Contributos para uma análise semântico-pragmática das concessivas de enunciação
no Português europeu contemporâneo
Introdução
O estudo semântico das construções de subordinação adverbial tem conhecido um
forte incremento nos últimos anos, graças, sobretudo, à progressiva tomada de
consciência, por parte dos linguistas, de que os modelos que contemplam
diferentes domínios de significação discursiva são descritiva e
explicativamente mais adequados para dar conta da heterogeneidade e consequente
complexidade dessas construções (cf. Sweetser 1990, Hengeveld 1993, Kortmann
1996, Sanders et al. 1992, Couper-Kuhlen & Kortmann 2000, entre outros).[1]
O quadro teórico que preside a esta investigação assume justamente, na esteira
de muitas abordagens funcional ou cognitivamente orientadas, que há diferentes
domínios pelos quais se distribui a significação construída e expressa no
discurso, isto é, na linguagem em uso (cf. Halliday 1970, Schiffrin 1987, Mann
& Thompson 1988, entre outros). Trata-se de uma assunção fundamental,
familiar para os linguistas que ancoram as suas descrições em dados empíricos
(data-driven approaches) e não escamoteiam as diversas funções que a
linguagem verbal pode assumir ao ser socialmente usada. Como afirmam de forma
lapidar Levinson & Evans (2010:2746), language bridges the mental and the
social, the psychological and the historical, the ideational and the
behavioural. Assim, assume-se uma distinção fundamental entre o domínio
ideacional ou do conteúdo, tradicionalmente explorado no âmbito das teorias
semânticas denotacionais ou referenciais, e o domínio interpessoal da
significação, explorado no âmbito das abordagens pragmático-funcionais do
discurso. O primeiro domínio mencionado prende-se com os usos da linguagem em
que é dominante a função de representação do mundo sócio-físico; o segundo
envolve os usos que modelizam raciocínios do falante e plasmam as dimensões
sócio-interacionais da comunicação humana.
O presente estudo propõe-se contribuir para uma caracterização das propriedades
semântico-pragmáticas das concessivas de enunciação no PEC, uma área que, tanto
quanto é do nosso conhecimento, não foi ainda objeto de análise.
Os materiais empíricos utilizados neste trabalho envolvem dados recolhidos no
CETEMPúblico (www.linguateca.pt
), bem como alguns exemplos construídos.
A estrutura do artigo é a seguinte: na secção 1, faz-se uma breve referência às
propriedades semânticas e sintáticas das concessivas de conteúdo, ou
concessivas factuais,[2] de modo a poder delimitar-se, por contraste, a
especificidade das concessivas de enunciação, objetivo central da secção 2.
Nesta secção, partindo da tipologia de Latos 2009, que estabelece um distinção
entre concessivas epistémicas e concessivas ilocutórias, aprofunda-se a
caracterização semântico-pragmática das concessivas epistémicas e avança-se uma
proposta de subtipologia das concessivas ilocutórias, partindo de dados
empíricos recolhidos no corpus. Na secção 3, sintetizam-se as conclusões mais
relevantes do estudo.
1. Concessivas de conteúdo
Consideram-se concessivas de conteúdo as orações concessivas factuais (cf.
Mateus et al. 2003: 718), que exprimem a ocorrência de uma situação não
expectável relativamente a outra, dado o nosso conhecimento do mundo ou a nossa
perceção do curso normal dos acontecimentos no mundo. Atente-se nos exemplos 1
a 3, construídos, que ilustram paradigmaticamente concessivas deste tipo[3]:
(1) Embora o Rui fume muito, não tem problemas de saúde.
(2) Embora estivesse cheio de trabalho, foi ao cinema.
(3) Embora não tenha estudado nada, o Rui vai fazer o exame.
Para além do conector embora', também apesar de' pode ser mobilizado para
sinalizar o mesmo nexo semântico, como se atesta em 1a a 3a:
(1a) Apesar de fumar muito, o Rui não tem problemas de saúde.
(2a) O Rui foi ao cinema, apesar de ter muito trabalho.
(3a) Apesar de não ter estudado nada, o Rui vai fazer o exame.
