Gaëtan e Herberto Helder: do impercetível
Do impercetível: Gaëtan
Vou chamar o retrato,
aquele que se inclina para as chamas da morte.
João Miguel Fernandes Jorge
Acerca do retrato, Derrida notava que o desenho apontava sempre para uma
máscara demonstrando dois valores intrínsecos ao conceito, a dissimulação e a
morte. A primeira prende-se com um lado funcional mais evidente da máscara e
oculta o rosto quase por inteiro deixando de parte os olhos. Já a morte é
entendida como um rosto amputado (Derrida, 2010: 86), distanciado do resto do
corpo que só não se revela desprovido de vitalidade pela resistência dos olhos.
Assim, parece haver uma relação dialética entre dissimulação e morte. Desenhar
(-se) é, portanto, ocultar(-se) da morte e por isso o filósofo francês apontava
o mito de Perseu como ponto fulcral para o entendimento do desenho. Ao referir
que Perseu poderia tornar-se o patrono de todos os retratistas. (Idem) pois
ele assina todas as máscaras(ibidem), Derrida refere o ato de cegueira como o
único viável para a construção autorretratística, lembrando assim as já
célebres palavras de Picasso quando referia que para pintar era necessário
cegar-se. Outro filósofo, Didi-Huberman, retoma o mito de Perseu para defender
a noção de imagem-escudo, uma imagem que, precisamente por ser imagem, nos
protegeria da insuportável realidade, do horror do real.[1]
A cegueira consentida implica, obviamente, o erro.[2] Os autorretratistas vivem
desta forma de (se) errarem constantemente. Sem olhos, a mão predomina sem o
jugo do olhar e da memória. O autorretrato configura-se através de um jogo de
forças entre a vontade retratística e mão. O que guia a mão já não é o olho
enquanto órgão sensorial mas antes um novo gesto suscitado pela visão de
dentro que dá visibilidade da obra.
O ato de retratar implica uma visão dialética que é composta por ver e ser
visto em simultâneo. O artista parece pôr-se em atitude e sai de si para se
autorretratar. Vê-se o autorretrato que começa a ver-nos, e nós vemo-nos
enquanto autorretrato numa visão insustentável pela sua incongruência. Como se
o autorretrato se inscrevesse como uma atividade altamente medusante, - o que
ver ou para onde olhar? -, o autorretratista deve resgatar-se ao seu próprio
olhar ' que já não será o dele, mas o de outro ' e assumir uma manha para que
consiga resgatar um qualquer traço tangível.
Voltando a Perseu, o olhar do retratista nunca é direto sobre si, mas antes
oblíquo e esta é a manha que Derrida aponta para que o desenhador consiga
enfrentar a obra. O desvio do olhar permite não olhar para si diretamente, mas
ter antes um distanciamento que permita tornar-se invisível, impercetível. O
kune de Hades que o torna invisível ou a imagem-escudo de Didi-Huberman.[3]
Esta posição de Derrida implica uma pulsão de morte associada ao retrato.[4]
O retratista ultrapassa a fronteira do Hades para resgatar uma imagem. Além do
mito de Perseu, existe um outro que nos parece servir perfeitamente os
propósitos da imagem autorretratística, do olhar e do resgate, o mito de Orfeu.
Neste caso, o falhanço do herói ocorre precisamente porque procurou ver a sua
amada. Contudo, não lhe é concedida Eurídice, mas antes o seu Phásma, pois como
aponta Pedro A.H. Paixão, não lhe é permitido violar a lei do mundo das trevas,
pois não lhe é permitido ver (Paixão, 2008: 57). Perante a morte, Orfeu
recorre, tal como Perseu, ao engenho para ludibriar forças que lhe são
superiores e, assim, ambos acabam por usar uma máscara. O empreendimento dos
heróis é o mesmo, atingir o inatingível e a única forma de o conseguir é a
anulação dos sentidos. Se, em Perseu, a cegueira ou o uso da máscara anula a
visão, o mito de Orfeu é, ao mesmo nível, uma anulação dos sentidos. Pedro
Paixão refere acerca do mito:
Testemunhando a nova separação que divide o vivo e o morto, no mundo-
dos-mortos em que Orfeu se insinuara não é permitido vercomo uso da
sensação' nem falar, como forma de expressão. A suprema dificuldade
imposta ao herói, assim como aos que se confrontaram com o mesmo
mistério ,era a de ter de eliminar tudo de si próprio, a ponto de se
tornar apenas lugar e eco 'uma fria imagem no espelho. (Idem: 58)
No reino dos mortos, Orfeu não se guia pelas sensações, mas antes pela alma já
que a voz da alma difere da voz do corpo.[5] Os olhos já não são funcionais no
Hades, pois este reino das trevas é, de facto, reino do invisível. Nas suas
notas à tradução de Fédon, de Platão, Elísio Gala chama a atenção para um jogo
de palavras que nos parece fundamental: Hades e aides ou o reino dos mortos e o
invisível. Assim, os mortos partiam para o invisível.[6]
Quando José Gil refere que para desenhar é necessário pôr-se em atitude (Gil,
2005: 221), dispondo-se à maneira de não receber senão certos estímulos
(idem), está a referir a necessidade de se cegar provisoriamente, de se tornar
imperceptível aos próprios olhos de forma a poder mascarar-se, induzir-se em
traço. É claro que esta cegueira proporciona à mão ' o carrasco do rosto,
diríamos ' uma importância acrescida.[7] O retratista sai de si, anula-se como
Orfeu ou Perseu para ganhar uma dimensão quase meta-física que se inscreve para
além dos próprios olhos, além do próprio corpo.
