Galegos, galego-portugueses ou espanhóis? Hipóteses e contributos para a
análise das origens e funções da imagem atual da Galiza e dos galegos em
Portugal
Este estudo[1] tem por objetivo contribuir para a análise da imagem
contemporânea da Galiza e dos galegos em Portugal partindo, em primeiro lugar,
do imaginário português de fins do século XIX e primeiras décadas do XX[2]. Na
segunda parte deste artigo, lançaremos algumas hipóteses que pensamos viáveis
como contributos para ulteriores pesquisas, nomeadamente no que diz respeito à
imagem da Galiza e os galegos das elites culturais portuguesas.
Metodologicamente, esta abordagem nutre-se de ferramentas e orientações
desenvolvidas por, nomeadamente, Machado e Pageaux 2001 e Beller e Leerssem
2007. Assim, entendemos que as imagens, (i) apesar da fragmentação do
conhecimento em curso, estão inscritas essencialmente na cultura de uma
determinada comunidade ou país, não sendo, portanto, elaborações individuais;
(ii) são basicamente ideias, crenças ou discursos que intervêm
significativamente no relacionamento com o outro[3], tendo consequentemente uma
importante influência no plano (inter)cultural (mas também económico, político,
etc.); e, por sua vez, (iii) as suas origens e funções podem ser diversas, não
são unívocas, podendo ser compostas, e apresentam uma alta resistência à
mudança e/ou desativação. Interessa ressaltar, por último, os vínculos
existentes entre a imagologia e a produção cultural; isto é, a elaboração e
divulgação de imagens tem nos campos culturais um espaço privilegiado, tanto ao
nível das heteroimagens como das autoimagens (cfr. Beller e Leerssem 2007: 26).
A imagem portuguesa da Galiza e dos galegos
A imagem portuguesa da Galiza e dos galegos de fins do século XIX e primeiras
décadas do século XX pode ser, em nossa opinião, entendida a partir da noção de
imageme de Joep Leersem[4], porquanto apresenta uma composição dual,
constituída de vários elementos antagónicos ou, no mínimo, incompatíveis.
No período fixado, e com raízes nos séculos anteriores, o imaginário português
a respeito dos galegos estava presidido pelo que denominámos imagotipo
negativo. A sua origem estaria vinculada no essencial ao fenómeno migratório
galego em Portugal, em Lisboa nomeadamente[5]. A posição/função social que os
galegos emigrados exerceram até, grosso modo, meados do século XX, vai
alimentar repertorialmente o imaginário português. Deste modo, os galegos
seriam grosseiros e brutos, ignorantes e avarentos, trabalhadores não
qualificados, em ocasiões alcoólicos, ingénuos mas desconfiados, utentes de uma
variedade linguística própria e de uma vestimenta peculiar, sem vínculos
aparentes com Portugal; podem aparecer designados como gallegos, tuyanos ou
vigoenses. A vitalidade deste imagotipo negativo aqui descrito ficou patente em
inúmeros produtos culturais: desde a literatura, passando pelas caricaturas de
Rafael Bordalo Pinheiro e a fotografia, até ao incipiente cinema português das
décadas de 30 e 40[6]. Um exemplo notório (e controverso na altura, aliás) de
uma ativação deste imagotipo é o seguinte excerto das páginas d'O Paizde 1912:
Todavia, o mais refinado ladrão n'esta especialidade é o gallego
tasqueiro, taberneiro carvoeiro e merceeiro. Este figurão vindo do
norte, cheio de ronha e porcaria, é aceite em Lisboa como homem
honesto e de trababalho [...] Feitas as contas e bem analysado á luz
da critica clara, nem ele nunca foi honesto, nem respeitador das
nossas leis, nem grato á hospitalidade que lhe dispensamos, nem util
por qualquer motivo ao nosso meio industrial [...] O gallego vulgar,
o que anda para ahi em certos misteres, é uma especie de judeu do que
respeita a negocio. Se a sua actividade se encaminha para a taberna
ou para o café, o gallego falseia todos os productos que vende; assim
como se compraz em nucna dar a medida cabal dos liquidos vendidos nem
o peso certo das cousas que se lhe compra [...] Além d'isso, na maior
parte dos casos é imoral e porco, uma espécie de toupeira que tanto
fura por um montão de esterco como por outro solo mais hygienico
[...] A questão é de dinheiro, e o gallego, a trôco d'este metal
presta-se a tudo (Moraes 1912).
