhas 1063-1065
MP ' Bem eu desejava que (( )) se vossa Excelência me permitisse, é que agora
com estas confusões ( ) era saber > voltar a perguntar o que perguntei há
bocadinho
Em conjunto com os actos de fala subsequentes, estas sequências metadiscursivas
constituem verdadeiros actos de composição textual e constituem também o
reverso da outra (segunda) função que vimos ser desempenhada pelo metadiscurso
do juiz.
Todavia, e conquanto não sejam muito frequentes, assinalam-se, no nosso corpus,
algumas estratégias metadiscursivas provenientes quer dos advogados presentes
na audiência cível, quer dos procuradores actuantes na área criminal, que
discutem o enquadramento legal e que, estando na charneira entre os planos da
realidade primária e secundária, questionam as condições processuais em que se
realiza a construção discursiva dos factos e desafiam o poder do juiz
presidente. Observemos dois exemplos:
(10) Aud. 4, linhas 1475-1491
Adv2 ' [ Ó ó senhor doutor juiz, mas a questão não é essa (( )) com todo o meu
respeito, ó senhor doutor. Ah! Houve (( )) essa que este senhor continua a
dizer > isso senhor doutor, e atenção, que este senhor antes de vir para aqui
esteve a ler isto, como é evidente, porque tem o duplicado disto. / [ ] \
depois não vamos dizer aquilo, o contrário do que está escrito. E o que está
escrito é uma coisa completamente diferente. E então agora aí é que eu agora
pergunto > ó senhor doutor juiz, dada a situação que está aqui, posso ou não
posso, o senhor doutor admite ou não admite a acareação?
J ' Oh! Senhor doutor, não há razão para isso [ (( ))
[ ]
Adv2 ' [ Óptimo. Então está bem, óptimo, sim senhores.
(11) Aud. 2, linhas 1409-1428
T5 ' ( ) Eu não não me importava de dizer o contrário porque não ia sofrer
nenhuma consequência com isso. Sinto muito não dizer o que estão à espera [ mas
não é isso que aconteceu
MP ' [ EU NÃO ESTOU À ESPERA. Não é isso que estou à espera! O senhor não disse
na Polícia Jud- Judiciária, que comprava [a droga] ao NOME?
J ' Ó senhor Procurador (( )) [ ] A gente já sabe, que o senhor Procurador já
disse o que ele disse na Polícia Judiciária. (..) De facto, é como eu costumo
também dizer ao Tribunal: as provas são feitas em audiência de julgamento e
essas é que contam.
MP ' Nãvvv! Isso não tem dúvida. Também não tenho dúvidas nenhumas, que a gente
tem cá o processo à frente, vocês também e não se deitam fora os processos
quando se vem / [ ] \ para aqui, não se deitam para o rio (( ))
J ' Aliás, aliás /
MP ' Pois é.
Embora longos, os dois excertos evidenciam o conflito de opiniões que opõe o
juiz presidente ao advogado, no primeiro caso, e ao magistrado do Ministério
Público, no segundo. As estratégias metadiscursivas de que todos os
intervenientes se servem permitem-lhes negociar, taco-a-taco, os procedimentos
legais que permitirão o regular exercício do resto da audiência.
Nestes excertos, os participantes abandonam o discurso claramente referencial e
recorrem ao metadiscurso para problematizar o próprio enquadramento judicial em
que se vai processar esse outro discurso referencial. Esse abandono, ainda que
momentâneo, da realidade secundária permite-lhes centrar a atenção naquilo a
que Gibbons chama legal frame. Profundos conhecedores dos meandros legais e,
sobretudo, judiciários, discutem os procedimentos institucionais que estruturam
o evento comunicativo, sem que o juiz presidente possa silenciá-los; nesta
fase, crítica, das duas audiências, todos os intervenientes argumentam no
sentido de legitimar a sua interpretação ' legal ' dos acontecimentos.