O que julgamos ver quando olhamos para um retrato? Decifraremos nós o rosto do
retratado ou antes um conjunto de traços, de pequenas percepções, de forças
de que os traços estão fecundados.[8] Forças que surgem não tanto do olho
enquanto mediador entre objeto retratado e desenho, mas antes de uma certa
independência da mão em relação ao olho. A mão acolhe em si o devir-retrato
antes de o executar.
Na mão, ou neste jogo de mãos, inscreve-se a arte de Gaëtan. Os seus trabalhos
revelam a consciencialização que o artista contemporâneo possui sobre a
impossibilidade retratística. Ao compor um autorretrato através da sua mão
esquerda, não sendo esta a sua mão mais sagaz, o retratista apresenta aquilo a
que Castro Caldas se referia ao falar da incongruência, da implausibilidade do
empreendimento que com eles [retratos] se inicia. A obra de Gaëtan apresenta-
se assim como uma negação taxativa do que poderia ser entendido como a essência
do autorretrato: a semelhança. O que artista parece querer veicular através da
sua obra é precisamente um ponto intermédio entre a intenção retratística e a
tensão que surge do exercício da mão esquerda. Destas duas forças nascerá o
autorretrato que é assim forjado em qualquer coisa de obscuro, que se passa
nos bastidores, entre máscaras. (Caldas, 2008: 71).
Este ofício de contra mão pode ser visto como um lavor mais umbroso, menos
claro e limpo do que um retrato executado pela mão naturalmente competente. O
esforço feito neste caso pelo artista para chegar ao traço é muito mais
visceral do que a normal conduta do corpo perante o desafio do retrato. O path
(os)[9] que obriga uma serventia do corpo perante o traço sem que a mão deixe
escapar o traço do traço pensado. Há um caminho a percorrer entre a intenção
retratística e o retrato que se faz com uma intensão sinistra. O retrato
apresenta-se como um não-objeto, como uma transcendência pura, sem máscara
ôntica e, como nota Merleau-Ponty, não há qualquer adição ao visível, o
visível já comporta em si o invisível. Aqui, parece claro que a questão da
semelhança é arredada da esfera retratística, já que o retrato não aprisiona,
mas apresenta-se como um lugar de abertura.
A técnica utilizada por Gaëtan abre portas para a problematização do conceito
de retrato enquanto género. Em primeiro lugar, parece haver uma profunda
ironia na construção da obra que deriva, como já referimos, da consciência
retratística do autor. Noutro plano, poder-se-ia dar relevância ao gesto em
detrimento do rosto, do resultado do gesto. Os autorretratos de Gaëtan não
exprimem um rosto definitivo mas antes um teatro de gestos proporcionados pelas
inépcias da mão esquerda que eleva a mão e o gesto acima do visível. O retrato
torna-se gesto (idem) e assume-se como um devir ao invés de uma definição. A
indefinição que nos traz o título do desenho Algum retrato (1982) revela que o
retrato em questão é apenas uma possibilidade, mas que poderia ser outro. O
artista perde o controlo do traço, como se a mão já não lhe obedecesse e parte
à descoberta do retrato.
A noção de gestotem sido explorada com alguma insistência pelo teóricos, entre
os quais, Theodor W. Adorno. Na sua teoria estética, Adorno caracterizava o
gestus experimental como sendo o termo que designa os procedimentos artísticos
para os quais o Novo é obrigatório (Adorno, 2008 :45), contrapondo com a ideia
de experimentalismo que apenas se limitava a experimentar processos técnicos
desconhecidos ou não sancionados (idem). Assim, a grande diferença entre o
experimentalismo Moderno e o anterior reside no facto de o primeiro ter o fator
da imprevisibilidade na sua essência. O artista não pode (pre-) ver o resultado
do seu gesto, por isso Adorno referia que o sujeito tomou consciência da perda
de poder, que lhe adveio da tecnologia por ele libertada, erigiu-a em problema,
sem dúvida a partir do impulso inconsciente. (Ibidem) A noção de gestus em
Adorno coaduna-se assim com o processo experimental que Gaëtan utiliza através
da mão esquerda, não controlando o gesto e fazendo assim sobressair a marca do
experimental no traço.