Paralelamente, no último terço do século XIX e primeiras décadas do XX, a
imagologia portuguesa a respeito da Galiza e dos galegos experimenta uma
complexificação notável ao despontar um novo imagotipo que denominámos de
afinidade. Em sintonia com a oitocentista planificação galeguista de, por
exemplo, Manuel Murguia (interessada em vincular-se culturalmente a Portugal
[7]), Teófilo Braga, nomeadamente, Leite de Vasconcelos, Oliveira Martins ou
Alexandre Herculano (Torres 1999a), vão introduzir na sua produção a Galiza
como espaço geo-humano individualizado (a respeito do espanhol/castelhano),
pondo em valor uma série de elementos de variada natureza, designadamente a
respeito da vinculação entre a Galiza e Portugal: identidade/afinidade de
língua, alma, passado, raça, paisagem, etc.[8]; contestam, por sua vez, o
imagotipo negativo.
A partir da trajetória do enclave galego de Lisboa tentámos demonstrar como por
volta da década de 20 do século passado, o imagotipo negativo passa a partilhar
o imaginário português com uma nova visão da Galiza e dos galegos (remetemos
novamente para Pazos 2012). As tomadas de posição de destacados membros da
colónia de Lisboa, ao descobrirem que a sua origem galega poderia retribuir-lhe
outros capitas além do económico (capital social e cultural, mormente),
indicam, em nosso entender, que uma outra forma de imaginar a Galiza e os
galegos, em concorrência com o imagotipo negativo, cristaliza em Portugal
seguindo o caminho traçado por grupos e agentes galegos e portugueses
interessados, por distintos motivos, em fortalecer as relações galego-
portuguesas. Neste sentido, são vários os eventos que, com maior ou menor
sucesso, têm lugar neste período (até 1936) encenando os vínculos galego-
portugueses (vid. Marco 1996: 201-202). Aqueles contribuem necessariamente para
uma exposição da Galiza e os galegos, por exemplo na imprensa periódica, em
termos bem afastados do imagotipo negativo (cfr. Cunha 2007). É nestes estado
de coisas que se entende, por exemplo, a que talvez seja a intervenção mais
explícita e incisiva a impugnar o imagotipo negativo neste período; afirmava
Alfredo Guisado, outrora órfico, desde as páginas do Diário de Notícias de
1929:
Como conheço bem a Galiza e como conheço tambem o que são e o que
valem os galegos, lamento que, por vezes, nós, portugueses, sejamos
tão desagradaveis para com eles.
Sim, porque temos de confessar, a palavra galego' anda
constantemente cercada no nosso vocabulario dum grande desprezo e dum
profundo ridiculo. Sucede muitas vezes, quando se chega ao insulto,
atirar com essa palavra por se supôr que ela encerra uma das mais
agressivas e violentas ofensas. Já até tem acontecido aparecer nas
colunas de alguns dos nossos diarios como o termos encontrado que
melhor pode amesquinhar determindado cidadão.
[...]
Ridicularizar, portanto, os galegos, pela sua lingua, o mesmo será
que ridicularizar-nos a nós proprios, falando do nosso glorioso
passado literario (Guisado 1929).
Resumindo, as intervenções de destacados membros do enclave galego e de membros
das elites culturais portuguesas e galegas, em sintonia com a tomada de posição
de Alfredo Guisado[9], evidenciam, em nosso entender, uma nova forma de
imaginar a Galiza e os galegos a funcionar socialmente, efetivamente. Este novo
imagotipo, não é representação exclusiva de um grupo humano, como o negativo; é
representação de indivíduos (os galegos em geral) e, especialmente, da Galiza
(território com caraterísticas próprias). Por outro lado, enquanto o imagotipo
negativo está vinculado ao fenómeno migratório galego em Portugal e é ativado
no espaço social português sobretudo para provocar o riso, o imagotipo de
afinidade responde ao labor planificador de galegos e portugueses e pode
funcionar, por exemplo, para ativar as relações entre a Galiza e Portugal no
plano cultural[10] ou servir de plataforma aos imigrantes galegos para
aquisição de outros capitais além do económico.
Da invisibilidade e a imageme: algumas hipóteses
Quanto e quê desta imageme, desta imagem lusa da Galiza e dos galegos ficou
após a implantação do Estado Novo e da Ditadura franquista com o consequente
apagamento das possibilidades de intervir cultural e politicamente de muitos
dos interessados no contacto galego-português[11], de muitos dos empenhados na
ativação do imagotipo de afinidade, é questão de difícil resposta. Apenas
podemos lançar aqui algumas hipóteses que no melhor dos casos poderiam
contribuir para um programa de pesquisa futuro.