A caracterização semântica do nexo concessivo proposta por König 1991 e König
& Siemund 2000 parece-nos a mais adequada e rigorosa. Assim, numa
construção embora p, q', assere-se p e q, e pressupõe-se que p implica
normalmente ~q. Em esquema:
Embora p, q
p ® ~q (pressuposição)
p & q (asserção)
Voltando ao exemplo 1, o locutor assere p e q (O Rui fuma muito e não tem
problemas de saúde) e pressupõe uma relação de implicação entre fumar muito e
ter problemas de saúde.[4] Assim, a construção estabelece um contraste entre o
que se pressupõe e o que se verifica/verificou na realidade.[5] Por outro lado,
nas concessivas de conteúdo a informação contida em p é dada também como
pressuposta, ou seja, informação conhecida que o falante assume como dado a
O facto de p ser assumido pelo falante como informação dada/conhecida explica a
impossibilidade de focalização da concessiva, quer por construções de clivagem,
quer pela negação de foco, quer ainda por operadores como só, como se prova em
1b, 1c e 1d:
(1b)*É embora o Rui fume muito que não tem problemas de saúde.
(1c) *O Rui não tem problemas de saúde embora fume muito (mas sim embora coma
muito pouco).
(1d) *O Rui só não tem problemas de saúde embora fume muito.
Em Lobo 2003, as concessivas de conteúdo são consideradas orações adverbiais
periféricas, dado que respondem negativamente a um conjunto de testes de
natureza sintática que permitem caracterizar as adverbiais integradas,
nomeadamente os que acabaram de ser explicitados. O seu estatuto periférico
relativamente à subordinante é ainda reforçado pelo comportamento das
concessivas no que toca aos seguintes parâmetros: não funcionam nunca como
resposta a uma interrogativa QU-, não ocorrem em interrogativas e negativas
alternativas (1e, 1f) e, quando em posição final, ocorrem após pausa ou quebra
entoacional, sinalizada na escrita por vírgula (1g):
(1e) *O Rui não tem problemas de saúde embora fume muito ou embora coma
desalmadamente?
(1f) *O Rui não tem problemas embora fume muito, mas embora coma
desalmadamente.
(1g) O Rui não tem problemas de saúde, embora fume muito.
Partilham, no entanto, com outras construções de subordinação adverbial, a
propriedade de poderem retomar anaforicamente a subordinante, como se ilustra
em 4[6]:
(4) O Rui foi ao cinema, embora ISSO lhe tivesse atrasado o trabalho.
Tal como outras construções subordinadas adverbiais que operam no plano do
conteúdo, também as construções concessivas podem ser reformuladas ou
parafraseadas através de construções paratáticas, como se atesta em 5 e 6:
(5) O Rui foi ao cinema. Fê-lo embora tivesse muito trabalho.
(6) O Rui não tem problemas de saúde. Isso acontece embora ele fume muito.
Tanto em 5 como em 6, o segundo enunciado retoma anaforicamente o primeiro.
Esta manipulação linguística permite evidenciar, a meu ver, que o domínio em
jogo é, de facto, o domínio do conteúdo, já que a retoma se faz através de um
propredicado que denota uma situação do mundo, eventiva ou estativa[7], com um
estatuto factual.[8] Note-se que o sujeito deste propredicado é sempre
correferente com o da oração principal entretanto autonomizada.
Não parece haver restrições quanto à classe aspectual das predicações expressas
nos dois membros da construção concessivas em apreço. Por outro lado, as
relações temporais entre as situações descritas podem ser de sobreposição,
anterioridade ou posterioridade, em função dos tempos verbais utilizados, das
classes aspectuais e do nosso conhecimento do mundo.[9]
Por último, importa referir as afinidades entre as concessivas de conteúdo e as
causais. Como sublinham König & Siemund (2000: 355), a negação externa de
uma construção causal (~( p porque q)) é equivalente à negação interna de uma
construção concessiva (embora p, ~ q). Concretizando, o exemplo (1) é
equivalente à negação da relação causal entre os conteúdos proposicionais que a
seguir se destacam:
NEG ([O Rui fuma muito] CAUSA [o Rui tem problemas de saúde])
2. Concessivas de enunciação
Segundo a tipologia de Latos 2009, que retoma criticamente a proposta de
Crevels 2000, para além das concessivas que operam no domínio do conteúdo (ou
domínio representacional, na terminologia da autora) e que negam, como vimos,
que a situação descrita na concessiva, obstáculo potencial para a realização da
situação representada na oração principal, o seja de facto, é possível
discriminar um outro tipo de concessivas, que operam no domínio interpessoal da
significação discursiva.[10] Neste último domínio, Latos propõe ainda uma
subdivisão entre concessivas epistémicas (cf.7) e concessivas que operam no
domínio dos atos de fala (cf. 8)[11]:
(7) Embora sejam prejudicias à saúde, os telemóveis não são dispensáveis.