Na introdução de Untwinsting the Serpent, Daniel Albright referia-se ao gestus
da seguinte forma:
Lessing, Brecht, and Weill described thegestus, in wich a contortion
or movement of the body takes de responsability of speech. An
ideogram or agestusis not an element within any specific artistic
médium; it is not an icon, not a word, but a chord, vibrating between
media, abolishing the distinctness of media.(Albright, 2000: 6)
Esta contorção do corpo, que em Gaëtan pode ser imaginada no próprio corpo do
artista no fazer da obra e no traço da obra, é que toma a responsabilidade
discursiva. Parece haver, como refere Albright, um acorde que vibra,
aproximando-se de um caráter polifónico e polissémico numa verticalidade que
entrelaça o discurso. Adorno referia que as obras que são planeadas como tour
de force, como ato equilibrista, revelam algo de superior em toda a arte: a
realização do impossível (Adorno, 2008: 165) e este gesto que traz consigo uma
força, que esconde a possibilidade do impossível (idem: 166). Mais adiante,
veremos como esta noção de tour de force pode articular a música de Bach e os
desenhos de Gaëtan.
A série Contra-mundum (1988) convoca, desde o título, o lugar paradoxal que é
um autorretrato. Se a intenção autorretratística se afasta, desde logo, da
semelhança, por que razão o artista se representa em pose - muito próxima das
poses adotadas por Van Gogh - nos seus autorretratos? É precisamente neste
ponto que se forma a teatralização[10] da obra de Gaëtan. Teatralização que se
estende aliás nos adornos que o artista aplica ao seu rosto e que se revelam
profundamente irónicos na relação retratista-retratado. Em metade da série, o
rosto surge suportado pela mão esquerda e o olhar esgueira-se sempre para o
centro do retrato. Qual Perseu, o olhar procura e experimenta um espaço que vai
além do retrato, que se situa além-corpo. A construção em série revela também
uma pluralidade de retratos que acabam por não formar nenhum, ou algum, e muito
menos um retrato definido e definitivo. A obra transforma-se assim num
palimpsesto, num rosto em constante construção e reinscrição.
Em A Arte da fuga (1992-93), o artista refere o conhecimento contrapontístico
da arte da fuga de Bach (Jorge, 2001: 200) e, em ambos os compositores, a
experimentação é ponto de partida para a obra. A técnica do contraponto vive
essencialmente da tensão entre as suas linhas melódicas e, à semelhança da obra
de Bach, os trabalhos de Gaëtan afloram estas afinidades. O já referido hiato
entre a tensão e a intenção cria um espaço que, distanciando-se de ambos,
resguarda deles qualquer coisa. Estas afinidades com a obra do artista barroco
revelam-se já no corpo das obras. Sabemos que A Arte da Fuga de Bach é uma obra
inacabada com um caráter experimental, o que abre inúmeras possibilidades
interpretativas. Não deixa de ser curioso o aspeto incompleto da obra de Bach,
pois sabemos que Gaëtan explora quase exclusivamente a questão do retrato e
trata o retrato sempre como objeto inacabado. O trabalho de um rosto liga-se
assim ao próprio rosto, também ele sempre a caminho de e ressalta sempre a
tensão representativa (idem) que provém das obras, do rosto.
O segundo aspeto, e talvez o mais importante para compreender o paralelismo
Bach-Gaëtan, prende-se justamente com a questão experimental das obras. Num
artigo dedicado às relações entre a Arte da Fuga de Bach e as artes plásticas
[11], Lenká Stránská refere-se a obras plásticas do século XX que, de uma forma
ou de outra, se coadunam com a Arte da Fuga de Bach. Seja pela homenagem
prestada pelos artistas ao compositor por correspondências estruturais ou pela
interpretação da lógica espaço-temporal da obra de Bach, a tentativa de
emulação da sua obra está bem patente no estudo de Stránská.
Atribuir à obra de Gaëtan o simples caráter de homenagem através do título,
anulando assim qualquer semelhança entre artistas, parece-nos demasiado
simplista para ser verosímil. Excluída esta hipótese, em que moldes se poderão
aproximar as obras? Cremos que uma correspondência na interpretação espaço/
tempo parece ser a que mais pistas poderá abrir. Se nos fixarmos na ideia do
paragone ' apesar da questão estar já desgastada e, porventura, resolvida ',
constatamos que o retrato afigura-se como o género que melhor servirá para
diluir fronteiras. Mais do que a ideia de que um quadro não é simplesmente
apreendido sinteticamente à primeira vista, implicando antes um percurso do
olho, mais do que a ideia de narratividade que a pintura muitas vezes explora,
o retrato é o tempo em si. O retrato comporta em si, indubitavelmente, a marca
do tempo. E marca-lo de duas formas contraditórias: pela vontade de suspender o
tempo, e pela impossibilidade de fugir à sua passagem. O retrato imortaliza e
assassina.