Em primeiro lugar, como hipótese, cremos que hoje, nos inícios da segunda
década do século XXI, a análise da matéria proposta deverá equacionar
primeiramente a invisibilidade da Galiza e os galegos desde Portugal no meio de
um emergente todo espanhol. Após a queda dos regimes autoritários e o posterior
ingresso dos dois estados, o português e o espanhol, na hoje denominada União
Europeia, o modo de relações intra-peninsulares parece ter mudado
significativamente. Neste panorama, apresentam-se particularmente substantivos
os indícios que apontam para uma modificação relevante na posição do estado
vizinho e os seus cidadãos no imaginário português. Aparentemente, face a uma
imagem historicamente marcada pelo antiespanholismo ou o fantasma
iberista' (Lourenço 1994: 82)[12], o imaginário português atual parece
nutrir-se também de uma aberta admiração, não só mas também, cultural para com
a Espanha[13]. Repare-se, por exemplo, na irrupção vertiginosa da língua
espanhola no sistema de ensino obrigatório português desde meados da década de
90[14]; dado este que deverá destacar-se em futuras pesquisas imagológicas
hispano-portuguesas, e igualmente no relativo às galego-portuguesas.
Por outro lado, o facto de Portugal (os portugueses) se imaginar(em) a si
próprio(s) como uma cultura homogénea, espaço histórico cultural sem
diferenças' em palavras de Eduardo Lourenço (1994: 82), propenso a equações
do tipo 1 país = 1 capital = 1 cultura = 1 língua = etc., aparentemente pode
ter contribuído para a menor visibilidade da heterogeneidade doutros estados,
neste caso a do Estado espanhol onde, como é sabido, se insere a Galiza.
Parece, em todo o caso, inevitável atender ao relacionamento hispano-luso, à
imagologia hispano-lusa no estudo da imagem portuguesa da Galiza como mais um
fator não prescindível.
Paralelamente, as investigações a fazer sobre a imagem atual da Galiza e dos
galegos em Portugal terão necessariamente, em nossa opinião, de problematizar a
linha de análise, preponderante no âmbito dos estudos das relações galego-
portuguesas historicamente consideradas, que entende estas como umas relações
assimétricas (cfr., p. ex., Villares 1983, Vázquez 1995, Medeiros 2003 e 2006
ou Tarrío 2004)[15] e questionar se a dita assimetria está direta ou
indiretamente vinculada à invisibilidade antes aludida.
Em segundo lugar, entendemos que a imagem atual da Galiza em Portugal também
pode ser perspetivada, como hipótese de trabalho, a partir da imageme descrita
mais acima. Assim, observamos indícios, na atualidade, de vínculos entre o
imaginário português a respeito da Galiza e dos galegos (e consequentemente o
modo de se relacionar com estes) e o imagotipo de afinidade já referido. Assim,
a ideia ou crença da Galiza e dos galegos como comunidade e indivíduos que
mantém algum tipo de afinidade com Portugal e os portugueses parece funcionar
culturalmente, socialmente, pelo menos para algumas elites culturais
portuguesas. Apesar dos entraves que contrariaram ostensivamente as
possibilidades de (inter)comunicação entre galegos e portugueses durante várias
décadas do século XX[16], podem ser encontrados sinais de alguma vigência deste
imagotipo em, por exemplo, produtos literários com presença repertorial galega,
ou nos discursos políticos emanados de instituições galego-portuguesas.
Em 1999, Elias Torres analisava a matéria galega em quatros romances
portugueses da década de 90[17] concluindo que a Galiza ficcionalizada estava:
esvaída de identidade comum a Portugal, híbrida de ruídos e sombras
sobrepostos que impedem enxergá-la com clareza, vai aparecendo a
olhos do leitor como qualquer coisa próxima mas alheia, nutrida de
pequeninas pegadas partilhadas a ambos os lados do Minho, mas imersa
numha confusom, onde interessa o tópico e o exotizante a custa da
realidade, em obras de expressa índole documental na sua diegese
[...] É difícil resumir a perspectiva que estes livros oferecem da
Galiza como entidade lingüística e cultural. O contacto galego-
português fica presidido pola distáncia (Torres, 1999b: 304-305;
itálico e negrito no original).
Assumindo a análise anterior, poderíamos citar o Prémio Maria Ondina Braga de
2011, O eremita galego (Rocha, 2011), onde a representação da Galiza, sem
deixar de veicular uma realidade próxima (uma das personagens, p. ex.,
explicita que entre galego e português, A diferença também não é muita),
aparece toldada desta confusão, onde mistério, morte e religião surgem como
elementos centrais. Diga-se de passagem que neste romance, além dos óbvios
paralelismos com a trágica história do eremita de origem alemã Man, parece
pairar a mediática emergência do Caminho de Santiago e os discursos à volta
dele elaborados (cfr. Torres 2011).