(8) Podes ajudar-me, embora eu saiba que estás cansado?
Em 7, a concessiva apresenta um argumento que poderia impedir a inferência da
conclusão asserida pelo falante na oração subordinante. Noutros termos, o
falante assere p e q e pressupõe que normalmente, a partir de p, deveria
concluir-se ~q'. Assim, 7 admite uma paráfrase expressa através da seguinte
construção paratática:
(7a) Os telemóveis não são dispensáveis; penso e digo isto embora eles sejam
prejudiciais à saúde.
Contrariamente ao que acontece com as concessivas de conteúdo (cf. exemplos 5 e
6), a paráfrase da construção concessiva epistémica envolve um verbo sentiendi
(penso) e um verbo dicendi (digo).
Em 8, estabelece-se uma relação entre um ato ilocutório e uma circunstância de
background' suscetível de impedir a sua realização. Noutros termos, o falante
realiza um determinado ato ilocutório (no caso vertente, um pedido) e articula-
o com uma asserção que expressa uma circunstância tendencialmente bloqueadora
da realização do ato em apreço. Assim, a construção pressupõe que,
normalmente, dado p, o falante não deveria afirmar/perguntar/pedir q'. Neste
sentido, 8 admitiria a paráfrase (8a):
(8a) Podes ajudar-me? Peço-te isto embora saiba que estás cansado.
Como se verifica em 8a, a paráfrase é feita por meio de um verbo performativo
que identifica o ato ilocutório relevante (pedir), havendo correferência entre
o sujeito da oração adverbial e o sujeito da enunciação. A paráfrase demonstra
que a concessiva estabelece uma relação entre a situação descrita em p e o ato
discursivo realizado em q. Mais rigorosamente, a concessiva modifica o dizer e
não o dito: o ato ilocutório de pedido realiza-se, apesar de se verificar o
conteúdo proposicional expresso na subordinada concessiva, potencialmente
bloqueador da realização desse mesmo ato.
Apresentada a tipologia de Latos, que ancora basicamente em testes de
reformulação coerente das construções em apreço, através de substituições
anafóricas, importa agora analisá-la criticamente, no sentido de um
aprofundamento. Centremo-nos, num primeiro momento, nas concessivas
epistémicas.
Nem sempre é óbvia a distinção entre uma concessiva de conteúdo e uma
concessiva epistémica.[12] O enunciado 7, por exemplo, poderia ser interpretado
como uma concessiva de conteúdo, já que a asserção das duas proposições p e q
(que podem ser extensionalmente interpretadas) cancela a pressuposição segundo
a qual a situação descrita na frase subordinada implicaria a não ocorrência da
situação descrita na principal. Nesta interpretação, o falante nega que algo
que expectavelmente seria um obstáculo para a ocorrência da situação
representada na subordinante o seja de facto. No entanto, 7 pode igualmente ser
interpretada como uma concessiva epistémica, na esteira de Latos 2009. Aliás,
já em König 1994 (apudLatos 2009:100) se defende que há construções concessivas
que podem ser usadas com propósitos argumentativos. São as concessivas
retóricas', na terminologia do autor, que correspondem justamente às
concessivas epistémicas, na terminologia de Latos. Significa isto que o falante
recorre à subordinada concessiva para adiantar um potencial argumento
desfavorável à conclusão que se propõe defender, conclusão essa que é asserida
na oração principal. Nesta perspetiva, estaríamos perante uma estratégia
discursiva através da qual o falante visa demonstrar que todas as possíveis
objeções foram consideradas e rejeitadas, reforçando e enfatizando assim a sua
conclusão.
Coloca-se, então, a seguinte questão: trata-se apenas de uma questão de
ambiguidade pragmática, ou há, de facto, distintos domínios da significação
envolvidos nas construções concessivas? Do meu ponto de vista, e embora
admitindo a existência de casos ambíguos em contexto zero, julgo que é possível
argumentar a favor de uma distinção mais fundamentada entre concessivas de
conteúdo e concessivas epistémicas. Para além da evidência recolhida em Crevels
2000[13], parece-me possível convocar outros argumentos. É o que me proponho
fazer nas linhas que se seguem.