O efeito do contraponto resulta na força do entrelaçamento de duas linhas
melódicas. Esta força, zona obscura entre-linhas, pode ser vista, na obra de
Gaëtan, na dobra do traço, diríamos. Em Le Pli, Leibniz et le Baroque, Gilles
Deleuze apontava à dobra barroca a marca do infinito. Sem saber onde se inicia,
nem onde acabará, le pli dobra a alma e, lá em cima, canta a glória divina. A
dobra, esta, constitui-se por oposição: alto-baixo e interior-exterior[12]. Há
algo de sombrio que permite não obstante a elevação, que permite dar a ver,
como num chiaroscuro. Do dualismo alto-baixo, Deleuze referia a simbiose entre
movimentos que se elevam e que descem, formando contornos harmoniosos. Nos
termos utilizados pelo filósofo francês, la matière-façade va en bas, tandis
que l'âme-chambre monte (Deleuze, 2009: 49) assim, o concretismo do exterior
da curva ' do visível - , contrapõe-se ao oculto, ao metafísico do interior -
do invisível-, do quarto. Não se deverá contudo ver este invisível como
sinónimo de ausência ou de encriptação indescodificável, mas antes como um
lugar de percepção que se articula com o visível (não há curva sem interior) o
que, na lógica de Merleau-Ponty, se poderia chamar de invisível, ou de
imperceptível. Estas referências arquitetónicas levam-nos à primeira de três
séries que compõem a Arte da Fuga de Gaëtan, La Chambre Verte.
A primeira parte da série,La Chambre Verte, traça uma intertextualidade com o
filme homónimo de François Truffaut de 1978. Como já referido, o desenhador
incorpora o mito de Orfeu e, em La Chambre Verte, Julien Davenne acaba por
justificar isso mesmo. Não sendo o autor dos retratos que preenchem o
santuário, a personagem usa os retratos como lugar de reconhecimento. Como o
próprio refere de reconhecimento daqueles que partiram. A determinação em
preservar a figura dos mortos demonstra que J. Davenne não quer deixar partir
quem amou, a personagem está aliás num mundo que não é bem o dos vivos mas
também não será o das trevas. Como refere João Miguel Fernandes Jorge acerca de
Truffaut e Gaëtan esses retratos parecem excluir o resto do mundo, para se
encerrarem por detrás dos limites da sua intimidade. (Jorge, 2001: 195).
Apenas no final veremos J. Davenne castigado pela sua vontade irracional de
resgatar, qual Orfeu, a sua amada da morte.
O filme tem um início peculiar. O rosto de Julien Davenne surge numa alteração
constante de planos com o rosto dos mortos, como se a morte estivesse já
inscrita, rasurada não mais do que epidermicamente no seu rosto. É neste
percurso, neste path(os) órfico que J. Davenne vai construindo, recolhendo
retratos da sua amada e, retomando a citação de João Miguel Fernandes Jorge em
epígrafe, parece clamar: Vou chamar o retrato, aquele que se inclina para as
chamas do inferno. (Jorge, 2001: 199). Tal como em Gaëtan
Não há rosto, não há autorretrato (do rosto) sem a comum viagem
quotidiana, o que quer dizer sem a trágica proximidade da morte.
Porque não há rosto sem a lenta visita aos infernos, nem tão-pouco há
retrato sem a paixão mortal do desenhador: alguém que soube deitar as
mãos ao que é invisível, ao que já desapareceu(Jorge, 2001 :194)
O filme de Truffaut alude ao resgate do sujeito através de um exercício
mnemónico estimulado pelo altar, resgate este que pode ser visto em Gaëtan,
como uma operação do próprio rosto. Em Nmkitpah (1989), o rosto parece reclamar
para si (um)a (das) sua máscara(s) dizendo não me deixes. Como se o retrato
se esquivasse ao rosto, o desenho mostra a máscara e, por dentro, o oco. Os
olhos são elididos e o interior revela-se ser um creux, nos termos em que Didi-
Huberman o propõe o termo.
A construção em série traz consigo o indizível, pois enquanto espectadores dos
rostos perguntamos: de que retrato falar? E o seguinte rasurará o anterior?
Nesta série, mais do que um rosto definitivo ou uma tentativa serial de
aproximação do rosto, parece-nos sobressair sobretudo uma força. Uma força que
advém da rasura do seu próprio rosto, da própria possibilidade do retrato. Como
se cada peça ' rosto - da série fosse atirada contra outra, não a anulando
contudo, mas criando um percurso num palimpsesto geográfico do rosto, que não
exprime senão um lugar metafísico, indizível. Rosto contra rosto, ponto contra
ponto, contraponto.
Derrida aponta que: Não há auto-retrato sem confissão na cultura cristã. O
autor do auto-retrato não se mostra, não ensina nada a Deus que antecipadamente
sabe tudo (Agostinho não cessa de lembrá-lo). O auto-retratista não leva
portanto ao conhecimento, confessa uma falta e pede perdão. (Derrida, 2010:
121) Esta oração está sempre certa e sempre errada e o retrato abre sempre o
próximo, já que parte de um erro, erro este que nasce de outro e que
proporcionará, ainda, um novo erro.
Porém, a utilização da mão esquerda por parte de Gaëtan vai acrescentando outra
problemática à questão do erro. Obviamente, a sucessão de execuções com a mesma
mão desenvolve uma destreza técnica que, apesar de involuntária, altera
inevitavelmente o conceito de retrato engendrado pelo autor no início dos anos
oitenta. Sendo assim, quanto mais o artista se retrata, mais o retrato lhe foge
e, parecendo paradoxal, a pergunta que parece sobressair é como desaprender a
técnica apurada involuntariamente?