Neste sentido, o estudo da imagem portuguesa da Galiza e dos galegos, terá
também de atender, em nossa opinião, ao ruído que em não poucas ocasiões
preside o relacionamento galego-português. Exemplificamos: em Portugal, temos
assistido ao singular encontro entre turista ou viajante galego (muitas vezes
castelhano-falante) e empregado de mesa ou funcionário do posto de turismo em
que o primeiro, ativando o seu imaginário, se expressa no seu galego(nhol) e o
segundo, fazendo o próprio, em portunhol. Além do caricata e até risível, a
situação demonstra os défices que galegos e portugueses acumularam durante as
últimas décadas ou, dito por outras palavras, é expressão de discordâncias
imagológicas dos dois lados do rio Minho[18].
Outro âmbito de pesquisa onde o imagotipo de afinidade teve e tem,
presumivelmente, uma certa vitalidade é o relacionado com a nova arquitetura
institucional surgida após a entrada dos dois estados na União Europeia. A
partir dos inícios da década de 90 do século passado, vão tomando corpo, de
forma pioneira no contexto peninsular (cfr. Herrero 2000: 270), duas
instituições transfronteiriças galego-portuguesas: a Comunidade de Trabalho
Galiza-Região Norte de Portugal e o Eixo Atlântico do Noroeste Peninsular. Os
processos de constituição assim como o desenvolvimento posterior de ambas as
instituições apresenta-se acompanhado, nos casos observados, de discursos que
recorrem à ideia ou crença, elaborada desde o século XIX como vimos, de
afinidade de variado tipo entre a Galiza e Portugal. Exemplificando: já num dos
primeiros documentos fundacionais da primeira das instituições, é notório o
recurso a esta ideia quando se alude às históricas afinidades socio-
económicas, culturais e lingüísticas entre a Galiza e a Região do Norte de
Portugal (Xunta de Galicia e Comissão de Coordenação da Região Norte 1991: 1).
Mais expressivamente, o recurso a estas históricas afinidades é o elemento
central do discurso em Galiza, Norte de Portugal: duas regiões, uma euro-região
construindo a Europa dos cidadãos, uma das publicações do Eixo Atlântico
(2004). O primeiro dos três apartados de que é constituído o livro, Duas
regiões europeias, desenvolve alguns dos elementos que enformam o imagotipo de
afinidade: o passado / a história, a língua, a cultura popular, a paisagem,
etc. [19]. Nestes casos, o imagotipo de afinidade, quanto às funções, parece
estar ao serviço de políticas públicas de planificação (já não estritamente
cultural mas) económica, no âmbito das políticas emanadas da União Europeia,
mostrando assim a diversidade de funções que esta imagem pode efetivamente
desenvolver desde a sua elaboração há mais de um século.
Por último, e voltando à imageme, caberia ainda pergunta-se sobre o percurso do
aqui denominado imagotipo negativo. Em função dos dados manejados, tudo parece
indicar que esta visão da Galiza e dos galegos estaria hoje fossilizada na
fraseologia do português europeu. Assim, ditados do tipo Trabalhar como um
galego, Debaixo de galego, só um burro, Cinquenta galegos não fazem um homem ou
Ver-se galego[20] teriam hoje no espaço social português uma ocorrência menor
ou residual e estariam esvaídos da sua função humorística, até porque o
fenómeno migratório galego em Portugal deixou de ter continuidade em meados do
século XX.
A partir do até aqui exposto e a modo de conclusões, entendemos que as
hipóteses aqui levantadas podem contribuir para um programa de pesquisa futuro,
cujas questões investigadoras sejam, resumidamente:
a) Qual é o grau de (in)visibilidade da Galiza e dos galegos no
imaginário português atual? Como e quanto é condicionada esta
(in)visibilidade pela radical mudança na posição da Espanha e dos
espanhóis no imaginário português nas últimas décadas?
b) Em que medida a atual imagem portuguesa da Galiza e dos galegos
tem as suas raízes, nomeadamente no relativo ao imagotipo de
afinidade, nas elaborações fixadas por galegos e portugueses entre o
último terço do século XIX e as primeiras décadas do XX?
c) E em seguimento da questão anterior: quais são as (novas e
potenciais) funções da imagem da Galiza e dos galegos (distancia e/ou
aproxima) no Portugal atual?