Desde logo, a oração subordinante, numa construção concessiva com leitura
epistémica, admite sempre uma paráfrase com modalização epistémica (creio que
q), o que não acontece nas concessivas de conteúdo, dada a sua natureza factual
[14]. Por outro lado, como já foi dito, as pressuposições ativadas são
distintas num e noutro caso. Com efeito, numa concessiva de conteúdo, a
pressuposição será normalmente, p causa/implica q'. Já numa concessiva
epistémica, a pressuposição será normalmente, a partir de p concluir-se-ia
~q', ou seja, p é rejeitado como potencial contra-argumento para q, não sendo
de todo pertinente a noção de causa inoperante (cf. Flamenco-García 1999)
associada à caratcterização das concessivas de conteúdo. Para além disso - e
este parece-me ser um argumento decisivo - a negação externa de uma construção
com um nexo causal não é equivalente à negação interna de uma construção
concessiva com leitura epistémica[15] Senão vejamos, retomando o exemplo 7,
aqui reproduzido de novo:
(7) Embora sejam prejudiciais à saúde, os telemóveis não são dispensáveis.
Este enunciado não é semanticamente equivalente à negação de uma relação causal
entre p e q, a seguir esquematizada:
NEG ([os telemóveis são prejudiciais à saúde] CAUSA [os telemóveis são
dispensáveis])
Do meu ponto de vista, 7 é equivalente à negação externa de um nexo explicativo
ou justificativo, como a seguir se esquematiza:
NEG([os telemóveis são prejudiciais à saúde] EXPLICAÇÃO/JUSTIFICAÇÃO [os
telemóveis são dispensáveis]).
De forma mais precisa, defendo que numa construção como 7, com leitura
epistémica, equivale à negação da validade de um nexo explicativo entre dois
conteúdos proposicionais. Concretizando: a validade da conclusão de que os
telemóveis são dispensáveis, dado o argumento expresso de que são prejudicias à
saúde (articulado com uma premissa genérica implícita segundo a qual
normalmente, o que é prejudicial à saúde é dispensável') é negada pela
construção concessiva com leitura epistémica. Assim, 7 parece corresponder
efetivamente à negação externa de uma construção explicativa - os telemóveis
são dispensáveis, pois são prejudiciais à saúde'-, e não à negação externa de
uma construção causal- os telemóveis são dispensáveis porque são prejudiciais
à saúde'.
Naturalmente, a argumentação desenvolvida pressupõe uma distinção entre duas
relações discursivas, a relação de CAUSA e a relação de EXPLICAÇÃO/
JUSTIFICAÇÃO, distinção essa assumida por muitos linguistas (cf., entre outros,
Mann & Thompson 1988, Sanders et al 1992, Peres & Mascarenhas 2006,
Lopes 2009).[16]Se se aceitar esta análise, faz todo o sentido incluir as
concessivas epistémicas nas concessivas de enunciação, uma vez que, através
delas, o falante bloqueia um raciocínio inferencial, asserindo uma conclusão
contrária à que seria expectável. Ou seja, não se expressa uma relação entre
situações do mundo, mas entre argumentos e conclusões, que são sempre estados
de conhecimento/crenças do falante.
Um fator que seguramente favorece a interpretação epistémica das concessivas é
a sua inserção em discursos mais amplos, de natureza argumentativa. Por outro
lado, uma interpretação epistémica é automaticamente ativada em enunciados que
facilmente licenciam uma leitura intensional das proposições envolvidas na
subordinante, como se atesta nos exemplos seguintes, retirados do corpus:
(9) Acho que a maioria dos clubes está satisfeita com os resultados que saíram
de Lisboa, embora saiba que, entre os clubes, existem diversos pontos de vista.
(10) Julgo ( ) pertinente, embora o que é pedido seja um comentário acerca da
concordância, tratar a questão de um ponto de vista simultaneamente gramatical
e pragmático ( )
(11) E, embora eu não partilhe da nova cartilha anti-intelectual que tende a
renascer, penso seguramente que alguns dos maiores intelectuais do Ocidente ( )
foram responsáveis por enormes embustes intelectuais.