Didi-Huberman, em O que nós Vemos, o que nos Olha, relembra o conceito medieval
de imago em oposição ao vestigium e sugere que esta distinção é fundamental
para o que apelida de trabalho de perda (Didi-Huberman, 2011: 14). O
vestigium traria assim o vestígio, o traço, a ruína. Este pensamento revela-
se análogo à lógica Derrida quando refere que o ato de ver culmina[sse] sempre
na experimentação táctil de um pano. (Idem)Na ausência dos olhos, funcionam
instintivamente as mãos, como num retrato de cegos.
Em D'après Nature (1994), o autorretrato afasta-se definitivamente do conceito
de imagem e explora o conceito de impressão. Ao contrário dos autorretratos
tratados anteriormente, D'après Natureparece marcar um ponto de viragem na obra
de Gaëtan. Nesta obra, a eliminação dos olhos parece acrescentar o caráter
ausente do autorretrato. Os traços parecem dar lugar à impressão do rasto, da
ruína. De todos as obras do autor, esta será porventura a que nos dá um eixo
mais simétrico em relação à superfície. Estes conceitos de ruína e de impressão
são indissociáveis, na cultura ocidental, do sudário cristão. Hans Belting
trata sublimemente o conceito em A Verdadeira Imagem quando refere que o
contacto com o véu revela o verdadeiro corpo de Cristo, mas o sudário não
revela ainda a imagem (essa surge numa fase posterior), mas antes a impressão
de Cristo. O facto de o conceito de impressão surgir previamente em relação ao
da imagem em si desagua na ideia de Didi-Huberman já referida de oposição entre
vestígio e imago.
Assim, cremos poder enquadrar D'après Nature na ideia de vestígio e de
impressão em vez na de imagem. Neste autorretrato não há uma impressão no
sentido de mancha, como no sudário, mas um rosto 'ou a impressão de rosto- que
aparece do traço. Se a inépcia da mão esquerda se vai transformando na técnica
retratística mais desenvolvida, os retratos caminham porém para a impressão,
para o vestígio, para a ruína, para o impercetível.
Mesmo considerando a possibilidade da ironia no título da composição ' o que
não seria de estranhar em Gaëtan - , este fazer de Gaëtan coaduna-se, aliás,
com um fazer religioso. Castro Caldas lembrava que a arte de Gaëtan ia
abandonando a teatralização para se tornar num murmúrio quase impercetível
(...). O teatro transforma-se numa espécie de prece contínua, recitada entre
dentes pelos atores, cuja pose é mais um esgar e menos um sinal ' absorta,
desconcentrada. (Caldas, 2008: 75-76)
Herberto Helder:Retrato - Tema do excesso
Retrato ' Tema
do excesso.
com a mão esdrúxula, como trabalha a morte
que trabalha. É como tudo se cala.
Herberto Helder, Kodak
Ao qualificar de dramática a experiência do pintor perante a tela, Deleuze
reconhece que o ato de realização artística começa num momento anterior à
execução do primeiro traço, como o próprio refere: [é] um erro acreditar que o
pintor se encontra perante uma superfície branca. (Deleuze, 2011:151). Com
efeito, a tela já está preenchida de imagens, no sentido em que o artista já
tem os olhos inundados de clichés, a primeira tarefa do artista será então a
de esvaziar, desimpedir ou limpar a superfície (idem), afastando-se assim de
grande parte dos pressupostos figurativos apontados à pintura. Relembrando-nos
o que Eduardo Lourenço demonstrava quando referia que o artista moderno não
reconhecia nem modelo, nem formas como preexistentes referência. É do caos, de
costas voltadas para a antiga luz (que é afinal o passado pictural) que deve
retirar a nova luz, necessária para triunfar do deserto e da noite que o cercam
e em que se converteu. (Lourenço, 1996: 55)
Este ato de devastação imagética da memória destrói a ideia referencial que
poderia existir e que sustentaria as relações entre modelo e cópia (Deleuze,
2011:151). Deleuze nota ainda que Bacon, por não reconhecer valor estético à
fotografia, preferiu rodear-se de photomatons para a realização dos seus
retratos preterindo imagens que obedecessem a um código visual e artístico
canónico. O instantâneo será porventura mais propenso a captação de forças do
que a fotografia que teria ' e alguma ainda terá ' a ambição limitada à
cadastragem de um sujeito. Tratar-se-ia, principalmente no caso de Bacon, de
captar forças como lhe chamou Deleuze. Esta visão releva-se, aliás,
concomitante com pensamento de Adorno, quando referia a obra enquanto tour de
force. Em feixe de energia, Herberto atesta o conceito de T. Adorno quando
escreve:
Que há o mundo, e o mundo sai do corpo,
E existe a memória carregada de formas,
E as formas são sustentadas pela energia
De um imaginário.