No âmbito da interacção verbal entre profissionais pode ocorrer uma outra forma
de confronto, mais subtil, mas não menos importante; estas estratégias
metadiscursivas constituem manifestações explícitas do confronto entre
diferentes conceptualizações do contexto judiciário, da negociação, renhida, do
espaço interaccional (e institucional), exibindo, em suma, a luta pelo poder em
torno da palavra e da sua legitimação.
6. Conclusões
Apesar do reduzido corpus analisado, cumpre dizer que o metadiscurso dos
profissionais forenses é um fenómeno complexo que assume diferentes funções.
Por um lado, e dado tratar-se de um contexto institucional, altamente
organizado e constritor, as práticas discursivas que nele têm lugar, muito
disciplinadas, são obrigadas à observância de determinadas convenções
institucionais. É neste sentido que podemos entender o surgimento do
metadiscurso de natureza ritual que, proveniente do juiz e dos restantes
profissionais, baliza as diferentes fases por que passa a audiência, assinala a
sequencialização dos diversos quadros enunciativos, sinalizando a própria
organização interna do evento comunicativo. Esta explicitação da estruturação
interna da audiência reflecte, assim, as próprias convenções que conformam este
episódio verbal. Com isto queremos dizer que este metadiscurso institucional é
um constituinte específico e obrigatório da própria audiência e faz parte da
própria organização sequencial desse discurso ' estamos a falar da realidade
primária e da forma como este metadiscurso se entrelaça com o discurso de
natureza referencial de forma a construir o evento comunicativo a que chamamos
audiência.
Há, todavia, um outro campo, vasto, de metadiscurso institucional que extravasa
largamente esta função a que poderemos chamar organizadora. De facto, os
profissionais do fórum usam também o metadiscurso para preparar o contexto
enunciativo que lhes permitirá legitimar o seu próprio discurso, ou seja, para
discutir as condições que lhes permitirão manufacturar os significados
juridicamente relevantes.
Se, por um lado, os papéis interaccionais estão institucionalmente pré-
estabelecidos e não são negociáveis, e daí a ocorrência de segmentos
metadiscursivos que visam obter o beneplácito do juiz presidente, por outro, o
Tribunal apresenta-se como um contexto agonal, em que se confrontam factos e
diferentes versões de factos, pelo que não é de estranhar a tentativa de
questionar, de contestar, de negociar essas versões, essas representações
discursivas. Por outras palavras, se os lugares e os poderes institucionais
estão determinados à partida, o mesmo não se passa com os discursos que podem
ser alvo de comentários, de avaliações, de disputas, de redefinições e é
justamente aqui que o metadiscurso surge com uma função de natureza mais
interpretativa/avaliativa. É neste âmbito que o metadiscurso pode até assumir
uma função mais reguladora, pois pode constituir o meio de cada um dos
intervenientes exibir a sua autoridade, ou seja, a sua competência jurídica e,
mais precisamente, processual ' questionando, em simultâneo, o conhecimento do
(s) outro(s) ' e o meio através do qual cada um dos participantes tenta
formatar as intervenções dos restantes profissionais e, no fundo, a própria
interacção verbal.
Revelador de outro tipo de conflito, um conflito entre os capitais simbólicos
detidos por cada um dos profissionais, este metadiscurso constitui um
ingrediente essencial para a compreensão global da audiência: ele reflecte a
forma como cada um dos intervenientes tenta construir o seu discurso e a sua
história, ao mesmo tempo que ensaia a descredibilização do discurso (e da
história) do outro.
Constata-se, assim, a existência de um discurso visivelmente referencial,
denotativo, preocupado com a reconstituição discursiva dos factos, ou seja, e
nos termos de Gibbons, da realidade secundária, e a existência de um discurso
claramente auto-reflexivo, isto é, de um metadiscurso, que comenta, avalia,
discute e negoceia as condições em que esse outro discurso é produzido,
validado e judicialmente legitimado. Na fronteira entre as realidades primária
e secundária, este metadiscurso não desempenha um papel secundário ou ancilar
relativamente ao outro, mas articula-se com ele revelando-se um elemento
fundamental na organização, na interpretação e na fundamentação jurídica desse
outro discurso.