(12) ( ) o Plano Estratégico de Lisboa está muito bem feito, embora eu ache
tímidos os objetivos fixados para a cidade ( )
(13) ( ) embora eu tenha muitas dúvidas sobre o significado preciso desta
iniciativa, parece-me positivo que o governo afirme esta posição ( )
Nos exemplos 9 a 11, ocorrem, na subordinante, verbos epistémicos na 1ª pessoa
do singular (acho, julgo), que ativam ipso facto uma leitura intensional da
proposição que encabeçam. O falante assere q como conclusão pessoal e pressupõe
que normalmente, a partir de p, deveria concluir ~q'. Em todos os outros
exemplos, a subordinante admite uma paráfrase com explicitação de verbos
epistémicos (os mesmos ou outros, como considerar, pensar). Nos exemplos 12 e
13, a ocorrência de predicadores avaliativos (estar muito bem feito, parecer
positivo) inscrevem no enunciado um juízo por parte do sujeito da enunciação, o
que induz uma leitura intensional da subordinante, e, consequentemente, uma
interpretação epistémica da construção: o falante formula uma conclusão de
matiz avaliativo, negando que o argumento expresso na subordinante possa
constituir um obstáculo para essa conclusão.
Centremo-nos agora nas concessivas ilocutórias, retomando aqui o exemplo 8,
adaptado de Latos 2009, e a respetiva paráfrase 8a:
(8) Podes ajudar-me, embora eu saiba que estás cansado?
(8a) Podes ajudar-me? Faço-te este pedido embora saiba que estás cansado.
Como a paráfrase ilustra, a subordinada concessiva modifica o dizer, o ato
ilocutório de pedido. O falante realiza um ato ilocutório (indireto) de pedido
e sinaliza, através da concessiva, que as circunstâncias em que o ato
discursivo está a ser realizado deveriam bloquear a sua realização. Assim, a
pressuposição associada a 8 será normalmente, sabendo p, o falante não pediria
q'. Por outras palavras, o que seria expectável, dado p, seria a não realização
do ato ilocutório a que corresponde a enunciação da oração subordinante. Mas o
que se verifica, de facto, é a realização desse ato nas circunstâncias que
deveriam/poderiam constituir um obstáculo à sua efetivação.
Vejam-se alguns exemplos retirados do corpus e respetivas paráfrases:
(14) Tenho seguido com interesse a polémica entre realizadores de cinema e Zita
Seabra e, ( ) embora eu seja uma medíocre espectadora de cinema, venho por este
modo louvar a coragem e a frontalidade destes realizadores
(14a) Venho por este modo louvar a coragem e a frontalidade destes
realizadores; expresso este louvor embora seja uma medíocre espectadora de
cinema.
(15) Não ignoremos as nossas realizações, embora eu saiba que necessitamos de
mais, melhor e mais rápido ( )
(15a) Não ignoremos as nossas realizações; recomendo-vos isto embora saiba que
necessitamos de mais, melhor e mais rápido.
Estes exemplos ilustram claramente as concessivas ilocutórias. Em 14, o locutor
realiza, na subordinante, um ato ilocutório expressivo de louvor/congratulação,
sinalizando através da construção concessiva que o ato se realiza
independentemente da verificação de circunstâncias que poderiam bloqueá-lo. Em
15, o ato realizado na subordinante é um ato diretivo de recomendação ou
exortação, e a concessiva, uma vez mais, sinaliza que a realização do ato
ocorre em circunstâncias potencialmente bloqueadoras da sua realização.
Até aqui, foram analisados exemplos retirados do corpus que oferecem evidência
empírica suscetível de validar a distinção entre concessivas epistémicas e
concessivas ilocutórias. Mas o corpus disponibiliza-nos ainda exemplos que não
se enquadram facilmente em nenhuma destas classes. Atente-se nos seguintes
enunciados:
(16) O mesmo responsável indicou que todos os expatriados estão bem, embora eu
não saiba exatamente o que isso significa.
(17) No nosso mundo, o poder e o dinheiro são os senhores, embora eu não os
queira para meus senhores.
(18) Muitas estão já consagradas na prática quotidiana, aproveitando palavras
já existentes no léxico português, como ficheiro (embora eu até goste mais do
brasileiro arquivo) para file
Em 16, a predicação introduzida por embora funciona como um um comentário que o
locutor acrescenta à sua asserção inicial. Embora pode ser substituído por mas
(com as alterações requeridas em termos de modo verbal), sem que se altere o
valor semântico da construção[17]:
(16a) O mesmo responsável indicou que todos os expatriados estão bem, mas eu
não sei exatamente o que isso significa.