Porque o que se vê no poema não é a apresentação da paisagem,
A narrativa das coisas, a história do trajecto,
Mas
Um nó de energia como de um olho ávido
(...)o mundo com rosto de poema,
numa fuga, rapto ou fulgor,
um feixe de energia que se pensa como mundo
(Helder, 2006: 131)
Este texto aponta o caminho da poesia herbertiana. Assim, a fuga da poesia a
uma certa horizontalidade narrativa dá lugar à verticalidade energética que
escapa aos propósitos narrativos tradicionais. Acerca de autorretrato e
autobiografia, Michel Beaujour havia apontado o caráter horizontal da
autobiografia ' já que este conceito obedece a uma lógica temporal,
sequencial-, ao contrário do retrato que se constrói através de justaposições
de anacronias e, assim, afirma a sua verticalidade. O autorretrato assume-se
assim como o resultado de um processo de sobreposição. O nó de energia
reenvia-nos para a noção de dobra barroca deleuziana e, se não tomarmos o
barroco como essence, mais plutôt à une fonction opératoire, à un trait.
(Deleuze, 2009: 5), será legítimo afirmar que o nó (a dobra sobre si) tem uma
presença efetiva na poesia de Helder[13].
Quando Herberto Helder, no texto intitulado desenho (Photomaton e Vox), escreve
que O ponto não é estabelecer um sistema de referências, instituir leis,
consumar um mecanismo. Digo que o ponto é propiciar o aparecimento de um
espaço, e exercer então sobre ele a maior violência (Helder, 2006: 79) está de
certa forma a desmontar o sistema referencial tradicional: assim se, como o
poeta refere em Exemplos, a teoria era esta: arrasar tudo (Helder: 2009a:
305) o aparecimento do espaço trata da ideia de desimpedimento da superfície
de forma a fazer aparecer a palavra. Retomando o conceito de vestigium abordado
por Didi-Huberman, não se trata de um vestígio no sentido de ruína, de morte,
mas antes um aparecimento da palavra, ainda que residual quando pensamos em
termos referenciais, mas que determina uma certa ilegibilidade poeticamente
controlada como lhe chamou Pedro Eiras (2007: 136). É necessário subtrair as
imagens à vista, subtrair até propiciar espaço para o poema. Esta subtração
ao espaço é também uma subtração do rosto em Helder:
Esse truque demoníaco de apagar de repente no espelho o empenhamento
da nossa imagem, a evaporação total dos indícios de que fomos espiões
de uma identidade, uma apaixonada ligação, a magnificência do retrato
' é isso que nos rouba o peso e subtrai a nós mesmos, aos espelhos da
matéria.(Helder, 2006: 166)
A magnificência do retrato que Helder refere, é, afinal, a subtração e o
roubo. A imagem é o resultado de uma dobra sobre si mesmo, a imagem
refractária, devolvida pelo espelho que se dobra perante o olhar.
Se referimos anteriormente os mitos de Orfeu e de Perseu para ilustrar um certo
fazer artístico, vimos que estes mitos se sustentam, neste contexto, através da
anulação dos sentidos. Ora esta anulação levaria a uma rasura da memória e,
consequentemente, à desaprendizagem de uma certa técnica. A obra de Herberto
Helder, tal como a de Gaëtan, parece-nos passar por este processo de
esquecimento voluntário, de cegueira consentida para chegar à forma do desenho
ou do poema. Eiras realça que há também o tacto como forma de saber (a tal
ponto que, por vezes, o olhar parece tornar-se uma espécie de tacto [...] e a
ambiguidade da mão, que ora escreve, ora destrói; ora conhece, ora perde.
(Eiras, 2007: 136). O tacto herbertiano, tal como Eiras o propõe, reflete o que
Didi-Huberman referia sobre o trabalho de perda, ou como se o acto de ver
culminasse sempre na experimentação táctil de um pano [pan] erguido diante de
nós.(Didi-Huberman, 2011: 11).
O filósofo francês recuperava esta aporia através de Ulisses, de James Joyce.
Assim, a expressão shut your eyes and see, proferida por Stephen Dedalus,
relaciona-se a interrogação que a mesma personagem colocava diante do espelho
(Quem me escolheu este rosto?) como que petrificado pela realidade medusante.
Esta insustentabilidade do rosto em relação ao eu está desde logo presente na
pergunta e daí o estranhamento que suscita a frase Quem me escolheu este
rosto?. Primeiro, o ato de contemplação do rosto implica uma experiência de
natureza autoscópica e o consequente afastamento do rosto do eu. Segundo, ao
destacar o rosto, ao vê-lo fora de si, estamos sempre a perder. O fazer poético
de Herberto Helder revela-se num trabalho órfico no sentido em que, à imagem de
Orfeu, a anulação dos sentido ocorre para se reunirem num outro, diríamos
extrassensorial, além da palavra e além do corpo da poesia: O dramático
esforço de Orfeu, que desce aos infernos para reunir a sua dispersão na unidade
final do canto, é tarefa para cada um ' e isso baste, mesmo que não sirva para
nada, além de servir para a possível salvação de quem nela se empenhe.