Neste sentido, a predicação introduzida por embora não parece modificar o ato
ilocutório expresso na subordinante, nos moldes atrás referidos (cf. exemplos
8, 14 e 15), antes configura um novo ato discursivo que se articula
sequencialmente com o primeiro, sendo retrospectivamente interpretado como um
comentário sobre a predicação anterior (todos os expatriados estão bem'),
através do qual o locutor se distancia do ponto de vista previamente expresso.
Note-se que a frase introduzida por embora, com esta função discursiva, ocorre
tipicamente posposta. Em 17, a concessiva funciona igualmente como comentário,
através do qual o locutor marca a sua posição, demarcando-se do ponto de vista
expresso na asserção prévia. A substituição de embora por mas é igualmente
aceitável e, mais uma vez, a função discursiva condiciona a posposição da
concessiva. Também aqui parece verificar-se uma articulação sequencial de atos
ilocutórios, sendo o segundo interpretado retrospectivamente como comentário.
Em ambos os casos, a estrutura concessiva parece marcar um contraste entre o
ponto de vista do locutor e um outro. Em 18, a concessiva volta a funcionar
como comentário (parentético) do locutor, desta feita intercalado na frase
hospedeira. O comentário recai, não sobre a predicação na sua totalidade, mas
sobre um dos seus elementos. Mais uma vez, o comentário inscreve no discurso o
ponto de vista do falante, desta feita de natureza avaliativa.
Neste tipo de contextos, constata-se que não é ativada a pressuposição
subjacente às concessivas ilocutórias previamente analisadas, a saber:
normalmente, dado p, o falante não realizaria o ato discursivo concretizado em
q'. Estamos, pois, perante uma conexão que se afasta das concessivas
ilocutórias prototípicas, que envolvem uma negação de expectativas. Face aos
dados, parece relevante propor uma subtipologia mais fina no âmbito das
concessivas que envolvem o domínio ilocutório da significação. Assim, destacam-
se, por um lado, (i) as concessivas ilocutórias prototípicas, que modificam o
ato discursivo realizado na subordinante, explicitando circunstâncias que
normalmente bloqueariam a sua realização, e, por outro, (ii) as concessivas que
configuram comentários do falante sobre o enunciado (ou parte do enunciado) que
as hospeda. Neste último subconjunto, as concessivas podem ocorrer em
adjacência à frase com que se articulam ou interpolados na frase hospedeira,
com função de comentário que o falante acrescenta à asserção inicial (ou a
informação subproposicional aí contida) para dela se distanciar.
Mantemos a designação genérica de concessivas ilocutórias para os dois subtipos
discriminados pelo facto de, em ambos os casos, a concessiva operar no domínio
ilocutório da significação: no primeiro, como modificadora de ato ilocutório
(speech act modifier), no segundo, como ato ilocutório subordinado ao ato
principal, com o qual mantém uma relação discursiva pragmático-funcional de
comentário.
3. Conclusões
Neste trabalho, defendeu-se uma distinção básica entre concessivas que operam
no domínio do conteúdo (they identify ( ) an unfavourable circunstance for an
event or state (König 1991:192)) e concessivas de enunciação, que mobilizam o
domínio interpessoal da significação discursiva. No âmbito das concessivas de
enunciação, defendeu-se, na esteira de Latos 2009, uma subdivisão entre
concessivas epistémicas e concessivas ilocutórias. Avançou-se uma proposta de
caracterização semântico-pragmática das concessivas epistémicas, evidenciando
que este tipo de concessivas equivale à negação externa de um nexo explicativo
entre p e q, e não à negação externa de um nexo causal, como acontece nas
concessivas de conteúdo. Tanto quanto é do nosso conhecimento, trata-se de um
contributo original para o estudo das construções concessivas.
Finalmente, propôs-se uma subtipologia no âmbito das concessivas ilocutórias,
partindo dos dados empíricos recolhidos no corpus. Assim, estabeleceu-se uma
distinção entre (i) as concessivas ilocutórias prototípicas, que modificam o
ato discursivo realizado na subordinante, explicitando as circunstâncias que
potencialmente poderiam bloquear a sua realização, e (ii) as concessivas que
configuram comentários do falante, podendo esses comentários recair sobre todo
o conteúdo proposicional da asserção prévia, com um propósito de distanciamento
por parte do locutor, com eventual reconfiguração do rumo argumentativo do
discurso, ou ter no seu escopo apenas um segmento subproposicional.