(Helder, 2006: 134). A ideia de salvação resulta da necessidade de reunificação
para a unidade, mas para uma unidade, tal como Pedro A. H. Paixão já havia
referido, na voz impercetível[14] ou, na terminologia herbertiana, na vox. O
conceito de voz em Helder aproximar-se-ia, assim, do conceito de pneuma.
Em os ofícios da vista,texto incluído emPhotomaton e Vox, a questão da cegueira
é explorada como caminho para a sabedoria, o ver é aqui retratado como uma
atividade insuportável, como se de um crime se tratasse.
Preciso de ócio, dizia ele, preciso dos meus olhos, quero ver como é.
E viu como era. Viu o ritmo humano estabelecendo relações no espaço,
viu as coisas entre si, o movimento primitivo dos animais, os ciclos
vegetativos, as imagens nocturnas e diurnas.(...)Já tenho a minha
sabedoria, disse o último homem, estou triste. E fechou os olhos,
porque estava cansado da sua ciência da visão. Quero morrer(...)Esta
é a minha sabedoria, tenho os olhos queimados. (Helder, 2006: 108-
110)
A visão do mundo, do ritmo, das relações e do movimento queimam os olhos,
ou, nos termos derridianos já propostos, petrificam. O acerto faz-se
precisamente pelo tipo de cegueira que Helder refere em A faca não corta o
fogo:
se me vendam os olhos, eu, o arqueiro! Acerto
em cheio porque não o vejo:
por pensamento e paixão,
ou porque foi tão sentido o vento a luzir nos botões dos salgueiros,
como se atirasse do outro lado do vento,
ou na solidão de um sonho,
ou como se tudo fosse o mesmo: flecha e alvo '
e
cego
acerto em cheio:
porque não quero.
(Helder, 2009a: 607)
O acertar no alvo acontece por cegueira e, como se tudo fosse o mesmo: flecha
e alvo (ou mão e traço, arriscamos nós), acontece por não querer, pois a
vontade retratística é, afinal, sinónimo de uma certa impossibilidade
retratística. Esta impossibilidade é, aliás, extensível à arte mais figurativa,
a mesma impossibilidade que Herberto aborda num dos seus mais famosos textos,
Teoria das Cores. Neste texto, o artista debate-se com a constante
transformação do objeto retratado, sem nunca saber o que agarrar[15]. O que
acontece ao pintor é precisamente o momento de cegueira, o que o leva a
acertar, porque não quisera, porque não caíra na insídia do real (idem).
Vimos, no texto ofício da vista, que a cegueira parece ser a chave do ofício
que é escrever e vimos, acerca de Gaëtan, como a anulação dos olhos
proporciona, no mito de Orfeu, o surgimento da voz, da alma.
O texto Desenho, incluído em Photomaton & Vox, realça esta ausência do
sistema referencial, favorecendo antes o aparecimento de um novo espaço. O
texto inicia-se da seguinte forma:
O ponto não é estabelecer um sistema de referências, instituir leis,
consumar um mecanismo. Digo que o ponto é propiciar o aparecimento de
um espaço, e exercer então sobre ele a maior violência. Como se o
metal acabasse por chegar às mãos ' e batê-lo depois com toda a força
e todos os martelos. Até o espaço ceder, até o metal ganhar uma forma
que surpreenda as próprias mãos.(Helder, 2006: 79)
No artigo Em torno e depois de Ou o Poema Contínuo, Pedro Eiras coloca uma
questão que parece ser denominador comum a todos os estudiosos da obra
herbertiana. Como ler Herberto Helder? O singular método organizacional do
poeta quanto à publicação dos seus livros abre portas, antes ainda de
mergulharmos na obra, para duas vias interpretativas. Poderemos considerar as
reedições da obra herbertiana como anulação das posteriores ou deveremos
atender à obra como um todo orgânico que supera o seu corpo provisório?
Considerar os textos olvidados nas mais recentes reedições leva ainda a
considerar outro aspecto. Que lugar ocupariam estes textos? Seriam parte de um
corpo palimpséstico no qual se vão acumulando planos e sobreposições, rasuras e
traços que, afinal, atuam na mesma superfície estética? O que equivale a
perguntar que plano ocupa cada texto na obra poética de Herberto Helder. A arte
contemporânea parece esquecer o que a planos diz respeito e, como notou Diogo,
tratar-se-ia da elisão do abjecto, pela indistinção, o longe o vago e o
sublimado dos últimos planos. (Diogo, 1990:11). Assim, a obra poderá jogar com
uma indistinção de planos, sem nunca perder o seu sentido primeiro. Parece-nos
haver, neste constante movimento frente-trás, uma indeterminabilidade em
relação ao que constitui o objeto estético. Porque, como aponta Eiras, a poesia
herbertiana pauta-se pela indeterminação interpretativa. A obra ocupa assim um
limbo interpretativo determinado pela ilegibilidade poeticamente controlada.
A poesia herbertiana trata do indizível, oculto, de uma certa impossibilidade
hermenêutica, da ilegibilidade[16] . Confrontamo-nos assim com uma obra que,
não sendo matéria (totalmente) ilegível, ressalva um qualquer grau de
indeterminação.
A promessa adiada ad aeternumde silêncio parece insistir no caráter paradoxal
da obra que se reescreve, ganha um corpo consideravelmente ampliado. Pois o
caminho para o silêncio não se pavimenta no vazio ou na não-fala, mas antes
aponta, ao invés, para o invisível, para o impercetível. Em a carta do
silêncio, Herberto Helder refere que
Há às vezes uma tal veemência no silêncio que surge inquirir se a
poesia não é uma prática para o silêncio. A poesia vem dele,
atravessa-o na pauta verbal como se apurasse a subtileza de um timbre
último, evaporável. Atravessa-o então e procura-o no próprio centro
onde nasceu. Há uma tensão extenuante neste movimento do silêncio
sobre si mesmo.(Helder, 2006: 162)
Esta tensão extenuante resulta da dobra do silêncio sobre si mesmo. A obra
configura-se então como silêncio, mas um silêncio murmurante, como que em
pneuma.
A ilustração de A Faca não Corta o Fogo (2008), da autoria de Ilda David,
parece oferecer, em termos ilustrativos, o que temos vindo a referir.
Concedendo pouco em termos paisagísticos (a figura está centrada em fundo
negro), a ilustração serve os mesmos propósitos que Saturno devorando a sus
hijos, de Goya, aquando a publicação de Ou o Poema Contínuo. Da boca, através
da língua, surge a obra, pouco definida, confundindo-se assim com a mão
sinistra como que em pneuma. Como se as seiscentas e vinte e três páginas que
se encerram entre as duas ilustrações de Ilda David fossem metaforicamente
condensadas em pneuma. Em Do mundo, o elemento é referido da seguinte forma '
como se diz: pneuma, / terrífica é a terra e no entanto nada mais do que um
pouco: / criar matérias -. e assim se apresenta a obra de Herberto: como uma
máquina de criar matérias que, embora não referenciais, ocupam-se do oculto
ou, se preferirmos, do ar, do fogo, do sopro, da alma, de uma quintessência.
Contrariando o conceito dado por Diogo, o oculto acaba por ser uma função do
autorretrato em detrimento da autobiografia, mas em concordância com a sua
visão de matéria ilegível numa luz matizada ' ou num fundo de Goya ou de
Ilda David - que opera do lado de fora da necessidade, e torna visível a luz
da obra com a sombra que lhe mente.. Devora-se a energia, recriada em matéria
impercetível, mas o impercetível acaba por ser a língua de Herberto Helder[17],
o poema. Este idioma constitui-se pelo processo de assimilação da matéria
primitiva para depois a expelir em poema. Luís Maffei notava acerca da
ilustração de Ou o Poema Contínuo
o poeta devora o poema ou pelo poema é devorado(...)o poeta devora o
idioma bárbaro e produz o poema, vomitado, cuspido: assim devolveu
Saturno os filhos que havia devorado, assim devolve o poema ao mundo,
em forma de poemas, o que ingerira como bárbaro alimento.(Maffei,
2007: 459)
Este processo revela-se análogo àquele que Luís Miguel Nava apontava em Os
Comedores de Espaço, do livro Vulcão:
Nada indicava que atrás deles não surgissem criadores de espaço
capazes de repor as coisas nos devidos lugares ou que os próprios
comedores não pudessem vomitar tudo o que haviam devorado. Mas mesmo
nesta circunstância o mais provável era que o espaço, transformado
entretanto nas entranhas de quem deglutira, pouco tivesse já a ver
com o que os habitantes haviam conhecido, nele se misturando coisas
que os comedores trouxessem na memória e que decerto lhe viriam
agarradas quando violentamente o expelissem.(Nava, 2002: 256)
As palavras de Nava parecem inscrever-se no processo herbertiano de poema e
confluem no que Herberto chama de "idioma bárbaro", pertencente a
um espaço que lhe é ' sempre ' exterior para produzir o lugar-poema na sua
devolução ao mundo depois de metamorfosear o real. O processo de criação
provém, também, da rasura.
Em conclusão, poderíamos apontar conceitos como o apagamento, o impercetível e
o silêncio para traçar aquilo que nos parece constituir marcas da
autorretratística contemporânea. Os exemplos propostos parecem demonstrar uma
tendência para a fuga à representatividade e, ao vermos que os autorretratos de
Gaëtan jogam constantemente com as noções de representatividade, percebe-se que
as suas obras colocam em causa o próprio conceito de autorretrato. Na poesia de
Herberto Helder, o retrato - o photomaton - é, à imagem de um autorretrato de
Gaëtan, um processo que caminha para o invisível, para uma camada de silêncio
que se acumula em sucessivas sobreposições e que constitui a poesia
herbertiana. Mais do que a construção do rosto, existe, em Gaëtan e Helder, a
sua construção constante ou a captação de forças em esforço numa tensão
extenuante (Helder, 2006: 162), tensão que poderia revelar-se a mesma que a
mão esquerda de Gaëtan usa para executar o retrato, ou a(ssa)ssinar o
rosto, na terminologia herbertiana.